O levante da ciência

cientistas engajados

Por Herton Escobar, jornalista especializado em Ciência e Meio Ambiente e repórter especial do “Jornal da USP”

“Sempre que a ciência for atacada, temos que nos levantar.” Palavras do professor Ricardo Galvão, proferidas em 16 de agosto de 2019, no auditório do Conselho Universitário da USP, poucos dias após ter sido removido pelo ministro Marcos Pontes da cadeira de diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que ele ocupava legitimamente desde 2016. Motivo da exoneração: Galvão se levantou. Fez o que o próprio ministro não teve coragem (ou talvez interesse) de fazer: defendeu a ciência brasileira do negacionismo e das mentiras lançadas contra ela pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro.

O caso é bem conhecido. Logo nos primeiros meses do governo, aconteceu o que todo mundo previa que iria acontecer: o desmatamento da Amazônia começou a crescer. Pressionado, o presidente colocou em prática a sua especialidade: negar a realidade. Em vez de demonstrar preocupação e anunciar providências, disse que os dados do Inpe eram “mentirosos” e acusou o diretor do Inpe (Galvão) de estar a serviço de ONGs internacionais, conspirando contra o seu governo. Galvão poderia ter ficado calado para se preservar no cargo, mas não. Rebateu publicamente o presidente, defendeu os dados do Inpe e desafiou Bolsonaro a comprovar suas acusações (o que nunca aconteceu). Depois, ainda enfrentou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que em diversas ocasiões tentou, também, desacreditar publicamente o trabalho do Inpe.

Galvão perdeu o cargo, mas caiu de pé. Se o objetivo era desmoralizá-lo, aconteceu o contrário. Galvão virou um símbolo de inconformismo e resistência ao negacionismo científico e ao obscurantismo intelectual que permearam os quatro anos do governo Bolsonaro. Um governo que negou a realidade do desmatamento, negou o perigo das mudanças climáticas, negou a gravidade da pandemia (até o final), negou a segurança das vacinas, negou a necessidade das máscaras, promoveu falsos tratamentos e vendeu falsas soluções para todo tipo de problema, na área ambiental, na área social, na saúde, na educação, na segurança pública, e por aí vai. Gastamos quatro anos lutando contra inimigos imaginários — ameaça comunista, ideologia de gênero, banheiro unissex, satanismo — enquanto o vírus, a pobreza, a fome e outros problemas do mundo real eram simplesmente negados ou ignorados.

Quantas vidas humanas foram perdidas sem necessidade na pandemia em função disso? Quantos quilômetros quadrados de floresta foram desmatados impunemente? Quantos indígenas morreram de fome, sitiados pelo garimpo? Quantas armas foram parar nas mãos de pessoas violentas? Quantos jovens tiveram seus sonhos jogados na lata de lixo? Quantas universidades foram sucateadas? Quantos cérebros deixaram de ser formados ou foram embora para nunca mais voltar? Quantas pesquisas importantes deixaram de ser feitas? Quantas crianças deixaram, e ainda deixarão, de ser vacinadas por conta das mentiras e do medo que o governo semeou na mente de seus pais? Quantas decisões erradas foram tomadas, apesar do conhecimento disponível para evitá-las?

O negacionismo científico não é apenas uma questão acadêmica, de caráter teórico; é um problema real, com consequências práticas e nefastas para toda a sociedade, que precisa ser combatido com urgência e com inteligência.

O saldo desses últimos quatro anos foi desastroso para a ciência brasileira: orçamento esmagado, cientistas perseguidos, universidades e institutos de pesquisa abandonados, cérebros em fuga. Mas poderia ter sido muito pior, se Galvão e tantos outras lideranças e organizações não tivessem se levantado contra o desmonte. Entre elas, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciência (ABC), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e várias outras entidades que, individualmente ou coletivamente, atuaram para reverter, amenizar, ou ao menos retardar, os impactos dos muitos ataques à ciência e às universidades públicas proferidos nesse período.

Em 17 de janeiro deste ano, Galvão foi apresentado como o novo presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), um dos cargos mais importantes e prestigiados da ciência brasileira. Vai trabalhar de mãos dadas com a nova presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília, que também atuou fortemente em defesa da ciência e da educação nos últimos quatro anos. Duas indicações qualificadas, do ponto de vista técnico, e carregadas de simbologia.

“Hoje é o dia que se faz justiça à ciência brasileira, o dia em que viramos a página do negacionismo, que não pode ser esquecido, para que não volte a acontecer”, disse a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Luciana Santos.

Galvão, que é professor aposentado do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, se emocionou várias vezes durante a cerimônia, especialmente ao lembrar do seu discurso de 2019 na USP. “Prezada ministra, de fato o povo brasileiro não se calou”, disse. “Essa cerimônia, e a indicação da professora Mercedes Bustamante para a Capes, são a comprovação de que nossa ciência sobreviveu ao cataclisma político promovido por um governo negacionista, que empreendeu um verdadeiro desmonte das políticas públicas em diversas áreas.” E concluiu: “No dia de hoje viramos essa página triste de nossa história, com a convicção de que a ciência voltará a promover grandes avanços para a nossa sociedade”.

Se essa página foi virada, de fato, só o tempo dirá. O negacionismo perdeu a eleição, mas não desapareceu. Assim como o vírus da covid, é um inimigo que chegou para ficar, altamente infeccioso e resiliente, especialmente quando transmitido via WhatsApp, acoplado ao vírus da desinformação.

Desenvolver uma vacina eficaz contra essa doença é um desafio imenso, prioritário e de caráter multidisciplinar, que exige a participação de toda a sociedade — cientistas, professores, médicos, jornalistas, comunicadores, advogados, empresários, poder público. É impossível erradicar o vírus — sempre haverá pessoas dispostas a inventar e disseminar mentiras —, mas, com boa informação, boa educação e um mínimo de bom senso, é possível conter a sua disseminação. Diante desse quadro, só há uma opção daqui para frente: permanecer de pé.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


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Este texto foi inicialmente publicado pelo “Jornal da USP” [Aqui!].

A degradação da educação, da ciência e do meio ambiente no Brasil

ciencia brasil

(crédito: Caio Gomez)

Por Mercedes Bustamante- Professor titular do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, membro da Academia Brasileira de Ciências

“Cupinização silenciosa e invisível.” Assim descreveu a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, o processo de degradação sistemática dos órgãos de fiscalização e controle do meio ambiente. A destruição por dentro, conduzida nos meandros das instituições, está claramente expressa nas taxas crescentes de desmatamento e conversão agrícola em vários biomas, na violação da legislação ambiental e de direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais e comprometimento de recursos naturais e da estabilidade climática.

A cupinização também é aparente no Ministério da Educação e seus órgãos associados, como Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), afetando um componente crucial para a redução das desigualdades sociais e econômicas ainda tão agudas no Brasil e que foi extremamente prejudicado durante a pandemia de covid-19. Escolas e universidades públicas atravessaram dois anos sem uma condução efetiva do Ministério da Educação (MEC) para lidar com os desafios impostos por esse choque global. Tal realidade, aparentemente, passou desapercebida no balcão (ou púlpito) de negócios que se instalou nas entranhas no ministério.

Igualmente crucial, a área de ciência e tecnologia é vítima de outra estratégia — a destruição por inanição. A redução drástica de recursos de custeio, bolsas e investimentos mina décadas de políticas que determinaram avanços científicos importantes e a formação de recursos com competências para abrir os caminhos do país diante dos significativos desafios que nos aguardam.

Tais desafios estão, precisamente, na convergência das políticas de educação, ciência e meio ambiente. Em 4 abril, foi lançada a terceira parte do 6o ciclo de avaliação do Painel Intergovernamental para Mudança do Clima (IPCC). Para nos recolocar na rota de atingir a meta de manter o aquecimento global em 1,5oC, estabelecida globalmente pelo Acordo de Paris, precisaremos reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa até 2030.

Enquanto o mundo como um todo reduziu as emissões em 2020 em função da pandemia de covid-19, o Brasil aumentava suas emissões impulsionadas pelo desmatamento que seguiu impunemente mesmo diante de grave crise sanitária. Em 2021, o Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) registrou a maior taxa de desmatamento da Amazônia desde 2006. A conservação de ecossistemas naturais e sua restauração ecológica são precisamente alternativas com grande potencial de mitigação das emissões, custos acessíveis de implementação e inúmeros benefícios como conservação da biodiversidade, segurança hídrica e alimentar.

Igualmente, a mensagem clara sobre a necessidade de abandonar combustíveis fósseis, em especial o carvão, não encontrou eco no governo federal. Recentemente, foi sancionada uma lei que obriga a compra de eletricidade gerada por termelétricas a carvão mineral, localizadas em Santa Catarina. A lei determina a contratação da energia produzida a partir de fonte extremamente poluente até 2040, uma década após o prazo em que deveríamos estar contribuindo para o esforço global de redução das emissões.

O relatório destaca como ciência e tecnologia foram fundamentais para reduzir o custo de energias renováveis como solar e eólica e de baterias, e traz ainda um novo capítulo sobre inovação, desenvolvimento e transferência de tecnologia. Um sistema de inovação bem estabelecido, orientado por políticas bem projetadas, pode contribuir para a mitigação, adaptação e alcance das metas de desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, evitar consequências indesejadas. No entanto, mais uma vez, caminhamos na direção contrária. Vamos a um futuro incerto, menos preparados e mais dependentes de alternativas desenvolvidas por outros países em função do estrangulamento de nossa ciência.

A transição para economias de baixo carbono implica em profundas mudanças na estrutura econômica e consequências distributivas dentro e entre países. A equidade e justiça social continuam sendo elementos centrais para a solução da crise climática. Transições justas devem abrir oportunidades de empregos adequados a essa nova realidade, mas demandam novas habilidades e a capacitação de recursos humanos e instituições. A educação em um mundo sob aquecimento global deve contribuir para o debate da sustentabilidade e a justiça ambiental. A antecipação de novas necessidades demanda a identificação das questões certas, bons dados e estatísticas e uma visão de política pública educacional que preconize a construção desse futuro e não as cartilhas do passado.

Entre as lições da pandemia que o IPCC elencou para a mudança climática estão: o valor do gerenciamento de risco prospectivo, o papel da avaliação científica, ações preparatórias e a importância de instituições. Exatamente o oposto que os três últimos anos trouxeram para a educação, ciência e meio ambiente no Brasil.

(Artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade que reúne pesquisadores de todas as regiões brasileira)


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Este artigo foi inicialmente publicado pelo Correio Braziliense [Aqui!].

Jornal Nacional mostra a ciência sob ataque no Brasil

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As situações de assédio e coação contra cientistas brasileiros que têm sido relatadas aqui  e aqui neste blog finalmente chegaram na mídia corporativa brasileira, ocupando o chamado “prime time”, no caso uma matéria de cerca de 3 minutos que foi veiculada pelo Jornal Nacional da Rede Globo (ver vídeo abaixo).

É importante que se diga que esses ataques contra determinados pesquisadores são apenas uma faceta de um ataque frontal que está sendo realizado pelo governo Bolsonaro contra produção do conhecimento científico e contra a ciência nacional como um todo.

Esses ataques contra a ciência brasileira, como bem lembrou a professora Mercedes Bustamante da Universidade Nacional de Brasília (UNB), também estão se dando na forma de cortes drásticos no financiamento das pesquisas realizadas, principalmente, nas instituições de ensino superior públicas, sejam elas federais ou estaduais. E como Mercedes Bustamante tão bem colocou, sem conhecimento científico não haverá um futuro para o Brasil.

Assim, defender não apenas a liberdade dos cientistas brasileiras, mas a obrigatoriedade do correto financiamento das pesquisas é algo que extrapola a comunidade científica, e deveria ser objeto de uma decisão decisiva de todas as instituições que se pretendem democráticas no Brasil. Aceitar tanto os ataques aos cientistas, como o corte de recursos para as pesquisas que eles realizam, implicará em um atraso substancial no desenvolvimento econômico do nosso país.

O negacionismo científico do governo Bolsonaro precisa ser derrotado

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O negacionismo científico é uma marca do governo Bolsonaro: seja no controle da pandemia da COVID-19 ou no combate às queimadas e no desmatamento na Amazônia

Amanheci esta 3a. feira (22/09) lendo um interessante artigo assinado por Mercedes Bustamante, professora titular do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília e membro da Academia Brasileira de Ciências, no Direto da Ciência, onde ela nos prevenia sobre os riscos da negação da ciência sobre as chances do Brasil ter um futuro minimamente melhor do que o seu presente.

O artigo da professora Bustamante era uma espécie de sobreaviso para o conteúdo da fala do presidente Jair Bolsonaro na abertura da assembléia geral da ONU, e ela acertou no alvo. Em mais das falas que desafiam fatos evidentes, o presidente brasileiro ligou as gigantescas queimadas ocorrendo na Amazônia e no Pantanal aos hábitos de índios e pequenos agricultores que, nessa versão fantasiosa da realidade, apenas lutam pela sua sobrevivência.

Não tivéssemos visto cenas de aldeias sendo queimadas no Mato Grosso por incêndios provavelmente criminosos iniciados em grandes fazendas, nós poderíamos até ter um segundo de dúvida. Mas como a própria Polícia Federal já sinalizou para a ocorrência de incêndios criminosos na incineração de áreas inteiras do Pantanal, as alegações proferidas para o resto do mundo via um púlpito eletrônico por Jair Bolsonaro só servem mesmo para piorar a sua pessoal e a do Brasil enquanto um país cuja economia cada vez mais retrocede no tempo para se tornar dependente da exportação de produtos primários para gerar divisas em moedas fortes.

Mas um aspecto que precisa ser reforçado nessa atuação do presidente brasileiro é o cerco que está sendo montado contra as universidades federais, seja pelo encurtamento dos orçamentos ou pela indicação de reitores não eleitos pelas comunidades universitárias.  Esse cerco visa objetivamente cercear a liberdade de produção de conhecimento científico, de forma a possibilitar que a narrativa anti-científica explicitada na fala de hoje por Jair Bolsonaro se torna a única aceitável.

Prever que isto aconteceria foi fácil, tanto que já em em 11 de janeiro de 2019 (11 dias após o início do governo Bolsonaro), concedi uma entrevista ao jornal lisboeta Diário de Notícias, onde afirmei que a ciência brasileira estava sob ataque ideológico por parte da administração recém instalada em Brasília.  Mas se o ataque estava mais do que previsto, a pergunta que se coloca de forma cada vez mais candente é a seguinte: por que até a defesa da ciência brasileira não se tornou um ponto central na ação dos partidos políticos que operam no congresso nacional, estejam eles em que ponto da matriz ideológica estejam (com exceção é claro daqueles que sem nenhum pudor formam a base bolsonarista)? 

É que tão evidente que o ataque à ciência viria por parte do governo Bolsonaro é a necessidade de que haja a devida defesa dos cientistas brasileiros. É que sem ciência, o Brasil cada vez mais irá trilhar um futuro cada vez mais parecido com suas origens de colônia de exploração portuguesa, só que agora pelas mãos das potências que emergiram desde então.

Então a questão que está posta diante de todos é muito simples: ou se derrota o negacionismo científico do governo Bolsonaro ou voltamos a ser colônia de exploração.  Então qual vai ser o caminho que permitiremos que seja adotado pelos negacionistas que hoje governam o Brasil?