BR-319: abrindo caminho para o deslocamento indígena e a catástrofe ambiental

Por Monica Piccinini para o “The Canary” 

Desde que os colonizadores europeus pisaram no Brasil , os povos indígenas têm lutado uma batalha implacável para proteger suas terras e preservar seu modo de vida. Séculos de opressão os forçaram a alterar suas culturas, tradições e crenças, mas sua resiliência permanece inquebrável. Hoje, eles ainda sofrem invasões violentas de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e crime organizado, mantendo suas comunidades presas em uma luta constante pela sobrevivência.

proteção das terras indígenas do Brasil é crucial para a sobrevivência da floresta amazônica. No entanto, vários projetos – incluindo exploração de petróleo e gás, expansão do agronegócio, criação de gado, produção de biocombustíveis , mineração legal e ilegal , exploração madeireira e crime organizado – ameaçam esse ecossistema vital.

Rodovia BR-319: uma estrada para lugar nenhum para os povos indígenas

A reconstrução da rodovia BR-319 na Amazônia , um dos projetos mais prejudiciais ao meio ambiente do mundo, serve como um catalisador para essas atividades destrutivas. Com 885 km de extensão, a rodovia conecta a capital do Amazonas, Manaus, a Porto Velho, cortando áreas intocadas da floresta tropical. Uma reconstrução proposta de 408 km abriria uma porta de entrada para o desmatamento , crime e exploração corporativa, impactando diretamente mais de 18.000 indígenas.

A Amazônia desempenha um papel crítico na regulação do clima global e na geração de vapor de água que traz chuva para o Brasil através dos “rios voadores”. A reconstrução da BR-319 interromperá esse sistema vital, ameaçando a saúde da região e o equilíbrio ambiental geral.

O desmatamento e a degradação ao longo da BR-319 interromperão os “rios voadores”, o que pode levar a secas devastadoras, escassez de alimentos e água e ao colapso do setor agropecuário brasileiro, incluindo a agricultura familiar, desestabilizando, em última análise, a economia do país.

ONGs sustentam a BR-319 às custas de comunidades indígenas

Territórios indígenas não são meramente terra – eles são lugares vivos, respirantes, ricos em história, cultura e significado. Essas terras guardam o pulsar das tradições, onde comunidades coexistem em um equilíbrio delicado e sagrado com os animais, a água, as florestas e a própria terra. Seu vínculo com a natureza é profundo e sagrado, pois sua própria sobrevivência depende de sua saúde e força. É um vínculo construído com base no respeito e no cuidado, uma promessa de nutrir a terra que os sustenta, garantindo que ela floresça para as gerações futuras.

No entanto, esse vínculo agora está ameaçado. Nas áreas ao redor da rodovia BR-319, lideranças indígenas do Lago Capanã Grande e Baetas têm relatado graves violações de seus direitos e crescentes ameaças devido à degradação de seus territórios e à expansão da rodovia. Houve também uma tentativa alarmante de organizações não governamentais (ONG) de validar o protocolo de consulta com as comunidades.

Essa situação preocupante surgiu durante um evento na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que contou com a participação do Ministério Público Federal, um representante do Ministério do Meio Ambiente, uma ONG e lideranças indígenas. O encontro foi organizado pelo pesquisador Lucas Ferrante e coberto pela Revista Cenarium.

A questão foi mais detalhada no artigo BR-319: Narrativas, Negócios e Poder , publicado pela Revista Cenarium em fevereiro. De acordo com o artigo, a ONG Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) produziu um documento alegando falsamente que a comunidade indígena havia sido consultada e concordado com a reconstrução da rodovia, desde que uma reserva extrativista fosse criada para protegê-los. Chocantemente, a comunidade só soube dessa aprovação depois de assinar o documento.

Rodovia BR-319: uma ‘manipulação de direitos’ e ‘violação’ de terras tradicionais

Em 2020, Ferrante viajou pela rodovia BR-319, entrevistando indígenas e líderes impactados pela estrada. Desde então, suas opiniões sobre os efeitos da rodovia permaneceram consistentes. Um líder indígena do Lago Capanã compartilhou suas preocupações sobre o impacto da rodovia em sua aldeia (seu nome foi omitido para garantir sua segurança):

Gostaria de expressar minha indignação diante de todos em relação ao impacto da rodovia BR-319 nas terras indígenas do Lago Capanã. Isso nos traz problemas, manipulação de direitos, violação de nossas áreas tradicionais, ocupação por grileiros, poluição do nosso rio, destruição da nossa natureza.

E isso está causando grandes problemas no fluxo dos nossos rios. Córregos estão sendo soterrados. Aqui usamos a água do rio. O resultado dessa BR vai virar uma porta aberta para a entrada de criminosos, traficantes, todo tipo de droga, como já existe.

A população indígena vive de alimentos da natureza, a população indígena não vive de gado. Os povos indígenas vivem de objetos tradicionais. Eles vivem da subsistência da natureza e subtraem a natureza para si mesma para sua sobrevivência e protegem sua própria natureza. Eu sou contra essa pavimentação.

A expansão da BR-319 está impulsionando o rápido crescimento do agronegócio na região, particularmente em terras públicas não alocadas. Produtores de soja do Mato Grosso do Sul estão cada vez mais se mudando para Rondônia, comprando terras de pecuaristas que estão então se deslocando para o sul dentro do corredor da BR-319 para plantar soja. Essas terras são frequentemente confiscadas ilegalmente por meio de grilagem de terras, desmatamento ilegal ou despejos violentos de comunidades indígenas e tradicionais.

Essa situação chama a atenção para questões críticas como a Moratória da Soja, especialmente porque há tentativas crescentes de aboli-la, o que pode ter efeitos devastadores sobre o meio ambiente e as comunidades indígenas e tradicionais.

Lobby do agronegócio mira a Moratória da Soja

A Moratória da Soja do Brasil, estabelecida em 2006, é um acordo em que as empresas signatárias se comprometem a não comprar soja cultivada em terras desmatadas na Amazônia após julho de 2008. Este acordo tem sido uma ferramenta vital na luta contra o desmatamento. No entanto, agora ele enfrenta uma ameaça, pois o poderoso lobby do agronegócio do Brasil intensifica os esforços para desmantelá-lo. Como o maior produtor e exportador mundial de soja, as políticas agrícolas do Brasil têm imensas consequências globais.

Em outubro de 2024, o estado do Mato Grosso, principal produtor de soja, promulgou o Projeto de Lei 12.709/2024, efetivamente cortando incentivos fiscais para empresas que aderirem à Moratória da Soja. Em 19 de fevereiro, o presidente da Assembleia Legislativa do Mato Grosso, Max Russi, fez a seguinte declaração:

Estamos todos unidos em defesa de um dos pilares mais importantes da nossa economia: o agronegócio.

No mesmo mês, uma reportagem preocupante da Repórter Brasil revelou que a Cargill, uma das maiores exportadoras de grãos brasileiros, estava sugerindo que iria se distanciar das regras da Moratória da Soja.

Em 11 de março, o ministro da Agricultura do Brasil, Carlos Fávaro, organizou uma reunião com líderes do agronegócio e o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, que está supervisionando o caso referente à Moratória da Soja. Entre as figuras-chave estavam Blairo Maggi, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e mentor político de Fávaro, bem como representantes de grandes gigantes agrícolas, como o Grupo Bom Futuro e a Amaggi, a maior trading company agrícola do país.

Preocupações surgem dos papéis e conexões sobrepostos envolvidos. A influência significativa de Maggi tanto na formulação de políticas quanto no agronegócio, juntamente com laços familiares e os interesses adquiridos de Amaggi na Moratória da Soja, levantam questões sobre a imparcialidade dessas discussões.

Fávaro manifestou forte oposição à Moratória da Soja, chamando-a de “discrepante” e “pouco profissional”, e declarou firmemente sua posição:

Tentei demonstrar que a Moratória da Soja também não é constitucional e estou confiante de que o Ministro Dino agirá nesse sentido.

Comunidades indígenas: um mero obstáculo na busca do lucro pelo agronegócio

Se a Moratória da Soja for suspensa, os produtores de soja migrarão para a Amazônia, desencadeando desmatamento desenfreado, degradação ambiental, poluição e violação dos direitos indígenas, incluindo violência e invasão de terras. Isso também pode resultar em um aumento acentuado nas emissões de gases de efeito estufa, levando a consequências sociais e ambientais desastrosas.

Em uma nação onde o agronegócio impulsiona a economia, os territórios indígenas são vistos como obstáculos ao crescimento capitalista implacável. Com o Congresso brasileiro dominado pela poderosa bancada ruralista, os “ruralistas”, há pouca preocupação com os direitos indígenas, pois eles pressionam incansavelmente por leis que atendam a seus próprios interesses. Para eles, a sobrevivência das comunidades indígenas é um mero obstáculo em sua busca por lucro.

O futuro da Amazônia, suas comunidades indígenas e nosso planeta estão em risco. A reconstrução da BR-319 não é apenas uma estrada – é um movimento perigoso que pode destruir séculos de herança e prejudicar o meio ambiente além do reparo. Se o Brasil seguir esse caminho, o dano será permanente, deixando cicatrizes profundas na terra, em seu povo e no mundo.

À medida que o mundo se prepara para a COP30 , a urgência de proteger a Amazônia e seus ecossistemas nunca foi tão clara. As decisões tomadas nesta cúpula terão um impacto profundo na preservação da Amazônia, e devemos garantir que a sustentabilidade, os direitos indígenas e a proteção ambiental ocupem o centro do palco nessas discussões.


Fonte: The Canary

Exportações de soja e o nível de desmatamento nos diferentes biomas florestais brasileiros

As taxas de desmatamento e conversão associadas à expansão da produção de soja no Brasil aumentaram de acordo com os últimos dados da Trase para 2021–2022

Vista aérea do desmatamento da Amazônia no Brasil

Desmatamento na Amazônia. Imagem: Phototreat

Por Osvaldo Pereira e Paula Bernasconi para a “Trase”

O Brasil é o maior produtor e exportador de soja do mundo. Em 2023, produziu quase 152 milhões de toneladas de soja , das quais 127,3 milhões de toneladas foram exportadas como 80% de soja crua, 18% de torta de soja e 2% de óleo de soja. A soja foi a segunda maior exportação do Brasil, respondendo por 16% do total das exportações em 2023 e gerando uma receita anual de quase US$ 53 bilhões .

Desde 2019, o preço da soja aumentou devido à demanda por ração animal à base de soja da China e à guerra da Rússia na Ucrânia. Os preços da soja em 2024 se estabilizaram, mas permanecem altos, potencialmente incentivando mais desmatamento e conversão para expandir as plantações de soja.

Dados da Trase mostram que a quantidade de desmatamento e conversão ligada à produção de soja aumentou de 635.000 hectares (ha) em 2020 para 794.000 ha em 2022, enquanto a área total de soja plantada aumentou de 37,2 milhões de hectares (Mha) em 2020 para 41,2 Mha em 2022. Apesar desse aumento de 4 Mha na área total de plantações de soja (2020–2022), o Brasil viu uma redução de 14 milhões de toneladas na produção de soja entre 2021 e 2022. Esse declínio foi devido às secas causadas por La Niña na região sul do país .

A soja também pode ser um impulsionador indireto ao se expandir para pastagens de gado que foram o impulsionador original do desmatamento e conversão. Dos 39,8 Mha de soja plantados em 2023, 6,7% (2,6 Mha) eram pastagens em 2015 .

O Cerrado e os Pampas são focos ativos de desmatamento e conversão

As plantações de soja se expandiram mais no Cerrado e em 2022 foram associadas a 375.000 ha de desmatamento e conversão – uma área mais que o dobro do tamanho da cidade de São Paulo. Os Pampas também experimentaram altas taxas de conversão de vegetação natural para soja. Em 2022, 250.800 ha de soja foram colhidos em áreas recentemente desmatadas e convertidas nos Pampas.

Para efeito de comparação, a produção de soja na Amazônia em 2022 foi associada a 117.000 ha de desmatamento – muito menor do que nos biomas Cerrado e Pampas.

Embora apenas 6,3% do desmatamento de soja em 2022 tenha ocorrido na Mata Atlântica (50.000 ha), isso é particularmente preocupante, pois é ilegal desmatar florestas nativas da Atlântica desde 2006.

Observe que a versão mais recente do banco de dados MapBiomas usado pela Trase para calcular o desmatamento e a conversão nos Pampas, Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica contabiliza com mais precisão a perda de outras terras arborizadas e pastagens naturais do que as versões anteriores, resultando em estimativas mais altas da área total de desmatamento e conversão de soja. Isso é particularmente significativo nos Pampas, para os quais o desmatamento e a conversão total para soja em 2008–2023 mudam de 363.800 ha para 508.800 ha. Para todo o Brasil, no mesmo período, a estimativa muda de 2,07 milhões de ha para 2,56 milhões de ha.

A regulamentação da UE sobre desmatamento cria desafios e oportunidades para produtores brasileiros de soja

O regulamento de desmatamento da UE (EUDR) entrou em vigor em 2023 com obrigações vinculativas a partir de 30 de dezembro de 2025. Ele exigirá due diligence obrigatória nas importações de certas commodities agrícolas, incluindo soja do Brasil, para evitar produtos cultivados em terras convertidas ou desmatadas após a data limite de 31 de dezembro de 2020. O regulamento estabelece um sistema de benchmarking para classificar países como de baixo, padrão ou alto risco, para facilitar processos simplificados de due diligence por operadores que compram de países de baixo risco e permitir que autoridades competentes efetivamente visem a fiscalização.

Dados da Trase mostram que em 2022, apenas 370 de um total de 2.525 municípios produtores de soja foram responsáveis ​​por 95% do desmatamento e conversão para soja no Brasil (entre 2017 e 2022). Esses municípios representaram 58% da produção de soja do Brasil em 2022 (70 milhões de toneladas) e 52% das exportações (51 milhões de toneladas). Dos 370 municípios, 123 estão localizados na região do Matopiba, um grande hotspot responsável por 38% do total do desmatamento e conversão para soja em 2022. No estado do Rio Grande do Sul (bioma Pampas), 75 municípios produtores de soja foram responsáveis ​​por 33% do total do desmatamento e conversão vinculados à commodity em 2022.

Isso significa que a maioria das exportações de soja em 2022 está associada a menos de 5% do desmatamento e conversão de soja do Brasil, destacando que os riscos de não conformidade com a EUDR estão concentrados em certas regiões. Isso demonstra o valor do sistema de benchmarking da EUDR na classificação do risco de regiões de produção subnacionais, particularmente em países grandes como o Brasil, onde o desmatamento está concentrado em regiões específicas. Da mesma forma, o uso da avaliação de risco subnacional por autoridades competentes para direcionar verificações pode concentrar a fiscalização onde ela é mais necessária.

Exposição ao desmatamento dos mercados de exportação

A China continua sendo o mercado mais exposto ao desmatamento por causa de suas importações de soja, seguida pelo mercado interno do Brasil e pelas importações da União Europeia (UE).

A capacidade da Trase de vincular todas as exportações brasileiras de soja aos municípios de produção com base em dados disponíveis publicamente é um desafio para o período de 2020-2022 devido principalmente à falta de informações nos dados comerciais e à falta de informações sobre a propriedade do silo e da unidade de esmagamento do comerciante. Como resultado, 15–18% da soja comercializada em 2020–2022 (aproximadamente 20 milhões de toneladas) não podem ser vinculadas a um município específico de produção de soja (município desconhecido). Para contabilizar isso, os dados da cadeia de suprimentos de soja brasileira da Trase agora incluem a exposição ao desmatamento de empresas comerciais e mercados associados ao seu fornecimento de municípios desconhecidos.

Para fazer isso, a Trase primeiro atribui a exposição ao desmatamento a empresas e mercados importadores de acordo com sua origem em municípios produtores de soja conhecidos com base no desmatamento de soja específico do município por tonelada. Em segundo lugar, o desmatamento de soja restante não contabilizado é alocado a empresas e fluxos comerciais de mercado de importação originários de municípios desconhecidos. Semelhante à primeira etapa, o desmatamento por tonelada é calculado dividindo-se o desmatamento de soja restante pela produção total originária de municípios desconhecidos e atribuído a empresas e mercados com base em seu volume comercializado originário de municípios desconhecidos. Isso evita que países importadores e comerciantes com um volume maior de soja de origem desconhecida pareçam ter uma exposição menor ao desmatamento. Também permite a alocação de todo o desmatamento de soja do Brasil para cadeias de suprimentos nacionais e internacionais.

Para alguns países importadores, há uma diferença significativa na quantidade de soja e desmatamento que pode ser vinculada a municípios produtores de soja específicos. Por exemplo, em 2022, 97% das importações de soja da China e 96% de sua exposição ao desmatamento associada poderiam ser vinculadas a municípios produtores de soja, enquanto para a UE, apenas 58% das importações e 55% da exposição ao desmatamento poderiam ser vinculadas. Dadas essas diferenças, é importante que os usuários entendam que os países ou empresas importadores com um grau maior de origem desconhecida terão uma proporção menor de sua estimativa de exposição ao desmatamento que é específica para seu padrão de origem, pois sua exposição ao desmatamento de origem desconhecida é o desmatamento médio por tonelada de todos os fluxos comerciais desconhecidos.

Comerciantes com maior exposição ao desmatamento e conversão de soja

Os grandes comerciantes estabelecidos – Bunge, COFCO e Cargill – são os mais expostos ao desmatamento e conversão em sua cadeia de fornecimento de soja, respondendo respectivamente por 77.700 ha (9,6%), 67.800 ha (9%) e 55.100 ha (8%) em 2022. Em 2020–2022, a exposição da Bunge e da Cargill permaneceu estável, enquanto a exposição da COFCO aumentou significativamente de 27.100 ha em 2020. Isso se deve ao fornecimento da COFCO dos Pampas e, conforme observado acima, à capacidade aprimorada do Mapbiomas de detectar a conversão de outras terras arborizadas e pastagens naturais.

A NovaAgri, empresa brasileira de agronegócio e subsidiária da Toyota Tsusho Corporation, foi a quarta comercializadora mais exposta ao desmatamento e conversão em 2022, apesar de ficar apenas em sétimo lugar nas exportações de soja.

Conforme discutido acima para mercados de exportação, os dados da cadeia de suprimentos de soja brasileira da Trase agora incluem exposição ao desmatamento para soja originária de regiões de produção desconhecidas. É importante que os usuários entendam as implicações disso ao interpretar os dados sobre exposição ao desmatamento de empresas comerciais.

Compromissos de desmatamento zero fora da Amazônia ficam aquém

Em 2022, 59 milhões de toneladas de soja (79% do volume total) foram comercializadas por empresas com compromisso de desmatamento zero (ZDC).

A Moratória da Soja na Amazônia, um compromisso voluntário assinado por mais de 25 empresas, é a ZDC mais eficaz do Brasil. Em 2022, 92% da soja da região (7 milhões de toneladas) foi adquirida por empresas signatárias. As áreas cobertas pela moratória têm taxas relativas de desmatamento direto para soja muito menores do que outras regiões de produção de soja. A intensidade de desmatamento da produção de soja na Amazônia é de 3,2 hectares por 1.000 toneladas em 2022 em áreas cobertas pela moratória, em comparação com 5 hectares por 1.000 toneladas para a produção não coberta por nenhuma ZDC. Isso mostra a importância da moratória na promoção da produção sustentável de soja na Amazônia e a necessidade de resistir às tentativas de enfraquecê-la .

Fora da Amazônia, 73% da produção total de soja (52 milhões de toneladas) foi comercializada por empresas com uma ZDC. Apesar dessa cobertura, o desmatamento e a conversão para soja continuam altos em biomas como Cerrado e Pampas, o que significa que as ZDCs das empresas parecem ser muito menos eficazes na prevenção do desmatamento.

Emissões de carbono do desmatamento e conversão da soja

O desmatamento e a conversão ligados à expansão da produção de soja em 2022 resultaram na liberação de 121 milhões de toneladas de CO₂ – 9% das emissões anuais totais de mudança no uso da terra do país . A soja substituiu três vezes mais vegetação nativa no Cerrado do que na Amazônia, mas as emissões do desmatamento foram apenas 42% maiores no Cerrado (49 milhões de toneladas de CO₂) quando comparadas ao bioma Amazônia (28 milhões de toneladas de CO₂).

Os autores agradecem aos pesquisadores e cientistas de dados que contribuíram para esta análise: Harry Biddle, Florian Gollnow, Michael Lathuillière, Nicolás Martín, Carina Mueller, Vivian Ribeiro e Clément Suavet.

Explore nossos novos dados sobre a cadeia de suprimentos de soja do Brasil

Uma explicação detalhada da metodologia da Trase está disponível em: Trase. (2025). SEI-PCS Brasil soja v2.6 supply chain map: Data sources and methods. Trase. https://doi.org/10.48650/X24R-YK29

Para referenciar este artigo, use a seguinte citação: Pereira, O., & Bernasconi, P. (2025). Exportações brasileiras de soja e desmatamento. Trase. https://doi.org/10.48650/Q48G-MJ07


Fonte: Trase

Para salvar a Amazônia , não bastará conter o desmatamento para reverter o estrago causado no governo Bolsonaro

amazon deforestation

Uma observação dos dias iniciais do governo Lula e das ações da sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, indica que, ao menos no discurso, o governo federal voltará a agir para conter o desmatamento e a ação desenfreada de uma ampla gama de saqueadores que agiu livremente desde janeiro de 2019.  Um dos problemas a ser tratado inicialmente tem a ver com a retomada das estruturas de comando e controle que permitiram o controle das taxas de desmatamento entre 2003 2016, as quais foram explicitamente desmontadas por Jair Bolsonaro e seu anti-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Mas essa é apenas uma das muitas questões que terão de ser atacadas sob pena dos discursos iniciais não terem como consequência as ações que os mesmos ensejam.

Para mim que tenho estudado as diferentes dimensões do problema amazônico, um passo que precisa ser tomado para que haja alguma chance de se alcançar um cenário mais positivo na Amazônia é reconhecer que o processo de desmatamento não é mais o único (e talvez nem o mais importante) a afetar a sustentação das florestas amazônicas, pois hoje a degradação florestal se tornou algo igualmente ou até mais preocupante, como já ficou demonstrado no artigo que foi publicado pela revista Science em setembro de 2020, dos quais sou m dos autores. Entender que há uma dinâmica que combina desmatamento e degradação implicará na necessidade de superar compromissos anteriores com o chamado “Desmatamento Zero”, pois de nada adiantará não desmatar mais, se for permitido que diferentes atores continuem degradando legal ou ilegalmente as florestas amazônicas.

A partir disso há que estabelecer metas sérias para não permitir a intrusão de usos da terra que hoje são legitimados a partir do chamado “desmatamento legal” ou de compromissos feitos com base em critérios de permitir determinados plantios em áreas de desmatamento antigo, como foi o caso da Moratória da soja“. Tais compromissos só escondem a condescendência com o avanço da fronteira agrícola, pois a comunidade científica já demonstrou que a pressão por mais produção só é resolvida pelo aumento da área desmatada, como é o caso das culturas de exportação como soja, milho e cana de açúcar.

Além disso, há que se superar a ideia de que os problemas da Amazônia só serão resolvidos com a doação de bilhões de dólares por parte de governos estrangeiros, como no caso do Fundo Amazônia. Uma análise mais detalhada das reservas brasileiras mostra que o Brasil possui muito dinheiro estocado na forma de reservas, mas que a ação preferencial no seu uso é pelo pagamento da impagável dívida pública que só faz mesma a alegria das grandes instituições financeiras globais. De certa forma, quando países como Noruega e Alemanha “doam” dinheiro em troca de preservação ambiental, seus governos estão agindo para proteger os interesses dos controladores de grandes fundos financeiros globais que lucram com a especulação em torno da dívida brasileira.

Há ainda que se citar a necessidade de, a partir da reconstrução das cadeias de comando e controle, agir para identificar e punir os que se beneficiam da pilhagem das riquezas amazônicas, incluindo as grandes corporações de tecnologia que hoje estão entre as principais consumidoras do ouro que é retirado ilegalmente de terras indígenas. Mas o mesmo pode ser dito da madeira, pois um dos méritos (ou seria deméritos?)  da gestão de Ricardo Salles foi mostrar que há um fulgurante mercado internacional para a madeira roubada de unidades de conservação, terras indígenas e áreas públicas.

Por último, mas não menos importante, o governo Lula deveria abandonar imediatamente projetos para pavimentar estradas ( a polêmica BR-319 é um perfeito exemplo disso) e construir novas hidrelétricas. É que essa fórmula que mistura pavimentar e represar está na base dos usos insustentáveis da terra na Amazônia, e não será adicionando mais dessas estruturas que vamos chegar a um novo cenário. Achar que se poderá conter a destruição oferecendo as ferramentas que as possibilitam beira um exercício de auto enganação ou de um desejo  subliminar de deixar que a boiada continue passando.

Por todos os elementos que apontei acima, entendo que não será suficiente se apostar em um cenário pré-2016 para que se garanta as mudanças que a situação amazônica requer neste momento.  É que o avanço da franja de desmatamento e da degradação já coloca a Amazônia diante daquilo que diversos cientistas já definiram como um “ponto de não retorno“.  Isso implica que há que se avançar não apenas no entendimento do tamanho do problema, mas também de um compromisso com a criação de um modelo de desenvolvimento que além da dependência de se desmatar e degradar para gerar algum nível de atividade econômica.

Moratória da soja: brecha continua permitindo desmatamento em fazendas de soja na Amazônia brasileira

Dados de satélite mostram floresta tropical desmatada para gado e milho em fazendas que cultivam soja, minando as alegações de que a cultura está livre de desmatamento

desmatamentoDesmatamento em Nova Xavantina, Mato Grosso, Brasil. O desmatamento na Amazônia atingiu uma alta de 15 anos no ano passado. Fotografia: Amanda Perobelli/Reuters

Por Lucy Jordan, Alice Ross, Elisângela Mendonça, Andrew Wasley e Liam Slattery para o “The Guardian”

Mais de 1.000 quilômetros quadrados de floresta amazônica foram derrubados para expandir fazendas de soja no estado brasileiro de Mato Grosso em um período de 10 anos, apesar de um acordo para protegê-lo, de acordo com uma nova investigação.

Em 2006, foi introduzida a histórica moratória da soja na Amazônia , proibindo a venda de soja cultivada em terras desmatadas após 2008. De 2004 a 2012, o desmatamento na Amazônia caiu 84% .

Mas nos últimos anos o desmatamento subiu vertiginosamente , atingindo uma alta de 15 anos no ano passado – encorajado, dizem os ativistas, pela retórica e políticas anticonservacionistas do presidente Jair Bolsonaro .

Com a moratória se aplicando apenas à soja, os agricultores puderam vender a safra livre de desmatamento, enquanto ainda limpavam a terra para gado, milho ou outras commodities.

Para mapear o desmatamento, pesquisadores da ONG brasileira Instituto Centro de Vida, juntamente com o Unearthed do Greenpeace e o Bureau of Investigative Journalism, analisaram dados de satélite de terras onde a soja estava sendo cultivada no estado de Mato Grosso, que se estende pela parte sul do Amazonas. O estado produz mais soja do que qualquer outro lugar no Brasil.

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Eles descobriram que, embora os estudos mostrem que a moratória impediu com sucesso a conversão direta da floresta tropical em campos de soja, o desmatamento continuou. Os agricultores estavam limpando a terra para cultivar outras commodities além da soja, com 450 quilômetros quadrados de floresta tropical – equivalente em tamanho à Grande Manchester – derrubados no Mato Grosso entre 2009 e 2019, de acordo com a pesquisa.

Holly Gibbs, professora de geografia e estudos ambientais da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, disse: “Ao mesmo tempo em que os produtores de soja cumprem a moratória, eles continuam desmatando ilegalmente para outros fins”.

As revelações minam as alegações dos supermercados de que a soja não está mais ligada à perda da floresta amazônica.

A soja é uma commodity chave usada por produtores de leite, gado, porcos e aves na Europa e no resto do mundo para alimentar seu gado.

A Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), principal associação de comerciantes de soja no Brasil, disse que a moratória resultou em reduções significativas do desmatamento em municípios produtores de soja.

“Se a soja for plantada em polígonos [uma área entre um conjunto especificado de coordenadas] com desmatamento após 2008, toda a fazenda é considerada não compatível com a moratória da soja”, disse a Abiove em comunicado.

Análises anteriores sugeriram que mais de 1 milhão de toneladas de soja usadas por pecuaristas do Reino Unido para produzir frango e outros alimentos em 2019 podem estar ligadas ao desmatamento.

Gibbs disse que a pressão dos compradores de soja na Europa e nos EUA é necessária para parar o desmatamento. “A legislação na UE, no Reino Unido e nos EUA aumenta as apostas desse desmatamento em andamento nas propriedades de soja. A indústria da soja poderia considerar ampliar a moratória da soja na Amazônia para fechar a porta a todo o desmatamento relacionado à soja.”

O professor Raoni Rajão, especialista em agricultura da Universidade Federal de Minas Gerais, disse que as regulamentações atuais são insuficientes. “Apenas as áreas específicas onde a soja é cultivada são monitoradas, não toda a propriedade. Os agricultores já perceberam essa brecha.”

O Retail Soy Group, que representa os principais varejistas, incluindo Sainsbury’s, Tesco, Lidl e Waitrose, reconheceu que há limitações na moratória e disse que as novas alegações “destacam ainda mais a necessidade de fortalecer as proteções legais desses ecossistemas vitais”. Inscreva-se na atualização mensal de Animals Farmed para obter um resumo das maiores histórias de agricultura e alimentação em todo o mundo e acompanhar nossas investigações. Você pode nos enviar suas histórias e pensamentos em animalsfarmed@theguardian.com

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Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].

Acionistas da Bunge votam para obrigar empresa a reduzir desmatamento associado à sua cadeia de suprimentos de soja

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Recentemente, houve uma série de votos de acionistas a favor de empresas que tomem medidas para adotar ou fortalecer compromissos de combate ao desmatamento. É provável que essa tendência aumente à medida que o desmatamento se torne uma parte importante da narrativa da mudança climática e os investidores aumentem sua compreensão de como os vínculos com a floresta perdida podem levar a uma variedade de riscos financeiros.

Um dos maiores desenvolvimentos ocorreu no início deste mês, quando os acionistas da trader de commodities Bunge votaram esmagadoramente a favor no sentido da empresa tomar medidas mais fortes para lidar com o desmatamento em sua cadeia de suprimentos. A proposta, aprovada por 98% dos acionistas, foi liderada pela Green Century Capital Management, juntamente com a Storebrand Asset Management.

Em uma reviravolta sem precedentes, o Conselho de Administração da Bunge recomendou que os acionistas votassem a favor de uma proposta para avaliar “se e como [a Bunge] poderia aumentar a escala, o ritmo e o rigor de seus esforços para eliminar a conversão da vegetação nativa em sua cadeia de abastecimento de soja. ”

A Bunge e outros atores nas cadeias de suprimentos de commodities agrícolas estão expostos a estarem vinculados ao desmatamento, o que pode levar à volatilidade da cadeia de suprimentos, acesso restrito a capital, regulamentações rigorosas nos mercados de consumo e perda de acesso ao mercado. A votação da Bunge destaca os compromissos crescentes de empresas, investidores e financiadores para alcançar práticas de desmatamento líquido zero para reduzir riscos.

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A votação também reflete uma maior pressão de investidores ativistas para que as empresas abordem os riscos relacionados às mudanças climáticas, incluindo a perda de florestas para a produção de commodities, e pode levar a um maior envolvimento dos investidores com o desmatamento, o que por sua vez pode levar outras empresas a tomarem medidas semelhantes. “A votação deve ser um sinal para outras empresas da cadeia de abastecimento da soja brasileira que os investidores estão em alerta máximo sobre esses riscos”, disse Leslie Samuelrich, presidente da Green Century.

A votação da Bunge ocorre logo após uma série de contratos de sucesso da Green Century. Por exemplo, em abril, ADM e JPMorgan Chase adotaram compromissos, que se seguiram à votação dos acionistas da Procter & Gamble no ano passado para a empresa eliminar o desmatamento em sua cadeia de suprimentos. Também neste mês, 76% dos acionistas da Bloomin Brands, uma empresa global de jantares casuais, apoiaram uma proposta da Green Century para reduzir sua pegada de carbono, incluindo ações para eliminar a perda florestal em sua cadeia de suprimentos. “Nunca vimos uma temporada de acionistas como esta para enfrentar os riscos climáticos e de desmatamento, com votos sem precedentes na Bunge Limited e na Procter & Gamble”, disse a defensora dos acionistas da Green Century, Annalisa Tarizzo. “Os investidores estão demonstrando um novo entendimento de que reduzir as emissões de gases de efeito estufa e proteger as florestas tropicais do mundo, da Indonésia às savanas únicas no Brasil, não são apenas importantes para o planeta, mas também seus portfólios.”

Embora o desenvolvimento da Bunge seja visto como positivo para os esforços pela redução do desmatamento causado pela soja no Cerrado brasileiro, a votação não é vinculativa, o que significa que a Green Century e outros investidores devem manter pressão sobre o comerciante e seus pares. A Green Century diz que a Bunge pode implementar uma abordagem “suspender e engajar”, ​​que é frequentemente usada por traders e refinadores no mercado de óleo de palma do sudeste da Ásia. Com esta abordagem, uma empresa irá suspender qualquer fornecedor ligado ao desmatamento e, em seguida, envolver o fornecedor para influenciá-lo a reduzir a atividade ligada ao desmatamento. A Bunge também pode aderir ao Manifesto do Cerrado, que já foi assinado por 160 empresas que se comprometeram a eliminar o desmatamento no Cerrado. A Bunge e outros comerciantes concordaram com a Moratória da Soja na Amazônia, um acordo de toda a indústria para interromper a compra de soja em terras desmatadas na Amazônia, mas não assinaram o Manifesto do Cerrado.

Os comerciantes têm sido criticados por terem datas-alvo em seus compromissos que permitem uma janela muito ampla para a eliminação do desmatamento em suas cadeias de abastecimento. Por exemplo, a COFCO tem  como  meta 2023, enquanto a Cargill tem como meta 2030. Os comerciantes enfrentam desmatamento e exposição ao risco de incêndio florestal. A pressão dos investidores deve aumentar sobre a Bunge e seus pares neste verão, durante a temporada de incêndios. A análise da Chain Reaction Research  mostra  que os comerciantes de soja no Cerrado em 2020 viram um grande número de incêndios em uma área de 25 km de seus silos, semelhante aos níveis vistos em 2019. A expansão da produção para atender à demanda do mercado de exportação de soja brasileira está exacerbando estes riscos.

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Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pela Chain Reaction Research [Aqui!].

Europa aperta o cerco contra produtos brasileiros

Grupos varejistas, ativistas e até a UE vêm defendendo a retirada de itens do Brasil das prateleiras em resposta à política ambiental do governo Bolsonaro. Há 14 anos, boicote semelhante desencadeou a moratória da soja.

desmata 1Área devastada na Amazônia: grupos que pedem boicotes tem que aprovação do “PL da grilagem” acelere desmatamento

Diante de medidas recentes do governo do presidente Jair Bolsonaro, organizações não governamentais e redes varejistas europeias vêm endurecendo o discurso a favor do boicote a produtos agroalimentares brasileiros. De um mês para cá, movimentos do tipo têm ocorrido na Alemanha e no Reino Unido. No ano passado, houve boicote também na Suécia. Fora da Europa, uma organização nos Estados Unidos pede medidas semelhantes.

Nesta sexta-feira (19/06), a Comissão Europeia, órgão executivo da União Europeia (UE), anunciou querer uma estratégia mais incisiva para evitar que produtos oriundos de áreas de desmatamento na Amazônia cheguem a prateleiras dos supermercados de países do bloco.

Veja o Especial da DW Brasil sobre a Amazônia

A situação preocupa o governo brasileiro. Em junho do ano passado, no contexto da comoção internacional decorrente das queimadas na Amazônia, o Itamaraty enviou circular às embaixadas solicitando informações a respeito de eventuais boicotes sendo observados em outros países.

Pouco antes, em 27 de maio de 2019, a Embaixada do Brasil em Estocolmo, na Suécia, havia reportado ao governo Bolsonaro que a rede de supermercados Paradiset tinha decidido retirar os produtos de origem brasileira de suas prateleiras em decorrência da aprovação, nos cinco primeiros meses da gestão Jair Bolsonaro, de 169 novos pesticidas pelo Ministério da Agricultura – um recorde desde 2005.

Neste ano, entre 20 e 25 de maio, o tema voltou à tona nos telegramas de embaixadas brasileiras. Mensagens emitidas pelos postos de Roma, na Itália, e Londres, na Inglaterra, observaram o surgimento de novos movimentos de boicote a produtos nacionais. Uma dessas cartas afirmava que o veto a produtos brasileiros por redes britânicas de supermercados – e filiais de empresas alemãs no Reino Unido – estava condicionado à aprovação do Projeto de Lei 2633 (antiga Medida Provisória 910), o chamado “PL da grilagem”, que prevê regularização fundiária de terras ocupadas da União.

Outro telegrama citava um estudo realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que prevê que a medida, se aprovada, aceleraria o desmatamento de 11 mil a 16 mil quilômetros quadrados da Floresta Amazônica. A mesma carta informava que as redes inglesas de supermercados podem se sentir compelidas a aderir a um boicote, se o Brasil aprovar uma legislação que propicie o aumento do desmatamento.

Os documentos enviados ao Itamaraty citavam uma carta, publicada em 19 de maio e assinada por 47 empresas, grupos e associações empresariais com operações do Reino Unido – entre os signatários, companhias como Burger King e Tesco. Direcionada aos deputados e senadores brasileiros, o texto citava os incêndios florestais recordes do ano passado e informava estarem os empresários “profundamente preocupados” com o “PL da grilagem”.

A carta encerrava com uma ameaça velada de boicote. “Queremos continuar a buscar e investir no Brasil […] Instamos o governo brasileiro a reconsiderar sua posição e esperamos continuar trabalhando com parceiros no Brasil para demonstrar que o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental podem caminhar juntos.” Conforme telegrama enviado ao Itamaraty, os signatários da carta representam 96,8% dos varejistas britânicos.

Em 9 de junho, o cenário ganhou novo episódio. A ONG alemã Campact lançou uma petição online pedindo que redes de supermercados boicotem produtos brasileiros se o “PL da grilagem” for aprovado. Conforme afirmou à DW Brasil a ativista Svenja Koch, da organização, até a manhã desta sexta-feira, 360 mil assinaturas foram coletadas para a petição.

“Duas redes de supermercados alemãs já assinaram: Aldi Süd e Rewe”, relata. “Pedimos que as diretorias das grandes redes de supermercados alemãs sigam o exemplo de muitos varejistas do Reino Unido e assinem uma carta aberta ameaçando boicotar produtos do Brasil se o PL for em frente.”

Ela vislumbra que as cinco grandes redes de supermercados da Alemanha participem, o que significaria 70% do mercado. “Eles são poderosos, e a decisão deles influencia o comércio internacional”, comenta.

Rejeição por parte de consumidores

Mikael Linder, especialista em marketing agroalimentar e desenvolvimento rural e pesquisador da Universidade Livre de Bolzano, na Itália, afirma que tem se deparado com uma rejeição, tanto entre consumidores italianos como franceses, a produtos de origem brasileira.

“São pessoas que afirmam não desejar comprar, por exemplo, carne bovina brasileira, justificando que com isso estariam fomentando a destruição da Amazônia e outros prejuízos ao meio ambiente”, afirma ele, à DW Brasil.

Segundo informações obtidas por ele, vários supermercados europeus, atentos a esse fenômeno, estão reduzindo o espaço nas gôndolas para mercadorias brasileiras. “A médio prazo, isso pode afetar muito as vendas. A imagem do produto brasileiro está prejudicada”, diz o pesquisador.

Após questionamento da DW Brasil sobre o impacto que tais movimentos podem representar para o comércio agroalimentar brasileiro, João Adrien, assessor para assuntos socioambientais do Ministério da Agricultura, afirmou que boicotes do tipo “somente prejudicam os produtores rurais que produzem com sustentabilidade e acessam o mercado internacional.”

“Afinal de contas, o desmatamento na região ocorre principalmente de atividades ilegais e não pela agricultura brasileira”, afirma, apontando que a deflorestação decorre de “problemas de regularização fundiária e ordenamento territorial”. “Tais embargos somente prejudicam a renda do produtor rural e a capacidade de investir em tecnologias ainda mais sustentáveis”, diz.

Em evento do Ministério ocorrido nesta quarta-feira, Bolsonaro afirmou que, apesar do aumento do desmatamento na Amazônia, o país é um sucesso em termos de preservação. “Nós somos um exemplo na questão ambiental. Nos criticam lá fora de forma cruel e de forma não verdadeira”, afirmou.

Para o pesquisador Tiago Reis, que estuda ações de combate ao desmatamento e de uso do solo na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, os movimentos contra produtos brasileiros refletem a consciência do consumidor e vêm na esteira de outros ocorridos anteriormente.

“Veja por exemplo os movimentos de boicote a empresas que testavam produtos em animais, os boicotes a marcas famosas de chocolate por estarem ligadas à destruição de habitats de orangotangos para produção de óleo de palma, empresas de café que usavam trabalho escravo, entre outros”, enumera ele, à DW Brasil.

No ano passado, Reis foi um dos idealizadores de uma carta aberta publicada na revista Science propondo que a importação pela União Europeia de produtos possivelmente ligados a desmatamento no Brasil fosse usada como alavanca para negociar medidas “de proteção aos direitos humanos, participação de povos indígenas nas negociações e a implementação de instrumentos de verificação do desmatamento”.

Em tramitação na Câmara dos Deputados, o “PL da grilagem” é alvo de criticas porque pode permitir a regularização de áreas ocupadas ilegalmente pertencentes à União. No mês passado, a revista Nature Sustainability publicou um estudo – um dos autores é Tiago Reis – demonstrando que a regularização fundiária descolada de medidas e políticas socioambientais pode promover um aumento do desmatamento. “Em pequenas e médias invasões, porque permite a integração delas a mercados formais”, explica Reis. “Em grandes invasões, porque oferece um incentivo e uma recompensa à grilagem.”

Moratória da soja

Um exemplo histórico de movimento de boicote que funcionou foi o ocorrido na década de 2000 – e que acabou resultando na criação da chamada moratória da soja, pacto instituído em 2006. Pelo acordo, firmado entre governos, agroindústria e organização de defesa ambiental, ninguém compraria soja produzida em região de desmatamento da Amazônia. Dados divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente em 2018 mostram que deu resultados: a média anual de desmatamento nos 89 municípios que integram o grupo caiu 85% depois de firmado compromisso.

“A moratória da soja previne que a floresta amazônica seja desmatada diretamente para soja. Não resolve todo o problema porque a floresta continua sendo desmatada para outros usos, e também porque nem todas as empresas de soja são signatárias do acordo, portanto, há ainda mercado para soja com desmatamento e formas indiretas de contornar a verificação”, avalia Reis. “Mas com certeza a moratória oferece um exemplo e um sinal que desestimulou muito o desmatamento para soja.”

Para atrair a pressão popular, o Greenpeace liderou um movimento, entre 2004 e 2006, para que os consumidores boicotassem a rede de fast food McDonald’s. “Eles diziam, basicamente, que ‘se você come no McDonald’s, você come a Amazônia'”, lembra Reis. “Foi um sucesso, e a empresa cobrou ação imediata de seus fornecedores, que responderam.”

Além da Europa, também há movimentos populares nos Estados Unidos. Criado em 2018, o Boycott Brazil afirma que “está focado em todos os produtos brasileiros não certificados como sustentáveis”, principalmente “a carne bovina, pois as pastagens são responsáveis por dois terços do desmatamento atual”.

Conforme relatou uma das ativistas do movimento à DW Brasil, as críticas são as políticas dos governos de Bolsonaro e de Donald Trump. Presente nas redes sociais, o grupo pretende lançar um site até o fim do ano para intensificar suas ações.

“Estamos educando os consumidores sobre quais produtos comprar, em vez de tentar um boicote a certos varejistas, o que provavelmente não seria bem-sucedido”, explica ela, que pede para não ser identificada por temer retaliações.

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Este artigo foi originalmente publicado pela Deutsche Welle [Aqui!].

Amazônia sob ataque furioso: latifundiários sojeiros querem fim da “moratória da soja”

moratória da sojaLatifundiários querem o fim da “moratória da soja” que desde 2006 vem organizando o uso de terras amazônicas para cultivos de soja

Depois do fim da proibição dos grandes plantios de cana de açúcar na Amazônia e no Pantanal, os setores mais atrasados do latifúndio agro-exportador querem acabar com a chamada “moratória da soja” que, em tese, impede a implantação da monocultura de soja em áreas recentemente desmatadas nos biomas amazônicos. É que nos informa hoje o jornal Valor Econômico em uma matéria intitulada “Governo e agricultores unem forças contra moratória da soja na Amazônia“. 

A matéria assinada pelos jornalistas Marcela Caetano, Luiz Henrique Mendes e Camila Souza Ramos informa que sob os auspícios de uma tal de “Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), apoiada pelo governo Bolsonaro, uma ação será impetrada no  Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) contra as tradings agrícolas que são encarregadas de fazer observar a “moratória sa soja“.

Primeiro, é importante notar que a moratória da soja é o nome que se deu ao pacto firmado entre as entidades representativas dos produtores de soja no Brasil, ONGs  ambientais e, mais tarde, do próprio governo federal, prevendo a adoção de medidas contra o desmatamento da Amazônia, e que vem sendo supostamente observada desde 2006.

Eu disse supostamente observada porque sou o co-autor de um artigo na revista Acta Amazônica onde estudando a dinâmica da monocultura da soja em Rondônia se verificou que o alcance da moratória da soja é mais limitado do que a propaganda em torno dela permite acreditar. 

Expansão da área plantada com monocultura de soja em Rondônia (2000-2014) indicou a presença de plantios em áreas recentemente desmatadas

Mas o fato é que ruim com a “moratória da soja”, muito pior sem ela. É que sem essa trava mínima, o campo de forças que opera nas terras já desmatadas na Amazônia será alterado e, muito provavelmente, causará uma aceleração do desmatamento. A verdade é que as diversas monoculturas que estão tendo suas áreas plantadas aumentadas (por exemplo: cana, soja e algodão) acabam deslocando para outros pontos a atividade pecuária, principal “consumidora” de áreas cobertas por florestas nativas.

soja 1Opção preferencial pelos mercados asiáticos para venda da soja produzida na Amazônia aparece como estratégia para escapar dos mecanismos de proteção ambiental

Assim, ao pressionar pelo fim da “moratória da soja”, o que a Aprosoja Brasil e o governo Bolsonaro pretendem de fato é aumentar a área desmatada. Esta é a verdade inescapável de mais esse movimento contra a proteção ambiental dos biomas amazônicos.

Um erro fatal (mais um, aliás) que está sendo cometido nesse processo de extinção de proteções ambientais apareceu na declaração do presidente da Aprosoja Brasil,  Bartolomeu Braz que, menosprezando as punições que podem advir pelo rompimento da “moratória da soja, disse não temer as retaliações europeias porque “nosso mercado hoje é majoritariamente o asiático. A demanda europeia é irrisória. Além disso, quem tem soja somos nós. Quero saber se existe soja mais sustentável que a nossa”.  O erro aqui é acreditar que os europeus e suas tradings não possuem relevância na circulação da soja brasileira mesmo para os mercados asiáticos.

Outro aspecto que continua sendo aparentemente desprezado é a possibilidade cada vez mais concreta de que a soja brasileira passe por um embargo mundial por causa do excesso de agrotóxicos, a começar pelo herbicida Glifosato. Lembremos que em janeiro de 2019, a Rússia informou ao Brasil que se não houvesse uma diminuição do total de resíduos de Glifosato, o país pararia as importações de soja brasileira. De lá para cá, desconheço qualquer medida para atender a demanda russa. Por outro lado, a Anvisa agiu para facilitar ainda mais o uso do Glifosato no Brasil ao rebaixar o seu nível de toxicidade.

O crucial aqui é que somadas todas as ações tomadas e em vias de serem tomadas pelo governo Bolsonaro e seus aliados paroquiais dentro do latifúndio agro-exportador, o que estamos presenciando é uma tentativa de desmontar completamente todas as estruturas de governança colocadas em funcionamento para proteger a Amazônia e o Cerrado. Esta é a verdade mais óbvia de todas essas ações.  A aposta é que o resto do mundo assistirá a isso de forma passiva e não reagirá ao aumento da perda de biodiversidade e das emissões de gases estufa por causa do aumento do desmatamento amazônico, sem que ocorram prejuízos nas relações comerciais. Resta saber se a mão brasileira terá cartas suficientemente boas para segurar esta aposta.

O licenciamento ambiental flex e a expansão de monoculturas na Amazônia: uma mistura explosiva

Uma das ideias mais propagadas sobre o controle do desmatamento na Amazônia tem sido a de que se pode por mediações entre o Estado, organizações ambientalistas e o latifúndio agro-exportador é possível deter o avanço da perda florestal em áreas ainda coberta por vegetação primária.  Um dos exemplos desse argumento de que acordos setoriais seriam ferramentas viáveis para se chegar ao controle do desmatamento é a chamada “Moratória da Soja” (Aqui!).

Como conheço parte da Amazônia a partir de mais de duas décadas de trabalho de campo, sempre me coloquei na posição de que nada pode substituir a ação do Estado, seja como órgão fiscalizador ou como implementador de regras que coibam efetivamente o avanço sobre as áreas cobertas por florestas. 

Essa minha posição não é majoritária sequer dentro da comunidade científica que se tem ocupado de estudar os impactos do avanço de diversas monoculturas para o interior da Amazônia brasileira.  Aliás, se examinarmos a produção cientifica recente sobre esse assunto, encontraremos diversos artigos saudando a efetividade da Moratória da Soja na contenção da derrubada de florestas na Amazônia.

Pois bem, depois de vários anos de trabalho, eu e outros quatro colegas acabamos de ter publicado um artigo  intitulado “Spatiotemporal mapping of soybean plantations in Rondônia, Western Brazilian Amazon” na tradicional revista científica “Acta Amazonica” onde demonstramos que, pelo menos no caso do estado de Rondônia,  a monocultura de soja está ocupando áreas que previamente se encontravam cobertas por florestas nativas (Aqui!).

A tabela e a figura que vão abaixo mostram não apenas a magnitude da expansão da monocultura de soja entre 2000 e 2014, mas também sinaliza que Rondônia pode estar se tornando uma nova fronteira da soja, e potencialmente uma porta de entrada para os estados do Acre e do Amazonas.

Considero que os resultados que estamos apresentando neste artigo ajudam a entender a pressa da bancada ruralista em isentar os grandes latifúndios do processo de licenciamento ambiental. É que não apenas há pressa para incorporar novas áreas no ciclo de produção de monoculturas, como provavelmente em breve aparecerão outros trabalhos mostrando que a derrubada de florestas já ocorreu sem que fosse feito o devido licenciamento ambiental. Em outras palavras, é juntar a fome com a vontade de comer.

O problema é que se não houver uma rápida ação para impedir o esfacelamento do licenciamento ambiental, o que acabamos de demonstrar neste artigo será apenas uma previsão tímida do que poderá ocorrer na Amazônia em termos de derrubada de florestas nativas.

E, finalmente, a partir dos resultados que acabamos de publicar, espero novas e mais acuradas avaliações da “Moratória da Soja”. É que, pelo menos no caso de Rondônia, ela não funcionou como tem sido propagandeado por sojicultores, ambientalistas e por parte da comunidade científica.