
Uma das características mais recorrentes da Humanidade, que parece ter ficado mais aguda no pós pandemia (é o que dizem alguns cientistas médicos) é a falta de memória. Mal saímos de tragédias, assim que nos recuperamos delas, passamos aos comportamentos de riscos que concorreram para que elas tivessem acontecido.
Desastres climáticos, desastres de trânsito, colapsos de estruturas, como pontes, prédios, excessos cometidos durante uma vida toda, que resultam em doenças graves, etc. Tão logo o pior acaba, a gente retoma o caminho rumo aos abismos.
Na política, essa circunstância é ainda pior, porque ela tende a ser seletiva, como se a hipocrisia em usar contra o outro aquilo que te atingiu, ou que, um dia, pode atingir a todos, fosse garantir algum futuro para aquele que se arrisca.
Não faz muito tempo que o protagonismo judicial arrasou a democracia brasileira. Deixamos de lado os detalhes conhecidos por todos, e lembramos que aquele terremoto resultou em um desvio dramático da História, sem questionar aqui se você é contra ou a favor a essa ou aquela força política, que tenha sido prejudicada ou beneficiada com a República de Curitiba.
O fato é que quase tudo que foi feito, foi desfeito. Se no planalto Lula e o PT foram os alvos principais, embora muita gente boa que açodou os verdugos de Curitiba tenham sido atingidos por eles, no cenário local, a família Garotinho foi a maior vítima dessa Inquisição de Togas, e quase todos os processos e condenações foram anuladas, inclusive boa parte dos que influenciaram, drasticamente, os resultados de 2016.
Recentemente, uma busca na casa da ex-governadora Rosinha, feita anos depois do início do processo, foi anulada pelo STF, justamente por sua intempestividade, dentre outros argumentos da defesa. Agora, nos parece que a oposição tenta, perigosamente, atrair, novamente, o Judiciário e o MP para esse terreno pantanoso da criminalização da política.
Não comento, por força do ofício, investigações em andamento, mas não posso deixar de notar que a tentativa de vincular crimes comuns, ou até crimes eleitorais, com a figura do candidato franco favorito à reeleição, o atual prefeito Wladimir Garotinho, parece que é a alvorada de uma tese muito mal entendida por nossos juristas, promotores e juízes, a famigerada Teoria do Domínio do Fato.
Klaus Roxin, jurista alemão, trouxe novos contornos à teoria de Wezel, que no Brasil, em tempos de ditadura judicial recente, ganhou uma forma distorcida, destinada a suprir a falta de provas, como bem observou o então Ministro Lewandowski, STF, em 2020:
“HC 169535 AgR
Órgão julgador: Segunda Turma
Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI
Julgamento: 14/02/2020
Publicação: 04/03/2020
Ementa
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ELEITORAL. PENAL. WRIT SUBSTITUTO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMISSIBILIDADE. DECISÃO AGRAVADA QUE NÃO REEXAMINOU FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE DE LIMITAÇÃO DA ATUAÇÃO DO MAGISTRADO NA ANÁLISE DE HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO DA COISA JULGADA. APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO PARA SUPRIR DEFICIÊNCIA PROBATÓRIA DE AUTORIA DELITIVA. AGRAVO IMPROVIDO NOS TERMOS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 146 DO REGIMENTO INTERNO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RISTF. I – Embora o presente habeas corpus tenha sido impetrado em substituição a recurso extraordinário, esta Segunda Turma não opõe óbice ao seu conhecimento. Precedentes. II – A concessão do writ na decisão agravada não tem fundamento no reexame ou na revaloração do conjunto fático-probatório, mas sim na verificação da aplicação ilegal da teoria do domínio do fato, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
(…)
V – A narrativa que adota a teoria do domínio do fato “com vistas a solucionar problemas de debilidade probatória ou a fim de arrefecer os rigores para a caracterização do dolo delitivo” não é admitida pela jurisprudência desta Suprema Corte (AP 975/AL e AP 987/MG, ambas de relatoria do Ministro Edson Fachin). VI – Verificado o empate ao término do julgamento, negou-se provimento ao agravo regimental, nos termos do parágrafo único do art. 146 do RISTF.(…)”
Pois bem, o pessoal da oposição e seu time de advogados buscam conferir aos eventos recentes, desde o assassinao ocorrido em julho de 2024, até um suposto atentado, com disparos de arma de fogo, contra um pré-candidato a vereador, que filmava o entorno de uma propriedade de aliados do prefeito, que ali estavam em uma confraternização, uma coesão de desígnios entre os supostos autores dessas práticas delitivas, e o líder político, do grupo ao qual eles se filiam.
Esta é uma tese possível, a Teoria do Domínio do Fato, para ser aplicada em casos concretos?
Claro, desde que provada, ou melhor dizendo, qualquer investigação nesse sentido apenas pode ser iniciada com justa causa, sob pena de incorrermos em abuso de autoridade, ou em regimes de exceção, onde partimos de uma presunção de que um crime existe, para depois buscarmos um suspeito que caiba nele.
É isso que a oposição está fazendo, flertando com um perigo já conhecido. Claro que todos os supostos crimes e condutas ilegais devem ser investigados, processados e julgados na forma da lei.
O que não se pode é atribuir um caráter de unicidade estrutural em eventos que nada têm a ver entre si, criando a falsa percepção de que as eleições locais acontecem sob o signo da violência.
Causa ainda mais espanto é que há, também no campo da oposição, vários delitos cometidos por correligionários e/ou filiados a tal grupo político, e não se vê, até aqui, o mesmo rigor nas apurações e nem na repercussão de alguns veículos de mídia, salvo honrosas exceções, que só comprovam a regra.
Não se viu ninguém na situação (do grupo de Wladimir) usando a tese de que haveria ali uma associação criminosa dedicada a intimidar e conspurcar o resultado do pleito, pelo menos não no campo jurídico, e nos canais oficiais da campanha, justiça seja feita.]
Desde muito tempo, Campos dos Goytacazes é conhecida por atos de violência na política.
Você pode ler aqui, sobre as mortes ocorridas em 1937, em plena Praça São Salvador , em conflito entre integralistas e antifascistas. Em tempos mais recentes, quem tem mais de 40 anos lembra do assassinto de Lilico por Zezinho de Travessão, quando este último matou o colega, atraindo-o para uma pescaria, pois desejava sua vaga na Câmara. Há outros casos, por certo.
No entanto, é inédita a tentativa de dar contornos de que essas manifestações de violência, todas execráveis, possam acontecer sob o comando organizado desta ou daquela liderança. É preciso limites para tudo.
Espero, sinceramente, que o Judiciário e o MP estabeleçam essa fronteira, que uma vez cruzada, não tem volta, até porque, embora alguns queiram esquecer, sabemos no que vai dar,








