Para surpresa de ninguém, trilha do trabalho escravo chega a Campos dos Goytacazes

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O jornal “O DIA” publicou uma reportagem mostrando que os municípios de Campos dos Goytacazes e São Francisco do Itabapoana são o foco da prática do trabalho escravo no estado do Rio de Janeiro. A reportagem se baseou em um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o qual serviu de base de um seminário realizado este mês na Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região (Amatra1). Um dos pontos destacados durante o debate foi a questão racial, na qual a maioria dos trabalhadores imigrantes escravizados são negros e africanos. 

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Como alguém que acompanhou de perto os trabalhos do Comitê pela Erradicação do Trabalho Escravo do Norte Fluminense que ajudou a libertar centenas de trabalhadores escravizados em áreas de monocultura da cana-de-açúcar na primeira década do Século XXI, recebo essa notícia com pouca surpresa. É que apesar das condições que fizeram Campos dos Goytacazes a principal área de libertação de escravizados no início do atual século terem sido arrefecidas, nunca houve de fato a culpabilização dos responsáveis. Como isso, até forma óbvia, agora se descobre que o trabalho escravo continua fincado no município.

Talvez seja a hora de reativar o Comitê pela Erradicação do Trabalho Escravo, pois suspeito que existem mais trabalhadores sendo postos em condições de trabalho degradante ou até mesmo de condições análogas à escravidão.

Ah, sim, como não lembrar o apoio dado a Jair Bolsonaro pelos sindicatos patronais locais nas duas últimas eleições presidenciais. Se me perguntarem se esse apoio era acidental, as últimas revelações sobre trabalho escravo apontam na direção oposta.

As razões do atual ataque ideológico e financeiro às universidades públicas

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No último debate presidencial transmitido pela Rede Globo coube ao senhor Kelmon Luis da Silva Souza (a.k.a., “Padre Kelmon”) realizar um forte ataque ideológico às universidades públicas brasileiras. Dentre os muitos absurdos assacados por um cidadão cuja ligação a algum tipo de clero é, no mínimo, questionável sobressaiu-se a repetição da cantilena de que as universidades públicas, muitas deles reconhecidas internacionalmente como centros de divulgação de pesquisas inovadoras e de formação de recursos humanos qualificados, de que não passamos de núcleos esquerdistas que nada dão de volta para o país.

O problema aqui é que o “Padre Kelmon”  (que em sua vida terrena é o feliz proprietário de uma loja de artigos religiosos e bijuterias em um prédio comercial em Brasília) serviu-se do local onde estava para ser o porta-voz dos esgoto in natura que prolifera nas redes de comunicação da extrema-direita brasileira.  Quem tem um mínimo de conhecimento sobre o cotidiano das universidades sabe que nem somos um centro avançado do pensamento de esquerda (aliás, o inverso é que realmente ocorre), nem nossos estudantes vivem em orgias diárias, pois a maioria tem mesmo é que se virar para sobreviver ao rigor de uma vida universitária que muitas vezes não dá as devidas oportunidades para quem nela entra.

Como professor de uma universidade pública desde 1998, mas principalmente como filho de um trabalhador metalúrgico, sei que as universidades públicas são a principal oportunidade para que muitos jovens saiam de situações de grande dificuldade social para se tornarem os primeiros de famílias inteiras a terem o grau universitário. Foi assim comigo, e assim como muitos dos jovens com quem tive a oportunidade de interagir desde que cheguei na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf). Ao contrário do que se propala, a maioria deles se origina de famílias da classe trabalhadora que chegam até nós com imensas lacunas de formação, já que a degradação da rede pública de educação vem avançando de forma impiedosa. Entretanto, com as oportunidades oferecidas pela Uenf, tenho o orgulho de dizer que a imensa maioria dos meus alunos aproveitou a oportunidade para se elevar intelectualmente, tendo muitos deles alcançado níveis de formação que provavalmente ninguém em suas próprias famílias esperava.

Mas há que se olhar as reais razões dos ataques contra as universidades públicas para melhor desenhar formas de defendê-las do projeto de destruição que paira sobre elas neste momento.  Uma das primeiras razões é que a produção científica nacional sai majoritariamente das universidades públicas, já que a maioria das instituições privadas não só oferece ensino de baixíssima qualidade, mas como também nelas não se gera qualquer tipo de conhecimento científico.  Como vivemos em uma conjuntura onde conhecimento científico é equiparado como ameaça ao projeto político que é expresso por Jair Bolsonaro e seus filhos, temos essa campanha de difamação.

Por outro lado, há uma razão econômica para que se tenta desacreditar o potencial transformador que está depositado dentro das universidades públicas. É que desde que entrei na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1980 se sabe que há um projeto para privatiza-las para quem sejam transformadas em novas fábricas de diplomas que gerariam fortunas para seus proprietários.  Não é à toa que o governo Bolsonaro está seguindo a receita usual para quando se quer privatizar uma empresa pública: primeiro se desacredita, depois se privatiza.

Finalmente há a questão do acesso dos pobres às universidades públicas, pois mesmo com as oportunidades limitadas oferecidas pelas políticas afirmativas, hoje há uma maioria afluência de jovens pobres. Como a maioria desses jovens são afro-descendentes, aparece o incomodo que uma sociedade fraturada por diferenças raciais não tolera. Por isso, os ataques de natureza racista que volta e meia aparecem até dentro das próprias universidades.

Mas se sabemos as causas desse ataque visceral às universidades públicas, por que então tanto silêncio das comunidades universitárias que assistem caladas a todos essas alegações caluniosas? Salvo engano não houve qualquer manifestação pública contra o auto denominado “Padre Kelmon” por parte de reitorias ou sindicatos universitários e, tampouco, de associações representativas da ciência brasileira como a Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). 

Aliás, desde o golpe de 2016 contra a presidente Dilma que me pergunto o porquê de tamanha covardia por parte da comunidade acadêmica e científica brasileira contra essa campanha de difamação. Provavelmente é porque não devido valor ao risco que estamos sofrendo, ou porque se preferem a atitude escapista de que se o risco for ignorado, ele vai desaparecer por um passe de mágica.

Na minha opinião, é passada a hora de uma ampla campanha de defesa das universidades públicas que deveria começar justamente por quem está dentro dela. Não vai ser com a atual atitude de avestruz com a cabeça enterrada na areia que vamos responder ao ataque incessante que nos é promovido pela extrema-direita, muitas vezes com ajuda interna.  A hora de reagir é agora, pois se esperarmos mais tempo, o que acontecerá já está escrito nas estrelas e não é preciso ser astrônomo para saber do que se trata.

Rio de Janeiro, movimentos sociais e mídia: como ir além da indignação

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Por Luciane Soares da Silva*

Tenho estudado as situações de violência no Rio desde 2005. E gostaria de ofertar uma contribuição para pensar os desdobramentos atuais em dois casos de racismo (um deles de racismo e xenofobia): o caso de Moïse e o caso do sargento que atirou em seu vizinho. No primeiro caso, temos o linchamento de um refugiado político vivendo desde 2011 no Brasil. Morto pela ação brutal de 3 homens. Morto por exigir o pagamento pelo trabalho realizado. No segundo caso, Durval, homem negro de 38 anos, igualmente um trabalhador, foi confundido por seu vizinho, Aurélio, sargento da Marinha. E baleado dentro do próprio condomínio. Acredito que não precisamos recuperar o número de vezes em que um homem negro foi confundido pela polícia. Policiais já confundiram furadeiras, sombrinhas e até moedas de um real com armas. Já alvejaram pessoas inocentes neste estranho hábito de confundi-las com outras. Sempre o mesmo grupo é confundido: os negros.

Estes dois casos têm além do racismo outro ponto em comum: geram comoção social e ganham as redes e a grande mídia. Produzem pressão sobre o Estado. Voltando a 1992, o Jornal Nacional repetiu ad nauseum cenas de uma confusão em Ipanema, classificada como arrastão pela mídia. A Polícia Militar ofereceu outra explicação. Pesquisadores da área também. Mas desde então, não importa. A categoria funkeiro tem sido o motor de manchetes que associam bailes a tráfico. E portanto, chacinas praticadas nestes locais recebem o aval da sociedade. Foi o caso da chacina da Providência, mortes no Turano e recentemente Paraisópolis em São Paulo. Estar em um baile funk libera a sociedade civil para apoiar o extermínio da juventude trabalhadora de periferia.

O caso Tim Lopes é um marco fundamental para compreender a relação entre mídia, cidade e favelas.  O jornalista da rede Globo, premiado e reconhecido por suas matérias investigativas, estava disfarçado na Vila Cruzeiro e foi torturado e morto por ordem de Elias Maluco. Tim faria uma reportagem sobre denúncias envolvendo menores e uso de drogas em bailes. A favela está para a cidade do Rio de Janeiro como uma fonte inesgotável de crime, vícios, desordens e todo tipo de aberração. As manchetes colaboram para banalização de decapitações, corpos carbonizados, furados a balas, mutilados. Impossível que qualquer morador do Rio nunca tenha se deparado com a cena de 10 ou mais pessoas em frente a uma banca de jornal debatendo uma manchete do Povo com um cidadão sem cabeça ou sem as mãos. A questão envolvendo Tim Lopes foi uma ruptura definitiva com tempos menos violentos. A imagem de um homem andando com uma espada, as notícias de incremento cada vez maior das armas, tudo isto mostrava que o Rio entrava em uma nova era. A era da intensificação das mortes por atacado e das execuções bárbaras.

Em 2014, DG, dançarino do programa “Esquenta” apresentado por Regina Cassé, foi morto por uma ação policial no Pavão Pavãozinho. Em julho de 2013, o pedreiro Amarildo sumiu em uma unidade de polícia pacificadora. Sob comando do Major Edson, foi torturado e sua família jamais obteve o corpo. Não se sabe onde está Amarildo. Marcus Vinícius de 14 anos foi atingido em um incursão policial na Maré em 2018.  Usava camiseta da escola. Em maio de 2020, João Pedro e outras quatro crianças perderam a vida durante ação da Polícia Militar. Estes são casos que ganharam notoriedade. Tantos outros não tiveram o mesmo desfecho.

Por outro lado, os casos de linchamento a castigos físicos públicos se tornaram mais comuns nos últimos. Basta lembrarmos do caso de um jovem negro amarrado a um poste, nu, no Flamengo em 2014.

Todos estes casos têm elementos em comum. O fato de gerarem comoção pública é o primeiro. É importante dizer isto porque o número de mortes e violações que não ganham espaço na mídia é bastante expressivo. Recentemente este fato foi debatido na comparação do caso Henry com o caso do 3 meninos de Belford Roxo desaparecidos em dezembro de 2020. Ou seja, a mídia seleciona e dá maior visibilidade para certos casos. Dito isto, vamos ao segundo elemento importante: a mobilização da sociedade civil por justiça. Situações de violência nas favelas são cotidianas, a exigência de justiça pelos mortos e desaparecidos estão presentes na base de movimentos contra a violação dos direitos humanos.

Lamentavelmente a resposta do Estado é limitada. Famílias sem apoio psicológico em seu pós trauma, falta de resolução nas investigações e sobretudo falta de punição são uma constante neste sistema. A exoneração de secretários, a criação de programas como as Unidades de Polícia Pacificadora, o café da manhã na Providência com uma mãe que encontrou seu filho mutilado, em tudo isto funciona a mesma lógica cosmética de uma segurança pública que não pode (porque não quer poder) atacar problemas como eles devem ser atacados.

Em julho de 2013, vi um policial subindo a Rocinha com um tubo de conexão para improvisar um banheiro. Compreendi o que tinha ouvido alguns dias antes: a UPP dependia da crença em sua existência para que funcionasse como política. Não havia efetivo suficiente e nem recursos. Jogar um policial de 18 anos com formação de seis meses em uma favela de 100 mil habitantes? Descobrimos com o sumiço de Amarildo como as práticas da Ditadura seguem vivas dentro destas instituições.

Segundo um dos relatos sobre o caso Moïse, a Guarda foi chamada mas preferiu não se envolver. Talvez porque soubesse quem era o dono do quiosque. Nestas relações de dominação territorial não há a menor possibilidade de cidadania efetiva. O homem comum, trabalhador, será tratado como estabelecido no Código do Império: coisa.  Ou seja, em minha avaliação há um acordo muito tácito em funcionamento entre aqueles que espancam um ser humano até a morte, aqueles que deveriam prover segurança e aqueles que rifam o território por terem as credenciais para isto. Não há espaço para a universalização de direitos. Nossa cordialidade nos obrigada a saber sempre com quem estamos falando.

As manifestações de indignação e luto deverão dar lugar a ações sem trégua dos movimentos sociais e da sociedade civil pela ampliação do debate sobre as instituições de controle. As oficiais e sobretudo, as extra-oficiais.

Entregar dois quiosques para que virem um memorial em homenagem a cultura congolesa e africana, segue a mesma lógica cosmética e diversionista descrita acima. É a lógica da UPP social, é a lógica de renomear as ruas com o nome dos mortos pela polícia. É a lógica do faz de conta. O Estado conta com nosso esquecimento. O Estado conta com nosso medo. E com a mídia em seu trabalho eterno de morder e assoprar. Mantendo altos seus índices de audiência.

É o Fado Tropical de Chico Buarque, que me faz pensar em um torturador sentimental. De tudo isto que trago o verso :

“Oh, musa do meu fado, Oh, minha mãe gentil, Deixo-te consternado,

No primeiro Abril, Não seja tão ingrata, não esqueças quem te amou,

E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou

Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.


*Luciane Soares da Silva é é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense  (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce), e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).

O racismo integra a formação e desenvolvimento do Capitalismo a la brasileira, negar a sua existência também

joão albertoO assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças da rede Carrefour em Porto Alegre deixa mais uma vez nu o racismo estrutural que permeia as relações capitalistas no Brasil

Como muitos leitores já devem saber, morei alguns anos nos EUA e em regiões de estados onde as relações raciais são ainda muito tensas (i.e., Tennessee e Virginia).  Em minha convivência com colegas de universidades e instituições de pesquisa, um dos momentos de constrangimento certo era aquele em que eu recusava o cumprimento pelo fato do Brasil ser uma suposta democracia racial, terra do samba e do futebol. Para surpresa dos meus interlocutores que me dirigiam o cumprimento por ser brasileiro, eu retrucava dizendo que éramos tão ou mais racistas que os EUA.  O meu exemplo da existência  do elevador de serviço para onde deveriam se dirigir os trabalhadores domésticos ou prestadores de serviço como uma prova do racismo brasileiro deixava sempre as pessoas atônitas, pois esse tipo de elevador não existe por lá.

Aliás, falando no elevador de serviço (uma forma escondida de segregação), os incorporadores imobiliários portugueses tiveram que após mais de quatro décadas começar a reincluir este tipo de aparato nas plantas dos novos prédios, especialmente em Lisboa, após a enxurrada de brasileiros de classes abastadas chegarem por lá para comprar imóveis após o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff em 2016.

Esse preâmbulo todo é para dizer que não há como deixar de reconhecer que a escravidão (primeiro indígena e depois negra) foi a base da criação do Brasil como país, e que o nosso modelo peculiar de desenvolvimento capitalista esteve sempre ligado ao uso do trabalho escravo. A forma pela qual transitamos da escravidão legal também teve vários traços singulares desse capitalismo escravocrata, a começar pela promulgação da Lei de Terras em 1850, a qual objetivamente impediu que indígenas e negros pudessem ter o direito a possuir títulos de terras, na medida em que essa lei determinou que só poderia ter título de terra quem pudesse pagar por ele. E naquele momento exato da história do Capitalismo brasileiro, isso serviu como uma senha para impedir que membros dos povos originários e os negros escravizados pudessem ter a propriedade da terra.

Desde a independência do Brasil, o desenvolvimento do Capitalismo “a la brasileira” nunca teve como prioridade superar as injustiças e desigualdades causadas por mais de 300 anos de escravidão.  Ainda que formalmente uma série de leis tenham sido criadas para alcançar mais equidade social (ou, na prática, uma menor iniquidade), avançamos muito pouco na reparação da herança do escravismo e, por isso, o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais e segregados do planeta.

Ser indígena ou negro no Brasil nunca foi fácil, pois o Estado  brasileiro sempre dedicou aos que não tem pele branca o uso da mão pesada para conter demandas e manter a insatisfação prisioneira em territórios guetizados, fossem eles reservas indígenas ou favelas.  

O estabelecimento do “Dia da Consciência Negra” pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011 é para mim mais um exemplo em que formalmente se avança para ficar no mesmo lugar. Ainda que seja correto lembrar e celebrar a contribuição dos negros na formação e no desenvolvimento do Brasil, o fato é que nem nesse dia os afrodescendentes podem usufruir de um dia de paz e tranquilidade. A prova maior disso foi o brutal assassinato a sangue frio de  João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, espancado e morto em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre, e que está causando tanta comoção nos últimos dois dias.

Mas o assassinato de João Alberto é apenas mais um e não será o último, essa é a verdade. A certeza disso vem das declarações do presidente Jair Bolsonaro e do seu vice-presidente Hamilton Mourão que não só negam a existência de algo inegável que é o racismo no Brasil, mas também se dão ao trabalho de culpabilizar os que se revoltaram e protestaram contra mais essa morte de um trabalhador negro. De forma objetiva, querendo ou não, Bolsonaro e Mourão explicitam de forma crua e direta a lógica racista que naturaliza as mortes e aponta o dedo acusador contra quem se revolta.

Aos meus orientandos que se interessam pelas questões sobre a existência do brasileiro negro em uma sociedade tão racista como a nossa, eu sempre recomendo a leitura da obra de Florestan Fernandes “A integração do negro na sociedade de classes“.  É que com a leitura desse livro se pode compreender as raízes da persistente desigualdade e das agudeza do processo de exploração ao qual os negros brasileiros continuam sofrendo após a passagem da escravidão para o trabalho supostamente livre vigente em uma sociedade capitalista (o vídeo abaixo é bastante didático sobre o conteúdo dessa obra seminal de Florestan).

O fato é que não vejo como se alcançar qualquer nuance do que pode ser chamado de “democracia racial” enquanto perdurarem no Brasil as relações sociais, econômicas e políticas determinadas pela posição periférica do Brasil no sistema capitalista.  Se o Capitalismo já traz em si vírus fundamental da negação da democracia enquanto um elemento que possa ser pertinente a todas as classes sociais, como escreveu a marxista canadense Ellen Meiksins Wood em seu livro “Democracia contra capitalismo”, no Brasil essa negação é mais profunda e severa, já que nem os aspectos formais dos sistemas democráticos ocidentais foram efetivamente implantados.

O caminho de saída, como vem mostrando o marxista negro estadunidense Adolph Reed terá de ser pelo reconhecimento de que a luta anti-racista só poderá ter um desfecho positivo se for involucrada pelo elemento de classe. Entender essa condição inescapável certamente deveria merecer uma profunda reflexão dos partidos e movimentos sociais que se colocam na linha de frente das lutas anti-racistas no Brasil.

Quanto mais cedo nos antenarmos para essa indissociabilidade, melhor será, especialmente para aqueles milhões de brasileiros que acordam todos os dias com medo de serem o próximo João Alberto.

Finalmente, uma reminiscência pessoal. Graças ao meu amigo Edilberto Rocha Silveira, professor titular da Universidade Federal do Ceará, pude visitar uma senzala, hoje transformada no “Museu Senzala Negro Liberto“, no município de Redenção, que foi justamente o primeiro lugar no Brasil, cinco anos antes da promulgação da Lei Áurea, a libertar todos os seus escravos. Essa visita me fez ver as condições de horror e claustrofobia em que viviam os negros escravizados. Quem tiver dúvida do que se deu a escravidão negra no Brasil, sugiro uma visita a este museu.  Ah, sim, se seu sangue não ferver vendo as condições em que viviam os escravos, você provavelmente não sente nada pelos milhões de brasileiros a quem tudo é negado por descender deles. Por isso, sim, você é um racista a la brasileira.

O problema com a disparidade

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*Por Adolph Reed, Jr.  e Walter Benn Michaels  para o “Nonsite”

Se a pandemia de COVID-19 e a morte de George Floyd devem ter tornado visíveis desigualdades que ninguém tinha visto, as taxas de mortalidade tanto do vírus quanto nas mãos da polícia foram encontradas com análises que repetem o que todos sempre fizeram disse – primeiro, no diagnóstico do que produziu essas desigualdades e, em segundo lugar, na recomendação para eliminá-los. O problema (considerado tão arraigado na vida americana que às vezes é chamado de pecado original da América) é o racismo; a solução é o anti-racismo. E a confiança no diagnóstico e na cura é tão alta que produziu ação em todos os lugares, desde o protesto do BLM nas ruas até a votação da legislatura do Mississippi para derrubar sua bandeira para salas de diretoria corporativas que prometem literalmente bilhões de dólares – tudo com o admirável objetivo de acabar supremacia branca.

Tudo isso, é claro, tendo como pano de fundo uma economia que – tanto para os brancos quanto para os negros – se tornou cada vez mais desigual ao longo do último meio século. O índice de Gini (uma medida de desigualdade em que zero significa que todos temos o mesmo, enquanto um significa que uma pessoa tem tudo) passou de 0,397 em 1967 para 0,485 hoje. (Em contraste, a pior pontuação atual na Europa é basicamente a nossa há meio século.) E a maioria das pessoas – pelo menos na esquerda – que se preocupa com a disparidade racial, sem dúvida acredita que a desigualdade entre as classes também é um problema. Na verdade, eles podem muito bem acreditar que atacar o racismo também é um passo na direção de atacar a lacuna entre o decil superior da riqueza americana e todos os demais.

Mas eles estão enganados. Na verdade, não apenas o foco no esforço para eliminar as disparidades raciais não nos levará na direção de uma sociedade mais igualitária, nem mesmo é a melhor maneira de eliminar as disparidades raciais em si. Se o objetivo é eliminar a pobreza negra, e não simplesmente beneficiar as classes altas, acreditamos que o diagnóstico de racismo está errado e a cura do anti-racismo não funcionará. O racismo é real e o anti-racismo é admirável e necessário, mas o racismo existente não é o que principalmente produz nossa desigualdade e o anti-racismo não vai eliminá-lo. E porque o racismo não é a principal fonte de desigualdade hoje, o anti-racismo funciona mais como um equívoco que justifica a desigualdade do que uma estratégia para eliminá-la.

O que faz o racismo parecer o problema? As disparidades raciais muito reais visíveis na vida americana. E o que faz o anti-racismo parecer a solução? Duas crenças plausíveis, mas falsas: que as disparidades raciais podem de fato ser eliminadas pelo anti-racismo e que, se pudessem, sua eliminação tornaria os Estados Unidos uma sociedade mais igualitária A diferença de riqueza racial, por ser tão notável e comumente invocada, é uma ilustração muito boa, para não dizer perfeita, de como, em nossa opinião, tanto o problema quanto a solução são concebidos de maneira incorreta.

Já se sabe que os brancos têm mais riqueza líquida do que os negros em todos os níveis de renda, e a diferença racial geral na riqueza é enorme. Por que o anti-racismo não resolve esse problema? Porque, como Robert Manduca mostrou, o fato de os negros estarem superrepresentados entre os pobres no início de um período em que “trabalhadores de baixa renda de todas as raças” foram prejudicados pelas mudanças na vida econômica americana significa que eles “suportaram o impacto ”dessas mudanças. 1 A falta de progresso na superação da lacuna de riqueza entre brancos e negros tem sido função do aumento da lacuna de riqueza entre ricos e pobres.

Na verdade, se você olhar como a riqueza de brancos e negros é distribuída nos Estados Unidos, verá imediatamente que a própria ideia de riqueza racial é vazia. Os 10% mais ricos da população branca possuem 75% da riqueza branca; os 20% mais ricos têm virtualmente tudo isso. E o mesmo é verdade para a riqueza negra. Os 10% mais ricos das famílias negras detêm 75% da riqueza negra.

Isso significa que, como Matt Bruenig do People’s Policy Project observou recentemente,“A disparidade geral de riqueza racial é impulsionada quase inteiramente pela disparidade entre os 10% mais ricos dos brancos e os 10% mais ricos dos negros.” Embora Bruenig deixe claro que existe uma lacuna de riqueza perceptível entre os níveis de classe, ele explorou o impacto da eliminação da lacuna entre os 90% mais pobres de cada grupo e descobriu que, depois de fazer isso, 77,5% da lacuna geral permaneceria. Ele então examinou o efeito da eliminação da diferença de riqueza entre os 50% mais pobres – o ponto médio – de cada população e descobriu que isso eliminaria apenas 3% da diferença racial. Portanto, 97% da diferença de riqueza racial existe entre a metade mais rica de cada população. E, o que é mais significativo, mais de três quartos dele estão concentrados nos 10% superiores de cada um. Se você disser àquelas pessoas brancas nos 50% mais pobres (pessoas que basicamente não possuem nenhuma riqueza) que a desigualdade básica nos Estados Unidos é entre negros e brancos, elas saberão que você está errado. Mais revelador, se você disser a mesma coisa para os negros nos 50% mais pobres (pessoas que têm menos do que nenhuma riqueza), eles também saberão que você está errado. Não são todos os brancos que têm dinheiro; são os dez por cento dos (principalmente) brancos, e alguns negros e alguns asiáticosA diferença de riqueza entre todos, exceto os negros e brancos mais ricos, é diminuída pela diferença de classes, a diferença entre os mais ricos e todos os demais.

Como diagnóstico, identificar disparidades é taxonômico e retórico, não etiológico. Insistir para que entendamos essas desigualdades como evidência de racismo é uma exigência sobre como devemos classificá-las e nos sentir a respeito delas, não um esforço para examinar suas causas específicas. Embora a diferença de riqueza reflita os efeitos do racismo, tanto no passado quanto no presente, ela não explica como exatamente as diferenças são produzidas, para cima e para baixo na distribuição de renda e riqueza. Por exemplo, entre 1968 e 2016, os negros americanos fizeram avanços significativos em ocupações e categorias de empregos às quais antes não tinham acesso. Consistente com essa oportunidade expandida, no artigo que mencionamos acima, Manduca descobriu que, durante esse período, as disparidades entre brancos e negros na classificação de renda – onde a renda média do grupo cai na distribuição de renda nacional, medida em centis – diminuíram em quase um terço. Isso não estava nem perto da paridade, mas uma melhoria definitiva. (A renda média dos negros subiu do vigésimo quinto percentil para o trigésimo quinto.) No entanto, durante o mesmo período, a diferença geral de renda entre negros e brancos praticamente não mudou. O motivo foi a extrema concentração de renda no topo naquele período. Na verdade, a renda mediana dos negros no vigésimo quinto percentil em 1968 era igual a 55% da média nacional, mas em 2016 a renda no trigésimo quinto percentil era igual a apenas 48% da média nacional. Não é o racismo o responsável por esse declínio relativo; é o capitalismo neoliberal.

Mesmo como um programa para lidar com as disparidades raciais, o anti-racismo não é um bom remédio para a desigualdade. Se a diferença de riqueza racial fosse de alguma forma eliminada para cima e para baixo na distribuição, 90% dos negros ainda teriam apenas 25% da riqueza total, e os 10% mais ricos ainda teriam 75%. E isso era de se esperar porque, em uma sociedade com desigualdade geral acentuada e crescente, a eliminação de “lacunas” raciais na distribuição de vantagens e desvantagens por definição não afeta o padrão maior e mais fundamental de desigualdade.

Essa inadequação se torna mais clara quando consideramos o truque argumentativo que impulsiona o discurso da disparidade. O que estamos realmente dizendo toda vez que insistimos que a desigualdade básica é entre negros e brancos é que as únicas desigualdades com que nos preocupamos são aquelas produzidas por alguma forma de discriminação – que a desigualdade em si não é o problema, são apenas as desigualdades produzidas pelo racismo e sexismo, etc. O que o discurso da disparidade nos diz é que, se você tem uma economia cada vez mais desigual, que está gerando principalmente empregos que nem pagam um salário mínimo, o problema que precisamos resolver não é como para reduzir essa desigualdade e não como tornar esses empregos melhores, mas como garantir que eles não sejam desproporcionalmente ocupados por negros e pardos.

É verdade, como mostrou o cientista político Preston H. Smith II, que na forma do que ele chama de “democracia racial”, alguns negros defenderam o ideal de uma escada hierárquica na qual os negros e outros não-brancos seriam representados em todos os degraus em proporção aproximada à sua representação na população em geral. 2 Mas o fato de que alguns negros o desejaram não torna a democracia racial desejável. Como observamos, separadamente, juntos e repetidamente, a implicação da proporcionalidade como métrica da justiça social é que a sociedade seria justa se 1 por cento da população controlasse 90 por cento dos recursos, desde que 13 por cento do 1 por cento eram negros, 14 por cento eram hispânicos, metade eram mulheres, etc.

Reclamações sobre desproporcionalidade são matemática liberal. E uma política centrada em desafiar a desproporcionalidade vem com o aval de não menos um Doutor da Igreja do Neoliberalismo de Esquerda do que o economista Paul Krugman, que afirmou em seu papel de ideólogo para a campanha de Hillary Clinton de 2016 que a desigualdade “horizontal”, ou seja, as desigualdades mediram “Entre grupos racial ou culturalmente definidos é o que é realmente importante na América e descartou o elaborado programa do senador Bernie Sanders para a redistribuição social-democrata como “uma quimera”. 3

É a fixação na desproporcionalidade que nos diz que o aumento da riqueza de um por cento seria OK se houvesse mais bilionários negros, pardos e LGBTQIA +. E o fato de que o anti-racismo e a anti-discriminação de todos os tipos validariam em vez de minar a estratificação da riqueza na sociedade americana é completamente visível para aqueles que atualmente possuem essa riqueza – todas as pessoas ricas ansiosas para embarcar em um curso de purificação moral (treinamento anti-racista) mas sem nenhum interesse por uma política (redistribuição social-democrata) que altere as condições materiais que os tornam ricos.

Em contraste, a tensão na política negra que convergiu em torno do que Smith chama de ideal social- (ao invés de racial-) democrático procedeu do entendimento de que, porque a maioria dos negros americanos estão na classe trabalhadora – e de forma desproporcional, em parte por causa do mesmo efeitos do racismo passado e atual aos quais aludimos acima – os negros também se beneficiariam desproporcionalmente das agendas redistributivas que expandem as políticas de salários sociais e melhoram os padrões de vida e a segurança da classe trabalhadora universalmente. A tensão entre esses dois ideais de justiça social, como Smith indica, era, e é, uma tensão decorrente de diferenças de percepção e valores enraizados em diferentes posições de classe.

Daí o fato de que, ao longo do último meio século (como a sociedade americana atingiu novos patamares de desigualdade e como os democratas fizeram muito pouco mais do que os republicanos para combatê-la), o princípio racial-democrático na política negra e na sociedade em geral , substituiu o social-democrata, foi uma vitória para a classe – negra e branca – que o apoiou. Em sua insistência de que a proporcionalidade é a única norma e métrica defensável de justiça social, a política anti-racista rejeita programas universais de redistribuição social-democrata em favor do que é, em última análise, uma abordagem de infiltração racial segundo a qual tornar mais negros ricos e negros ricos mais rico é um benefício para todos os negros.

É instrutivo, a esse respeito, que a diferença de riqueza racial tenha se tornado o padrão-ouro, por assim dizer, da injustiça racial. Por um lado, os acadêmicos, funcionários de ONGs, comentaristas da mídia e similares que enfatizam isso como um assunto de interesse público estão, eles próprios, tipicamente enraizados nos estratos gerenciais profissionais, entre os quais são mais visíveis e mais experientes. Reclamações sobre colegas de trabalho brancos cujos pais lhes dão entrada de $ 700.000 em condomínios não existem muito na classe trabalhadora. A lacuna não é apenas uma questão de status superior; defini-la como um marcador crucial de desigualdade racial, como o trabalho de Manduca ilustra, naturaliza as forças que produzem o quadro maior e mais consequente da desigualdade capitalista dentro do qual a riqueza é produzida e distribuída. De fato, Dionissi Aliprantis e Daniel Carroll , em um relatório para o Federal Reserve Bank de Cleveland, descobriram que a fonte mais importante da lacuna de riqueza racial persistente é a lacuna de renda. Eles indicam, com base em um modelo sofisticado de acumulação de riqueza que se ajusta a diferentes padrões de poupança ao longo do ciclo de vida, que, se as tendências atuais persistirem, levaria 259 anos para que a riqueza média negra fosse igual a 90% da média branca. Ajustando o modelo para presumir que a igualdade de renda entre brancos e negros foi alcançada em 1962, eles descobriram que a riqueza familiar média negra teria atingido 90% da riqueza familiar branca em 2007.

Políticas de redistribuição social democrata que reduzem os diferenciais de renda efetivos entre o topo e a base, combinadas com sérias medidas anti-discriminação e aumento do investimento público que restaura e expande o setor público onde trabalhadores negros e pardos estão desproporcionalmente empregados. mais para reduzir até mesmo a lacuna de riqueza racial do que propostas genuínas de sonho, como reparações ou outras estratégias de construção de ativos semelhantes a Rube Goldberg. A resistência a tal abordagem mostra até que ponto o anti-racismo como política é um artefato e motor do neoliberalismo. Ele faz um trabalho melhor legitimando os princípios de justiça social baseados no mercado do que aumentando a igualdade racial. E um componente-chave desse trabalho de legitimação é o desvio das alternativas social-democratas.

Podemos ver como isso funciona em um relatório recente do National Women’s Law Center , que, no contexto da atual crise de saúde, concluiu não apenas que “as mulheres negras estão desproporcionalmente representadas em empregos de linha de frente na prestação de serviços públicos essenciais”, mas também que as mulheres negras que fazem esses trabalhos “normalmente recebem apenas 89 centavos para cada dólar pago a homens brancos não hispânicos nas mesmas funções”. 4 No geral, a disparidade salarial média para mulheres negras nas onze categorias ocupacionais que o relatório discute é de US $ 0,20 por hora, o que, como observam os autores, é especialmente significativo para trabalhadores de baixa remuneração. “Essa diferença de salários resulta em uma perda anual que pode ser devastadora para as mulheres negras e suas famílias, que já lutavam para sobreviver antes da crise de saúde pública. Por exemplo, mulheres negras em uma ocupação de linha de frente mal paga, como garçons e garçonetes, perderam US $ 7.800 devido à diferença salarial em 2018. Mulheres negras que trabalham como professoras perderam espantosos US $ 14.200 devido à diferença salarial em 2018. ” Esse é exatamente o tipo de injustiça que a batalha contra a disparidade deve enfrentar.

Mas é também precisamente o tipo de injustiça que revela o caráter de classe dessa batalha. O salário médio por hora para homens brancos não hispânicos em oito das onze categorias ocupacionais em que as mulheres negras são mal pagas é menos de U $ 20 por hora (e em um nono, assistentes sociais de saúde, é pouco mais de US$ 20). A disparidade nos diz o problema a ser resolvido é que as mulheres negras ganham US$ 0,20 a hora menos do que os homens brancos. A realidade nos diz que não são esses US$ 0,20 por hora que tornam precária a situação econômica dessas trabalhadoras negras. Todos que recebem um salário por hora inferior a US$ 20 estão em uma situação econômica precária. E não é apenas porque este relatório não faz referência à necessidade de aumentar os salários de todos os trabalhadores nessas onze categorias ocupacionais da linha de frente. Cada vez que projetamos a desigualdade questionável em termos de disparidade, cometemos a injustiça fundamental – a diferença entre o que os trabalhadores da linha de frente ganham e o que seus patrões e os acionistas nas empresas pelas quais seus patrões trabalham – invisível ou pior. Porque se a sua ideia de justiça social é tornar os salários das mulheres negras mal pagos iguais aos dos homens brancos um pouco menos mal pagos, ou você não consegue ver a estrutura de classes ou aceitou a estrutura de classes.

O grau em que mesmo os esquerdistas nominais ignoram essa realidade é uma expressão da extensão da vitória ideológica do neoliberalismo nas últimas quatro décadas. Na verdade, se nos lembrarmos da frase de Margaret Thatcher, “A economia é o método: o objetivo é mudar a alma”, a transformação do anti-racismo em arma para implantar a moralidade liberal como a solução para as injustiças do capitalismo deixa claro que é a alma da esquerda que ela tinha mente. Assim, por exemplo, a recepção de Raj Chetty e seus co-autores o estudo amplamente discutido de 2018 sobre mobilidade econômica intergeracional deixou claro que sua descoberta mais chocante foi o grau em que os negros ricos têm menos probabilidade do que seus colegas brancos de passar seu status para os filhos, especialmente os filhos homens. Como se a dificuldade que os ricos possam ter para repassar suas riquezas expropriadas se transformasse em problema de esquerda pelo fato de os ricos em questão serem negros. 5 É claro que os autores do estudo não são necessariamente responsáveis ​​por como a mídia noticiosa representa seu significado, mas são totalmente responsáveis ​​pelo fato de que seu trabalho desconecta em grande parte a mobilidade econômica – e as disparidades raciais – da economia política, tanto no diagnóstico quanto nas soluções propostas. Para eles, “a questão crítica para compreender a lacuna entre negros e brancos no longo prazo é: as crianças negras têm renda mais baixa do que as brancas, condicionada à renda dos pais e, em caso afirmativo, como podemos reduzir essas lacunas intergeracionais?” A ideia deles do problema básico realmente não é que uma vantagem injusta está sendo passada de geração em geração, mas que está sendo passada de forma mais eficaz entre brancos do que entre negros.

E suas soluções, que se concentram nos supostos efeitos de fatores como família e vizinhança, concentram-se principalmente nas almas dos negros e brancos. Como argumentou o historiador Touré Reed, seus “três remédios específicos: ‘programas de mentoria para meninos negros, esforços para reduzir o preconceito racial entre os brancos ou esforços para facilitar a interação social entre grupos raciais dentro de uma determinada área’ …”. são “centrados principalmente na tutela cultural” e no “entendimento inter-racial”. 6 E, como Reed também aponta, eles minimizam os efeitos de qualquer redistribuição real, “—incluindo“ programas de transferência de renda ”e, curiosamente,“ aumentos de salário mínimo ”- com o fundamento de que só“ melhorarão a economia para um único geração ”(166). (É como se Workers of the World Unite tivesse se transformado em não dê um peixe ao homem, ensine-o …)

Tanto o estudo em si quanto a repercussão pública que gerou ressaltam até que ponto o anti-racismo contemporâneo presume a vitória ideológica thatcherista. Chetty e seus co-autores tratam a ordem econômica neoliberal como uma natureza dada e inexpugnável. Eles não levam em consideração as intervenções políticas desde os anos 1960 – de um lado, a expansão da aplicação da lei antidiscriminação e a abertura de estruturas ocupacionais; de outro, redução do setor público e dos salários sociais, declínio na sindicalização e quatro décadas de transferência regressiva de renda e riqueza – que afetaram substancialmente a mobilidade econômica dos negros. Nem consideram se a recência relativa dessa mobilidade ascendente aumentada pode ter efeitos intergeracionais consequentes, especialmente em um contexto geral de estagnação salarial e transferência regressiva. É por isso que eles podem imaginar uma política redistributiva apenas na forma de intervenções fracas no chá, como aumento do salário mínimo – não vitalício, que eles imediatamente descartam como inadequado. Sua ênfase na mobilidade intergeracional dentro desse contexto estreito reforça a visão de que a desigualdade racial deve ser a desigualdade central para nossa preocupação. E sua redução do universo de intervenção possível ecoa outro ditado notório de Thatcher:“Sabe, a sociedade não existe. Existem homens e mulheres individualmente e existem famílias. ” E ela teria ficado bem com a reificação adicional de Chetty et al. De indivíduos e famílias como bairros – “É nosso dever cuidar de nós mesmos e, então, também, cuidar de nossos vizinhos”.

A trajetória geral de seu relato – desde a formulação inicial do estudo do problema até suas conclusões e recomendações – é que consertar as disparidades requer consertar as pessoas. Essa construção tem sido um desvio padrão dos mecanismos mais amplos e profundos que impulsionam a desigualdade proveniente das Poor Laws inglesas através da propagação da ideologia do “capital humano” pelos economistas de Chicago na década de 1950 e da invenção do antropólogo Oscar Lewis da cultura da pobreza (rebatizada na década de 1980 e 1990 como a subclasse urbana) até que foi formalizada como política por meio da vitória da visão culturalista, ao invés de redistributiva, que definiu a Guerra à Pobreza. É mais ou menos assim que deve ser se as estruturas político-econômicas e, especificamente, as relações de classe capitalistas forem definidas fora de cena.

O que temos falado até agora são diferentes maneiras de entender a desigualdade econômica, e nosso ponto é que o próprio compromisso de enquadrar a desigualdade entre ricos e pobres como a disparidade entre brancos e negros é – se você quiser uma sociedade mais igualitária —Encontrado. Mas dinheiro não é tudo. E quanto às disparidades que podem ter um componente de classe, mas onde parece que a raça ou o racismo desempenham um papel significativo e autônomo? Examinar as limitações e as características insidiosas de como o discurso da disparidade opera nas duas outras áreas em que agora é mais proeminente – COVID-19 e assassinatos de civis pela polícia – demonstrará o quão distorcido por classes e contraproducente ele é.

Todos nós já ouvimos muito sobre disparidades raciais nas mortes por coronavírus – desde a observação padrão de que as comunidades “negras e pardas” foram as mais atingidas por Sanjay Gupta (Correspondente Médico Chefe da CNN), incluindo uma lista de fatores biológicos que aumentam o risco de efeitos graves do vírus “ser uma pessoa de cor – afro-americano, latino-americano ou nativo americano”. Há um sentido em que ambas as observações são verdadeiras, mas há um sentido muito mais poderoso em que são falsas e a forma como são falsas, primeiro, reproduz alguns dos mitos mais perniciosos sobre raça (o principal é que tal coisa existe) e, em segundo lugar, implanta raça e racismo de uma forma que deturpa o problema e, portanto, descreve mal a solução.

As pessoas de cor correm maior risco? 7 A maioria dos leitores provavelmente já conhece muitos dos principais fatores de risco com relação ao COVID-19: de acordo com os Centros de Controle de Doenças, entre eles estão asma; doença renal crônica em tratamento com diálise; distúrbios da hemoglobina (uma proteína que transporta oxigênio no sangue); doença pulmonar crônica; diabetes; status imunocomprometido; doença hepática; doenças cardíacas graves; obesidade severa; idade de 65 ou mais; residência em lares de idosos ou instalações de cuidados de longa duração. Todas, exceto as duas últimas categorias, são condições médicas específicas que podem afetar qualquer pessoa na população em geral. Essas condições demonstraram aumentar o risco de danos graves causados ​​pela infecção, tanto clinicamente, por exame dos efeitos específicos que o vírus pode ter em pessoas com essas condições, ou estatisticamente, mostrando que as pessoas com essas condições são significativamente mais propensas a sucumbir aos piores efeitos do vírus, ou ambos.

As duas últimas categorias, em particular, estão ligadas também a circunstâncias sociais específicas, principalmente a um ponto avançado do ciclo de vida, que está associado à diminuição da capacidade de combater doenças. Mas outras circunstâncias sociais estão envolvidas com eles, bem como com muitas das outras condições. Por exemplo, lares de idosos e instalações de cuidados de longo prazo não apenas abrigam pessoas com condições que as tornam especialmente vulneráveis; eles normalmente dependem de trabalhadores prestadores de cuidados que são mal pagos e explorados e têm maior probabilidade de estarem em maior risco de infecção e, portanto, de transmitir a infecção do que a população em geral. Como todos sabemos, esses “trabalhadores essenciais” podem ser celebrados como “heróis”, mas em um sistema de saúde com fins lucrativos, onde os operadores de tais instalações, cada vez mais empresas de capital privado e de investimento, tendem a cortar custos para manter seus resultados financeiros, os heróis não são apenas mal pagos, sua saúde é uma preocupação secundária.

Os profissionais de saúde, e os profissionais essenciais em geral, têm uma probabilidade desproporcional de adoecer e são desproporcionalmente negros. De forma mais geral, sabemos que nos Estados Unidos, as pessoas classificadas como negras e hispânicas têm uma probabilidade desproporcional de serem pobres e economicamente marginais, de ter acesso inadequado à saúde, de trabalhar em empregos perigosos, debilitantes e, no caso do COVID -19, provavelmente para expô-los a infecções e viver em circunstâncias relativamente congestionadas e em áreas com elevada exposição a toxinas ambientais – todas as condições que prejudicam a saúde básica. Nesse sentido, raça está associada ao risco porque é uma categoria abrangente que abrange proporções relativamente altas de pessoas que vivem em circunstâncias sociais que aumentam o risco. É uma espécie de abreviatura, uma “medida proxy. “Medidas de proxy são o que os pesquisadores usam para tentar obter os efeitos de uma variável quando eles não têm informações diretas sobre a própria variável. Eles usam outras variáveis ​​que parecem se mover junto com aquela em que estão interessados, mas para as quais não têm dados diretos para tentarinferir a importância da categoria pela qual estão interessados ​​em contabilizar. Os pesquisadores geralmente reconhecem o uso da raça como um substituto para a classe.

Mas por que precisamos de um proxy para a classe? Por que não apenas usar a classe? Porque, na maioria das vezes, não podemos. Embora a observação de Vincente Navarro (para a turma de formandos de 2003 da Johns Hopkins Medical School), “os Estados Unidos são um dos poucos países que não incluem a classe em suas estatísticas vitais e de saúde nacional”, sem dúvida exagerou o caso, seu A observação de que os EUA preferem coletar “estatísticas vitais e de saúde por raça e gênero” está correta. Comparando as abordagens da UE e dos EUA para eliminar as disparidades na saúde, Elizabeth Docteur e Robert A. Berenson observam que o foco da UE nas “desigualdades entre as camadas mais favorecidas e as mais desfavorecidas da população”, isto é, “populações com educação mais baixa, uma classe ocupacional mais baixa , ou renda mais baixa. ” “Em contraste,” eles continuam a dizer, os EUA os dados que eles analisam apresentam “disparidades de saúde associadas a raça e etnia como o foco principal de seu esforço para aumentar a igualdade na saúde”. Portanto, os estudiosos que desejam examinar os efeitos de classe do COVID-19, por exemplo, devem confiar em medidas proxy – por exemplo, CEPs, níveis de educação ou raça – para tentar chegar à questão indiretamente. Assim, qualquer que seja o papel desempenhado pela raça em realmente produzir a vulnerabilidade de qualquer indivíduo ao vírus, o papel desempenhado pela raça ao explicar essa vulnerabilidade está em primeiro plano: a manchete é comunidades negras e pardas suportam o peso do COVID-19, não funcionando- as pessoas da classe suportam o fardo do COVID-19. deve confiar em medidas de proxy – por exemplo, CEPs, níveis de educação ou raça – para tentar chegar à questão indiretamente. Assim, qualquer que seja o papel desempenhado pela raça em realmente produzir a vulnerabilidade de qualquer indivíduo ao vírus, o papel desempenhado pela raça ao explicar essa vulnerabilidade está em primeiro plano: a manchete é comunidades negras e pardas suportam o peso do COVID-19, não funcionando- as pessoas da classe suportam o fardo do COVID-19. deve confiar em medidas de proxy – por exemplo, CEPs, níveis de educação ou raça – para tentar chegar à questão indiretamente. Assim, qualquer que seja o papel desempenhado pela raça em realmente produzir a vulnerabilidade de qualquer indivíduo ao vírus, o papel desempenhado pela raça ao explicar essa vulnerabilidade está em primeiro plano: a manchete é comunidades negras e pardas suportam o peso do COVID-19, não funcionando- as pessoas da classe suportam o fardo do COVID-19.

Mesmo quando essa substituição nomeia essencialmente as mesmas pessoas, é um problema, de várias maneiras.

Primeiro, ele funciona para converter a raça de um substituto para outros fatores em um substituto para esses outros fatores. A estudiosa de saúde pública R. Dawn Comstock e seus co-autores em um estudo de 2004 no American Journal of Epidemiology pesquisaram 1.198 artigos naquele periódico e no American Journal of Public Healthpublicado entre 1996 e 1999 e descobriu que quase 86 por cento mencionaram raça, mas que na maioria, pouco mais de 57 por cento, “o propósito de usar raça ou etnia como variáveis ​​não foi descrito” (616) e “apenas raramente foram feitas recomendações de políticas sobre o base de achados associados à raça ou etnia ”(617). Ou seja, os pesquisadores costumam usar raça como uma categoria para interpretar dados simplesmente porque ela já está lá na forma como os dados são coletados e agregados. Fazer isso parece apropriado porque é consistente com o conhecimento popular do senso comum de que “raça” é importante de alguma forma e, portanto, perpetua a ideia de que raça é importante de alguma forma.

Em segundo lugar, a ideia de que a raça em si é importante perpetua a falsa ideia de que existe uma coisa chamada raça. Mas, biologicamente falando, não existe. Não é surpreendente que os pesquisadores já tenham dedicado muito tempo e esforço à procura de marcadores biológicos das diferenças entre as raças. O que é surpreendente é que, muito depois de a busca por tais marcadores ter falhado e haver consenso de que a razão de não os encontrarmos é porque eles não existem, continuamos a organizar nosso pensamento em torno deles – como se houvesse algo sobre a biologia dos corpos negros em função de sua negritude que os tornava mais suscetíveis ao COVID-19. Muitos médicos, incluindo médicos, presumem que os negros, por exemplo, têm características biológicas distintas dos brancos. Um estudo recente descobriu que 50% dos estudantes de medicina ou residentes endossaram pelo menos uma falsa crença sobre diferenças raciais na biologia entre negros e brancos. Um estudo complementar descobriu que quase três quartos de uma amostra de pessoas sem treinamento médico endossaram pelo menos uma dessas falsas crenças. Vale ressaltar a esse respeito que há maior diversidade genética entre duas espécies de chimpanzés, nossos parentes primatas mais próximos, que vivem na mesma pequena região da África Central do que em toda a nossa espécie em todo o globo.

Há uma longa e sórdida história dos danos frequentemente trágicos que as crenças populares sobre as diferenças raciais na biologia causaram às pessoas neste país e em todo o mundo. 8 No ambiente atual, é muito fácil para as pessoas presumir que as disparidades raciais resultam de diferenças na biologia racial. E, como o pensamento racialista é uma mistura nebulosa de fantasias, a crença popular não precisa atribuir as diferenças à biologia. As crenças populares sobre “cultura” fazem o mesmo trabalho de plantar confusão e desinformação. “Cultura”, neste contexto, é tipicamente apenas uma maneira educada de dizer raça e que não requer qualquer afirmação sobre biologia, embora seja freqüentemente usada de forma intercambiável para invocar diferenças essenciais. À sua maneira, uma visão popular de raça como cultura pode ser tão prejudicial quanto a visão biológica porque facilmente dá origem a argumentos de culpabilização das vítimas, segundo os quais as condições de saúde vulneráveis ​​das pessoas são culpa delas devido a suas dietas e hábitos destrutivos estereotipados atribuído a eles. Isso, por sua vez, dá origem a argumentos de que “eles” precisam exercer maior responsabilidade pessoal e que não se deve esperar que “nós” paguemos os custos de cuidar deles. Também vimos muito desse sentimento durante a crise do COVID-19.

Terceiro, aquilo em que focamos pode tornar mais difícil ver outros padrões, talvez igualmente ou mais importantes. Como os dados de saúde pública não são coletados com a renda como categoria de análise, não podemos determinar definitivamente se os ricos, de qualquer raça, foram em média tão vulneráveis ​​aos piores efeitos do COVID-19 quanto os pobres de qualquer raça ou se os idosos ricos são tão vulneráveis ​​quanto os pobres. Essa seria uma informação importante se quisermos entender mais claramente quem em nossa população geral está sob maior ou menor risco. No entanto, temos pistas. Um estudo recente de Les Leopold e do Labor Institute examinou uma série de fatores associados a taxas de mortalidade mais altas na cidade de Nova York.

Bairros com aproximadamente um terço a mais de afro-americanos do que a média dos bairros de Nova York têm nove mortes a mais por 100.000, fazendo com que a taxa média de mortalidade salte de 201 por 100.000 para 210. Se a porcentagem de moradias lotadas também aumentar em um terço, a taxa de mortalidade também aumentou cerca de nove por 100.000. Ter nascido na América Latina, uma categoria que inclui muitos trabalhadores sem documentos, foi associado a duas vezes o risco de morrer de COVID-19 do que o enfrentado por afro-americanos e aqueles que viviam em casas lotadas. Provavelmente, é muito mais difícil para os trabalhadores sem documentos, mesmo os essenciais, obter acesso a assistência médica e financeira. Ser velho, é claro, é um grande fator de risco, não importa sua etnia, local de origem ou renda.

Mas a renda por si só, um indicador-chave de classe, foi a característica mais influente. Bairros de baixa renda registraram um acréscimo de quase 28 mortes por 100.000, aumentando a taxa média de mortalidade em mais de 10 por cento, de 201 mortes por 100.000 para 229. 9

A taxa de mortalidade nos setores censitários com renda média anual abaixo de $ 25.000 foi de 221,8 por 100.000 habitantes, enquanto para os setores censitários com renda média anual acima de $ 240.000 a taxa de mortalidade foi de 85,7 por 100.000. Você tinha duas vezes e meia mais probabilidade de morrer de COVID-19 se morasse em um bairro pobre do que se morasse em um rico. E “apenas a renda” foi “a característica mais influente ” 10

Portanto, em quarto lugar, o uso da raça como proxy de classe não apenas produz um mal-entendido do problema (racismo), mas também produz um mal-entendido da solução (anti-racismo). O entendimento correto do problema é que não são os trabalhadores negros e pardos que estão em risco, mas os trabalhadores de baixa renda, especialmente aqueles que têm de trabalhar durante a pandemia. E isso seria verdade mesmo se todos os trabalhadores de baixa renda fossem de fato pretos e pardos. Por quê? Porque mesmo que seja o racismo que faz com que tantos trabalhadores mal pagos sejam pretos e pardos, não é o racismo que os faz ser tão mal pagos. Krogers, Amazon e McDonalds não pagam tão pouco a seus funcionários porque muitos deles são pessoas de cor. Eles pagam tão pouco porque é assim que eles lucram. Se você tornou os trabalhadores proporcionalmente brancos e asiáticos,

Novamente, isso não significa negar os efeitos do racismo e não negar a disparidade racial. O racismo ajuda a explicar por que tantos trabalhadores de baixa renda são negros e pardos. Mas isso não explica seus baixos salários. E todo o anti-racismo do mundo não daria a menor contribuição para o aumento desses salários. Portanto, mesmo se usar raça como um substituto para a classe fosse preciso no sentido de que nomeava exatamente o mesmo conjunto de pessoas, seria profundamente enganoso. A raça não pode ser um substituto da classe porque a raça indica que o problema é a discriminação contra os trabalhadores, enquanto a classe diz que o problema é obter o máximo valor de seu trabalho. Ou vire ao contrário: a analítica de classe diz que o problema é como tratamos os trabalhadores da linha de frente; a analítica da raça diz que o problema é que muitos negros e pardos precisam ser trabalhadores da linha de frente. É por isso que as empresas mais impiedosas com fins lucrativos podem aprender a amar as demandas mais radicais de eliminação das disparidades entre preto e branco. Para tornar Jeff Bezos e seus acionistas tão ricos quanto eles, a Amazon precisa pagar menos a seus trabalhadores. Não precisa se importar nem um pouco com a cor que eles são.

O que salva muitas pessoas do COVID-19 não é o fato de serem brancas ou asiáticas, mas o fato de serem ricas. E isso é ainda mais vividamente verdadeiro no caso da terceira pessoa da trindade disparitária, as mortes por policiais. Pode ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico ser assassinado pela polícia; mas, como acontece com as mortes de COVID, essas mortes são categorizadas apenas por raça, sexo e idade, então não podemos ter certeza. Em qualquer caso, ninguém pensaria em protestar que os pobres são desproporcionalmente mortos pela polícia, já que controlar os pobres é basicamente o que é policiamento. O problema é a matança desproporcional de negros pobres.

Parte disso pode ser explicado pelo fato de que, como já observamos, os homens negros estão sobrerrepresentados entre os pobres. De fato, se imaginássemos que as vítimas em tiroteios policiais vieram dos três intervalos inferiores no gráfico abaixo, poderíamos concluir que, pelo menos em parte, ser desproporcionalmente morto pela polícia rastreia pobreza desproporcional. O significado da classe social aqui seria apenas uma parte do que os pesquisadores mostraram ser sua (crescente) importância no que diz respeito ao sistema de justiça de forma mais geral, onde, como disse Adaner Usmani, o encarceramento não foi “definido pelo aumento das desigualdades raciais”, mas pelo aumento das disparidades de classe e onde, de fato, enquanto as taxas de encarceramento aumentaram “drasticamente” para os negros americanos pobres; na verdade, diminuíram para “afro-americanos com educação superior”. 11 Uma versão dessa mesma dinâmica de fato ocorreu na área da saúde onde, como Frederick J. Zimmerman e Nathaniel W. Anderson dizem, entre 1993 e 2107, a “diferença entre brancos e negros apresentou melhora significativa”, mas “as disparidades de renda pioraram. ” 12

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https://statisticalatlas.com/United-States/Household-Income

Ainda assim, o racismo certamente desempenha um papel significativo. Para 2019, o Mapping Police Violence registra 30 homicídios policiais de negros desarmados e 53 homicídios de brancos desarmados. (Aqui!) e, se não fosse pelo racismo, parte dessa desproporcionalidade desapareceria. Seria, por exemplo, significativamente reduzido se a polícia matasse apenas um negro a menos e mais um branco por mês. Mas alguém acredita que isso contaria como uma solução, que apenas as mortes que podemos culpar ao racismo que importam? Todo mundo sabe o nome de George Floyd; nenhum de nós sabe o nome de qualquer um dos brancos desarmados mortos pela polícia este ano. Ninguém deve – e nós não devemos – negar que a desproporção é um efeito significativo do racismo. Mas ninguém deveria – e nós não pensamos – que o problema da violência policial é causado pelo racismo ou pode ser resolvido pelo anti-racismo.

Em outras palavras, toda vez que a disparidade racial é invocada como a lente através da qual ver a desigualdade americana, o papel avassalador desempenhado pelo aumento da desigualdade no sistema de classes americano se torna invisível. E isso é, claro, verdadeiro tanto para a direita quanto para a esquerda – pense em todos os comentaristas conservadores que defendem a polícia invocando o espectro do assassinato de negros contra negros. E então pense no amplo consenso entre os criminologistas de que o coeficiente de Gini “prevê taxas de homicídio melhor do que qualquer outra variável”. Os conservadores que tentam culpar a raça pelo crime negro e os liberais que tentam culpar o racismo estão ambos perdendo o ponto. Se você quiser distinguir entre a esquerda e a direita, a questão relevante não é o que eles pensam sobre raça; é o que eles pensam quando a raça é retirada da equação.

Desse ponto de vista, o que vemos hoje não é como a crise do COVID-19 ajudou a revelar as desigualdades estruturais da vida americana, mas como intensificou o processo de ocultá-las. Pense em como o gráfico acima funciona para nos ensinar a ver e ficar chocados com o número desproporcional de brancos e asiáticos na parte superior e negros e latinos na parte inferior, em vez da diferença entre a parte superior e a inferior – para nos chocar com disparidade em vez de desigualdade.

E nenhuma resposta hoje é menos convincente do que, por que não podemos ficar chocados com ambos? Por um lado, não somos. Embora (e é aqui que o gráfico faz um pequeno trabalho contra-hegemônico) as famílias brancas pobres são a maioria, a diferença entre ricos e pobres só ganha força hoje se puder ser redescrita como a diferença entre brancos e negros. Não há manchetes alardeando a descoberta de que os pobres têm pior assistência médica do que os ricos, muito menos anunciando que são mortos com mais frequência pela polícia. Você também pode anunciar que os pobres têm menos dinheiro do que os ricos. Na verdade, o compromisso de abordar as disparidades tornou-se tão central que, mesmo quando está claro que abordar os problemas dos pobres, em vez dos negros, seria mais eficaz na solução dos problemas dos negros,

Em outras palavras, centralizar os negros se tornou uma forma de ignorar os pobres – até mesmo os negros pobres! Afinal, cada passo na direção da redistribuição universal avança, ainda que minimamente, a igualdade entre ricos e pobres e trabalha para corrigir as disparidades raciais. Nenhum passo na direção de reduzir as disparidades promove a igualdade entre ricos e pobres e, sem redistribuição universal, mesmo as medidas que tomamos para reduzir as disparidades são minimamente eficazes. O que significa, então, fazer da disparidade o foco de nossa agenda política?

O que estamos tentando fazer aqui é mostrar que ver a desigualdade como disparidade é vê-la através de uma lente neoliberal. (Vale a pena lembrar, neste contexto, que Margaret Thatcher, quando questionada sobre o que ela considerava sua maior conquista, respondeu “Tony Blair e o Novo Trabalhismo. Forçamos nossos oponentes a mudar de ideia.”) É claro que muitas pessoas comprometidas com o BlackLivesMatter podem se entender como comprometidas também com medidas sociais que vão além de corrigir o problema de desproporcionalidade. Mas, se forem, esse compromisso não decorre de maneira alguma da identificação da disparidade como a métrica mais importante da desigualdade. E, como argumentamos, esse compromisso, não importa o quão seriamente sentido, não é corroborado pela substância da prática política anti-racista. Para o registro, isso significa que aqueles que afirmam uma postura “tanto / quanto-ista” – desde os entusiastas jovens mais auto-satisfeitos e moralizantes aos mais decrépitos trogloditas mergulhados em suas nostálgicas fantasias trotskistas – denunciem os defensores da análise político-econômica e a política da classe trabalhadora como “reducionista de classe” está tentando iludir a si mesma ou o resto de nós, ou ambos,

Finalmente, embora alguns anti-racistas – e certamente muitos liberais – expressem indiferença ou desprezo pelos brancos pobres e da classe trabalhadora, é praticamente impossível, como gerações de proponentes negros da social-democracia compreenderam claramente, imaginar uma estratégia séria para ganhar os tipos de reformas que realmente melhorassem as condições dos trabalhadores negros e pardos, sem ganhá-las para todos os trabalhadores e sem fazê-lo por meio de uma luta ancorada na ampla solidariedade da classe trabalhadora.

E se fosse possível, estaria errado. Uma sociedade onde igualar negros e brancos significa torná-los igualmente subordinados a uma classe dominante (principalmente branca, mas, realmente, o que isso importa?) Não é uma sociedade mais justa, apenas uma sociedade diferente. Esse é o problema da disparidade.

NOTAS

1. Robert Manduca, “Income Inequality and the Persistence of Racial Economic Disparities”, Sociological Science 5 (março de 2018): 182-205. https://sociologicalscience.com/download/vol-5/march/SocSci_v5_182to205.pdf 

2. Preston H. Smith II, Racial Democracy and the Black Metropolis: Housing Policy in Postwar Chicago (Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2012) e “The Quest for Racial Democracy: Black Civic Ideology and Housing Interests in Postwar Chicago, ” Journal of Urban History 26 (janeiro de 2000): 131-157. 

3. Paul Krugman, “Hillary and the Horizontals,” New York Times (10 de junho de 2016): no https://www.nytimes.com/2016/06/10/opinion/hillary-and-the-horizontals.html . 

4. As mulheres negras são 26,1 por cento dos auxiliares de cuidados pessoais, auxiliares de saúde domiciliar e auxiliares de enfermagem e, entre aqueles que trabalham em tempo integral, durante todo o ano nesses empregos, https://nwlc-ciw49tixgw5lbab.stackpathdns.com/wp-content/uploads /2020/07/Black-Womens-Equal-Pay-Day-Factsheet-7.27.20-v3.pdf 

5. Na verdade, What Was African American Literature (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012) deKen Warrenargumenta que as ambições burguesas individuais (ganhar muito dinheiro, ter um emprego de prestígio, etc.) são normalmente transformadas em esforços para alcançar justiça social apenas por realocá-los em pessoas negras. O desejo do branco de ser rico passa a ser o desejo do negro de ser igual. E embora Warren esteja falando principalmente sobre romances, obviamente não é uma ficção. Enquanto escrevemos isto, a Bloomberg News está relatando preocupações de que “Embora cerca de 10% dos diretores nas 200 maiores empresas do S&P 500 sejam negros … a porcentagem de executivos negros ingressando em conselhos em 2020 caiu para 11% de 13% no ano anterior.”https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-08-19/companies-seek-more-black-directors-after-adding-women Black Corporate Directors Matter! É claro que a representação proporcional de mulheres e negros nos conselhos de administração é mais uma questão liberal do que de esquerda. Mas, também é claro, sempre que você enquadra a desigualdade em termos de disparidade, você se compromete com a lógica do liberalismo. 

6. Touré F Reed, Toward Freedom: The Case Against Race Reductionism (Nova York: Verso, 2020) , 166-67. 

7 Em primeiro lugar, as pessoas são mais ou menos vulneráveis ​​como indivíduos, não como membros de grupos. Na verdade, existe algo como um truque de prestidigitação no trabalho de chamar categorias classificadas de grandes conjuntos de dados agregados de “grupos”. Ser membro de um grupo no uso diário implica algum senso de coesão em torno de experiências ou preocupações compartilhadas. Grupos estatísticos são abstrações numéricas que os pesquisadores extraem desses conjuntos de dados agregados com base em características compartilhadas que os pesquisadores consideram elementos importantes do que estão tentando estudar. Portanto, esses “grupos” são pessoas categorizadas com base em características compartilhadas que são pertinentes aos pesquisadores. Esses agrupamentos podem ser maiores ou menores, dependendo dos interesses dos pesquisadores. Eles podem ser “aninhados” de forma que algumas categorias menores caibam dentro ou abaixo de categorias maiores.

No que diz respeito à pesquisa em saúde pública e à noção de populações em risco, a abordagem é classificar dados agregados, talvez de toda a população, para determinar quais características tornam, ou parecem tornar, os indivíduos mais suscetíveis a resultados indesejáveis. No caso do COVID-19, uma vez que todos os expostos parecem estar em risco semelhante de contrair o vírus, as questões críticas são quais características tornam alguns indivíduos mais propensos a serem expostos e quais características fazem aqueles que contraem a doença mais propensos a sofrer complicações graves ou morte. Os pesquisadores e funcionários da saúde pública classificam as pessoas com essas características como populações de risco, o que significa que, como indivíduos, são mais propensas do que a população em geral a sofrer complicações graves, incluindo morte,

8. Já observamos a história de danos médicos e políticos gerados pelo tratamento da raça como uma categoria biológica legítima. Esse mal pode derivar de intenções aparentemente benignas, não menos do que de intenções ignóbeis ou más. Jonathan Kahn, em Race in a Bottle: The Story of BiDil and Racialized Medicine in a Post-Genomic Age (Nova York: Columbia University Press, 2014) , examina a aliança entre a Big Pharma, a Association of Black Cardiologists e o Federal Drug Administração no início dos anos 2000 que levou à primeira patente na história para um medicamento supostamente específico para uma raça, um anticoagulante que não se mostrou eficaz para uso geral, mas foi aprovado, após testes duvidosos, como eficaz para homens afro-americanos. Claro, não foi.

A confusão sobre o que raça é e o que não é, combinada com a predominância do quadro de disparidades, já levou a um foco equivocado nos apelos por diversidade racial na seleção de indivíduos para ensaios clínicos que testam possíveis vacinas COVID-19. A escritora científica do Washington Post Carolyn Y. Johnson mostra o problema claramente que 

“A busca científica sem precedentes para acabar com a pandemia com uma vacina agora enfrenta um de seus testes mais cruciais, e nada menos do que o sucesso de todo o esforço está em jogo. Uma vacina deve funcionar para todos – jovens e idosos; preto, marrom e branco. Para provar que sim, muitos dos 30.000 voluntários para cada teste devem vir de diversas comunidades. É uma necessidade científica, mas também um imperativo moral, uma vez que jovens negros morrem de coronavírus com o dobro da taxa de brancos e negros, hispânicos e nativos americanos são hospitalizados com quatro a cinco vezes a taxa de brancos da mesma idade grupos. (Carolyn Y. Johnson, “A Trial for Coronavirus Vaccine Researchers: Making Sure Black and Hispanic Communities are included in Studies”, Washington Post [26 de julho de 2020]: np)

Não temos nada contra a alegação de que os pesquisadores devem selecionar participantes de ensaios clínicos de uma população diversa. No entanto, a afirmação de Johnson presume que a classificação racial pode ser mapeada em diferenças biologicamente significativas. Mais uma vez, não pode, porque a raça é um artifício ideológico imposto arbitrariamente a uma espécie humana que certamente varia biologicamente, embora não apenas não muito em comparação com outras espécies de primatas, mas de maneiras que nada têm a ver com a taxonomia racial abstrata . Em relação à prática médica em particular, Darshali Vyas e co-autores publicaram recentemente um artigo no New England Journal of Medicine soando o alarme sobre as maneiras como a “correção racial” injustificada em algoritmos clínicos pode reforçar as desigualdades existentes. Eles notam que:

apesar das evidências crescentes de que a raça não é um substituto confiável para a diferença genética, a crença de que é tornou-se incrustada, às vezes insidiosamente, na prática médica. Uma inserção sutil da raça na medicina envolve algoritmos de diagnóstico e diretrizes de prática que ajustam ou “corrigem” seus resultados com base na raça de etnia do paciente. Os médicos usam esses algoritmos para individualizar a avaliação de risco e orientar as decisões clínicas. Ao incorporar a raça aos dados e decisões básicos de saúde, esses algoritmos propagam a medicina baseada em raça. Muitos desses algoritmos ajustados por raça orientam as decisões de maneiras que direcionam mais atenção e recursos para pacientes brancos do que para membros de minorias raciais e étnicas. (Darshali A. Vyas, Leo G. Eisenstein e David S. Jones,New England Journal of Medicine 383, no. 9 [27 de agosto de 2020]: 874-82; esta citação é de 874.)

Vyas et al. relatam que muitas vezes “os desenvolvedores de algoritmos não oferecem nenhuma explicação de por que podem existir diferenças raciais ou étnicas. Outros oferecem fundamentos lógicos, mas quando estes são rastreados até suas origens, eles levam a uma ciência racial desatualizada e suspeita ou a dados tendenciosos ”. Além disso, eles observam que “as diferenças raciais encontradas em grandes conjuntos de dados provavelmente refletem os efeitos do racismo – ou seja, a experiência de ser negro na América, em vez de ser negro em si – como o estresse tóxico e suas consequências fisiológicas. Nesses casos, o ajuste racial não faria nada para resolver a causa da disparidade. Em vez disso, se os ajustes impedirem os médicos de oferecer serviços clínicos a certos pacientes, eles correm o risco de incutir injustiça no sistema ”(879).

Em tais casos, raça dificilmente tem a intenção de ser um substituto da classe. Em vez disso, ele faz o trabalho que a raça sempre fez como um artifício que torna a classe invisível e lê a desigualdade na natureza. E, sem surpresa, as considerações de mercado também figuram nas correções de corrida, na medida em que a eficácia de custo é um elemento no cálculo dos algoritmos. Vyas et al. também relatar uma ferramenta clínica amplamente usada levou em consideração os custos de cuidados de saúde anteriores ao prever o risco clínico. Como o sistema de saúde gastou mais dinheiro, em média, com pacientes brancos do que com negros, a ferramenta retornou escores de risco mais altos para pacientes brancos do que para negros. Essas pontuações podem muito bem ter levado a mais encaminhamentos de pacientes brancos para serviços especializados, perpetuando disparidades de gastos e preconceito racial em saúde. (879)

9. Less Leopold, “COVID-19’s Class War,” The American Prospect (28 de julho de 2020): no https://prospect.org/coronavirus/covid-19-class-war-death-rates-income /.

10. Barbara Jean e Karen Fields discutem outro incidente que acerta totalmente o que está errado sobre este momento de tagarelice “pior para os negros” sobre COVID-19. Ao discutir essa história do NYT— https://www.nytimes.com/2006/10/29/nyregion/a-study-links-trucks-exhaust-to-bronx-schoolchildrens-asthma.html , eles observam:

Às vezes, a névoa da corrida rola no último minuto, como um non sequitur descarrilador para um argumento de outra forma lógico. Há alguns anos, o  New York Times relataram que cientistas que conduziram um estudo epidemiológico de asma entre crianças em idade escolar em South Bronx produziram evidências contundentes sobre a poluição do ar ambiental causada pelo tráfego de caminhões pesados. O estudo identificou as emissões de partículas, citou a localização das principais rodovias e, por meio de coleta de dados engenhosa, tirou conclusões sobre a exposição das crianças, em bairros específicos, em diferentes horas do dia, a “concentrações muito altas de partículas finas em um ambiente bastante regular base.” As correlações surgiram: “Os sintomas, como chiado no peito, dobraram nos dias em que a poluição do tráfego de caminhões era mais alta.” Pareceria tão claro quanto o meio-dia que a desigualdade de classes havia imposto a doença a essas crianças americanas. Ainda assim, o resumo do artigo cai em uma confusa pseudo-genética. Para uma lista de contribuintes para as altas taxas de asma, que inclui trânsito intenso, população densa, moradia precária e falta de acesso a cuidados médicos, o artigo acrescenta “uma grande população de negros e hispânicos, dois grupos com altas taxas de asma”. O Racecraft permitiu que a consequência sob investigação se disfarçasse entre as causas. A suscetibilidade ao ar sujo não depende da categoria censitária à qual pertence o asmático.Racecraft: The Soul of Inequality in American Life (Nova York: Verso, 2014), 40-41.

11. Os editores, “Everything You Know about Mass Encarceration Is Wrong: An Interview with Adaner Usmani”, Jacobin (17 de março de 2020): no https://www.jacobinmag.com/2020/03/mass-incarceration-racism -carceral-state-new-Jim-crow .

12. Frederick J. Zimmerman e Nathaniel W. Anderson, “Tendências em Equidade em Saúde nos Estados Unidos por Raça / Etnia, Sexo e Renda, 1993-2017,” JAMA Network Open 2, no. 6 (5 de junho de 2019): no https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6604079/ ); corrigido JAMA Network Open 2, no. 7 (24 de julho de 2019).

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sobre os autores

Adolph Reed, Jr. é professor emérito de ciência política na Universidade da Pensilvânia e organizador da iniciativa Medicare for All-South Carolina do Debs-Jones-Douglass Institute. No momento, ele está concluindo um livro, Quando os compromissos vêm para casa, para o poleiro: o declínio e a transformação da esquerda norte-americana pela Verso e, com Kenneth W. Warren, “Você não pode chegar lá a partir daqui: estudos negros, política cultural e a evasão de Desigualdade” pela Routledge. Seus outros livros incluem The Jesse Jackson Phenomenon: The Crisis of Purpose in Afro-American Politics ; WEB Du Bois e American Political Thought: Fabianism and the Color Line ; Agitações no jarro: política negra na era pós-segregaçãoNotas de aula: Posando como política e outros pensamentos sobre a cena americana ; e co-autor com Kenneth W. Warren et al., Renewing Black Intellectual History: The Ideological and Material Foundations of African American Thought .

Walter Benn Michaels é professor de inglês na University of Illinois at Chicago (UIC), e seu livro mais recente é The Beauty of a Social Problem (Chicago, 2016). Outros de seus livros incluem The Gold Standard e a Logic of Naturalism: American Literature at the Turn of the Century ; Nossa América: Nativismo, Modernismo e Pluralismo ; A forma do significante: 1967 até o fim da história ; e O problema com a diversidade: como aprendemos a amar a identidade e a ignorar a desigualdade .

fecho

Este artigo foi originalmente escrito em inglês e publicado pelo “Nonsite” [Aqui!  ].

O problema com a disparidade

O racismo é real e o anti-racismo é admirável e necessário, mas o racismo existente não é o que principalmente produz nossa desigualdade e o anti-racismo não vai eliminá-lo.

unemployment_coronavirus_0“Como o racismo não é a principal fonte de desigualdade hoje”, argumentam Reed e Benn Michaels, “o anti-racismo funciona mais como um equívoco que justifica a desigualdade do que uma estratégia para eliminá-la”. (Foto: Kena Betancu / AFP via Getty Images)

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Se a pandemia de COV ID-19 e os assassinatos de negros desarmados pela polícia tornaram visíveis as desigualdades subjacentes da vida americana, ambos foram recebidos com análises prontas de, primeiro, o que produziu essas desigualdades e, segundo, como para eliminá-los. O problema (considerado tão arraigado na vida americana que às vezes é chamado de pecado original da América) é o racismo; a solução é o anti-racismo. E a confiança no diagnóstico e na cura é tão alta que produziu ação em todos os lugares, desde BLM protestando nas ruas até a votação da legislatura do Mississippi para derrubar sua bandeira para salas de diretoria corporativas que prometem literalmente bilhões de dólares – tudo com o admirável objetivo de acabar supremacia branca.

Tudo isso, é claro, tendo como pano de fundo uma economia que – tanto para os brancos quanto para os negros – se tornou cada vez mais desigual ao longo do último meio século. O índice de Gini (uma medida de desigualdade em que zero significa que todos temos o mesmo, enquanto um significa que uma pessoa tem tudo) passou de 0,397 em 1967 para 0,485 hoje. (Em contraste, a pior pontuação atual na Europa é basicamente a nossa há meio século.) E a maioria das pessoas – pelo menos na esquerda – que se preocupa com a disparidade racial, sem dúvida acredita que a desigualdade entre as classes também é um problema. Na verdade, eles podem muito bem acreditar que atacar o racismo é um passo também na direção de atacar a lacuna entre o decil superior da riqueza americana e todos os demais.

Mas eles estão enganados. Na verdade, não apenas o foco no esforço para eliminar as disparidades raciais não nos levará na direção de uma sociedade mais igualitária, nem mesmo é a melhor maneira de eliminar as disparidades raciais em si. Se o objetivo é eliminar a pobreza negra e não simplesmente beneficiar as classes altas, acreditamos que o diagnóstico de racismo está errado e a cura do anti-racismo não funcionará. O racismo é real e o anti-racismo é admirável e necessário, mas o racismo existente não é o que principalmente produz nossa desigualdade e o anti-racismo não vai eliminá-lo. E porque o racismo não é a principal fonte de desigualdade hoje, o anti-racismo funciona mais como um equívoco que justifica a desigualdade do que uma estratégia para eliminá-la.

O que faz o racismo parecer o problema? As disparidades raciais muito reais visíveis na vida americana. E o que faz o anti-racismo parecer a solução? Duas crenças plausíveis, mas falsas: que as disparidades raciais podem de fato ser eliminadas pelo anti-racismo e que, se pudessem, sua eliminação faria dos Estados Unidos uma sociedade mais igualitária. A diferença de riqueza racial, por ser tão notável e comumente invocada, é uma ilustração muito boa, para não dizer perfeita, de como, em nossa opinião, tanto o problema quanto a solução são concebidos de maneira incorreta.

Já se sabe que os brancos têm mais riqueza líquida do que os negros em todos os níveis de renda, e a diferença racial geral na riqueza é enorme. Por que o anti-racismo não resolve esse problema? Porque, como Robert Manduca mostrou , o fato de os negros estarem super-representados entre os pobres no início de um período em que “trabalhadores de baixa renda de todas as raças” foram prejudicados pelas mudanças na vida econômica americana significa que eles “suportou o impacto” dessas mudanças. A falta de progresso na superação do hiato de riqueza entre brancos e negros tem sido uma função do aumento do hiato de riqueza entre ricos e pobres.

Na verdade, se você observar como a riqueza de brancos e negros é distribuída nos Estados Unidos, verá imediatamente que a própria ideia de riqueza racial é vazia. Os 10% do topo da população branca possuem 75% da riqueza branca; os 20% melhores têm virtualmente tudo isso. E o mesmo é verdade para a riqueza negra. Os 10% mais ricos das famílias negras detêm 75% da riqueza negra.

Isso significa que, como Matt Bruenig do People’s Policy Project observou recentemente,“a disparidade geral de riqueza racial é impulsionada quase inteiramente pela disparidade entre os 10% mais ricos dos brancos e os 10% mais ricos dos negros.” Isso não quer dizer que não existam diferenças em quase toda a linha: os negros pobres são, em geral, ainda mais pobres do que os brancos pobres. Mas significa que quando você diz a 80% dos brancos que possuem menos de 15% da riqueza branca que a desigualdade básica nos Estados Unidos é entre negros e brancos, eles sabem que você está errado. Mais revelador, se você disser a mesma coisa para 80% dos negros na mesma posição, eles também saberão que você está errado. Não são os brancos que têm riqueza branca; são os primeiros dez por cento dos brancos, além de alguns negros e asiáticos.

Tentar resolver o problema da disparidade racial, portanto, nada tem a ver com a produção de igualdade econômica; em vez disso, substitui a meta de igualdade pela meta de desigualdade proporcional. O ideal disparitarista é que os negros e outros não-brancos devem ser representados em todos os degraus da escada da hierarquia econômica em proporção aproximada à sua representação na população em geral. Em vez de se preocupar com a desigualdade, ela se preocupa com as desigualdades que foram produzidas pelo racismo. Obviamente, isso não faz nada para os brancos pobres. Mas, também obviamente, não faz nada para a maioria dos negros pobres. Em sua insistência de que a proporcionalidade é a única norma e métrica defensável de justiça social,

Reclamações sobre desproporcionalidade são matemática neoliberal. Eles nos dizem que o aumento da riqueza de um por cento estaria bem se houvesse mais bilionários negros, pardos e LGBTQIA +. E o fato de que o anti-racismo e a anti-discriminação de todos os tipos validariam em vez de minar a estratificação da riqueza na sociedade americana é completamente visível para aqueles que atualmente possuem essa riqueza – todas as pessoas ricas ansiosas para embarcar em um curso de purificação moral isso os tornará menos racistas, mas sem nenhum interesse em uma política que os tornaria menos ricos.

Como gerações de proponentes negros da social-democracia compreenderam claramente, é praticamente impossível imaginar uma estratégia séria para vencer os tipos de reformas que realmente melhorariam as condições dos trabalhadores negros e pardos sem ganhá-los para todos os trabalhadores e sem fazê-lo através da luta ancorado na ampla solidariedade da classe trabalhadora. Nosso outro ponto é que, mesmo se fosse possível, estaria errado. Uma sociedade onde igualar negros e brancos significa torná-los igualmente subordinados a uma classe dominante (principalmente branca, mas, realmente, o que isso importa?) Não é uma sociedade mais justa, apenas uma sociedade diferente. Esse é o problema da disparidade.

Uma versão mais longa deste ensaio está programada para publicação em Nonsite.org no final deste mês.

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Adolph Reed Jr. é professor emérito de ciência política na Universidade da Pensilvânia e organizador do Medicare for All-South Carolina.
Walter Benn Michaels é professor de inglês na Universidade de Illinois em Chicago. Ele é o autor de The Trouble with Diversity: How We Learn to Love Identity and Ignore Inequality (2006), que acaba de ser publicado em uma edição do décimo aniversário e, mais recentemente, de A beleza de um problema social: fotografia, autonomia, economia(2015).
fecho
Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pelo Centro de Notícias Common Dreams [Aqui!].

 

A curiosa história do intelectual marxista negro que foi “cancelado” nos EUA por colocar a classe acima da raça

O cancelamento do discurso do Professor Adolph Reed reflete um intenso debate na esquerda: o racismo é o principal problema na América hoje, ou o resultado de um sistema que oprime todas as pessoas pobres?

adolph reedCrédito: Eric Sucar/Universidade da Pensilvânia

Por Michael Powell para o “The New York Times”

Adolph Reed é um filho do Sul segregado, natural de Nova Orleans que organizou negros pobres e soldados que eram contra a guerra do Vietnã no final dos anos 1960, e se tornou um importante estudioso socialista em um trio de universidades importantes.

Ao longo do caminho, ele adquiriu a convicção, hoje polêmica, de que a esquerda está muito focada na raça e não o suficiente na classe. Vitórias duradouras foram alcançadas, ele acreditava, quando a classe trabalhadora e os pobres de todas as raças lutaram ombro a ombro por seus direitos.

No final de maio, o professor Reed, agora com 73 anos e professor emérito da Universidade da Pensilvânia, foi convidado a falar para o capítulo dos Socialistas Democratas da América em Nova York. A combinação parecia natural. Possuidor de uma sagacidade farpada, o homem que fez campanha para o senador Bernie Sanders e espetou o presidente Barack Obama como um homem de “política neoliberal vazia e repressiva” abordaria o maior capítulo da DSA, o cadinho que deu origem ao representante Alexandria Ocasio-Cortez e um nova geração de ativismo de esquerda.

O tema escolhido foi implacável: ele planejava argumentar que o intenso foco da esquerda no impacto desproporcional do coronavírus sobre os negros minou a organização multirracial, que ele vê como a chave para a saúde e a justiça econômica.

As notificações aumentaram. A raiva cresceu. Como poderíamos convidar um homem para falar, perguntaram os membros, que minimiza o racismo em uma época de peste e protesto? Para deixá-lo falar, os Afrosocialistas e Socialistas de Cor da organização declararam que era “reacionário, reducionista de classe e, na melhor das hipóteses, surdo para tons”.

“Não podemos ter medo de discutir raça e racismo porque isso pode ser maltratado pelos racistas”, afirmou o caucus. “Isso é covarde e cede poder aos capitalistas raciais.”

Em meio a murmúrios de que os oponentes poderiam interromper sua palestra sobre o Zoom, o professor Reed e os líderes do DSA concordaram em cancelá-la, um momento marcante porque talvez a organização socialista mais poderosa dos EUA estava rejeitando a palestra de um professor marxista negro por causa de suas opiniões sobre raça.

“Deus tenha misericórdia, Adolph é o maior teórico democrático de sua geração”, disse Cornel West, professor de filosofia de Harvard e socialista. “Ele assumiu algumas posições muito impopulares em relação à política de identidade, mas tem um histórico de meio século. Se você desistir da discussão, seu movimento se tornará estreito. ”

A decisão de silenciar o professor Reed veio enquanto os americanos debatiam o papel da raça e do racismo no policiamento, saúde, mídia e corporações. Freqüentemente, são deixados de lado nesse discurso aqueles esquerdistas e liberais que argumentaram que há muito foco na raça e não o suficiente na classe em uma sociedade profundamente desigual. O professor Reed faz parte da classe de historiadores, cientistas políticos e intelectuais que argumentam que a raça como um construto é exagerada.

Esse debate é particularmente potente à medida que os ativistas percebem uma oportunidade única em uma geração de fazer progresso em questões que vão desde a violência policial até o encarceramento em massa, saúde e desigualdade. E acontece quando o socialismo na América – há muito um movimento predominantemente branco – atrai adeptos mais jovens e diversificados.

Muitos acadêmicos esquerdistas e liberais argumentam que as disparidades atuais em saúde, brutalidade policial e desigualdade de riqueza se devem principalmente à história de racismo e supremacia branca da nação. Raça é a ferida primária da América, eles dizem, e os negros, após séculos de escravidão e segregação de Jim Crow, deveriam assumir a liderança em uma luta multirracial para desmantelá-la. Deixar essa batalha de lado em busca de solidariedade de classe efêmera é absurdo, eles argumentam.

“Adolph Reed e sua turma acreditam que, se falarmos demais sobre raça, alienaremos muitos e isso nos impedirá de construir um movimento”, disse Keeanga-Yamahtta Taylor, professora de estudos afro-americanos de Princeton e membro da DSA . “Não queremos isso – queremos conquistar os brancos para uma compreensão de como seu racismo distorceu fundamentalmente a vida dos negros.”

Uma visão contrária é oferecida pelo professor Reed e alguns estudiosos e ativistas proeminentes, muitos dos quais são negros. Eles vêem a atual ênfase da cultura na política baseada em raça como um beco sem saída. Eles incluem o Dr. West; os historiadores Barbara Fields da Columbia University e Toure Reed – filho de Adolph – do estado de Illinois; e Bhaskar Sunkara, fundador da Jacobin, uma revista socialista.

Eles aceitam prontamente a realidade bruta da história racial da América e do pedágio do racismo. Eles argumentam, no entanto, que os problemas que agora atormentam os Estados Unidos – como a desigualdade de riqueza, a brutalidade policial e o encarceramento em massa – afetam os americanos negros e pardos, mas também um grande número de americanos da classe trabalhadora e brancos pobres.

Os movimentos progressistas mais poderosos, dizem eles, se enraízam na luta por programas universais. Isso foi verdade para as leis que capacitaram a organização do trabalho e estabeleceram programas de empregos em massa durante o New Deal, e é verdade para as lutas atuais por mensalidades universitárias públicas gratuitas, um salário mínimo mais alto, forças policiais retrabalhadas e assistência médica de pagador único.

Esses programas ajudariam desproporcionalmente negros, latinos e nativos americanos, que em média têm menos riqueza familiar e sofrem de problemas de saúde em taxas superiores às dos americanos brancos, argumentam o professor Reed e seus aliados. Fixar-se na raça corre o risco de dividir uma coalizão potencialmente poderosa e jogar nas mãos dos conservadores.

“Uma obsessão com disparidades raciais colonizou o pensamento dos tipos de esquerda e liberais”, disse-me o professor Reed. “Existe essa insistência de que raça e racismo são determinantes fundamentais da existência de todos os negros.”

Essas batalhas não são novas: no final do século 19, os socialistas lutaram contra seu próprio racismo e debateram até que ponto deveriam tentar construir uma organização multirracial. Eugene Debs, que concorreu à presidência cinco vezes, foi vigoroso em sua insistência de que seu partido defendesse a igualdade racial. Questões semelhantes turvaram os direitos civis e os movimentos de poder negro dos anos 1960.

Mas o debate foi reacendido pela disseminação do vírus mortal e pela morte de George Floyd pela polícia em Minneapolis. E assumiu um tom geracional, à medida que o socialismo – na década de 1980, em grande parte, o reduto de esquerdistas envelhecidos – agora atrai muitos jovens ansiosos por remodelar organizações como os Socialistas Democráticos da América, que existiu em várias permutações desde os anos 1920. (Uma pesquisa Gallup no final do ano passado descobriu que o socialismo agora é tão popular quanto o capitalismo entre pessoas de 18 a 39 anos).

O DSA agora tem mais de 70.000 membros em todo o país e 5.800 em Nova York – e sua média de idade agora gira em torno dos 30 anos. Embora o partido seja muito menor do que, digamos, democratas e republicanos, ele se tornou um improvável criador de reis, ajudando a alimentar as vitórias de candidatos do Partido Democrata, como Ocasio-Cortez e Jamaal Bowman, que derrotou um antigo candidato democrata nas primárias de junho .

Em anos anteriores, o DSA deu as boas-vindas ao Professor Reed como palestrante. Mas os membros mais jovens, irritados com seu isolamento em Covid-19 e se lançando em protestos “Defund the Police” e anti-Trump, ficaram irritados ao saber do convite feito a ele.

“As pessoas têm preocupações muito fortes”, disse Chi Anunwa, co-presidente da filial da DSA em Nova York, em uma teleconferência da Zoom. Eles disseram que “a conversa era muito indiferente às disparidades raciais em um ponto muito tenso da vida americana”.

O professor Taylor, de Princeton, disse que o professor Reed deveria saber de sua palestra planejada sobre a Covid-19 e os perigos da obsessão por disparidades raciais seriam registrados como “uma provocação. Foi bastante incendiário. ”

Nada disso surpreendeu o professor Reed, que sarcasticamente o descreveu como uma “tempestade em um pequeno copo de café”. Alguns na esquerda, disse ele, têm uma “objeção militante a pensar analiticamente”.

O professor Reed é um duelista intelectual, que gosta especialmente de lancetar os liberais que considera cúmplices demais dos interesses corporativos. Ele escreveu que o presidente Bill Clinton e seus seguidores liberais demonstraram uma “disposição de sacrificar os pobres e considerá-los uma compaixão obstinada” e descreveu o ex-vice-presidente Joseph R. Biden Jr. como um homem cujas “ternas misericórdias foram reservadas para os setores bancário e de cartão de crédito. ”

Ele encontra certo humor em ser atacado por causa da questão da raça.

“Nunca comecei com minha biografia, pois isso se tornou um gesto de reivindicação de autenticidade”, disse ele. “Mas quando meus oponentes dizem que não aceito que o racismo seja real, penso comigo mesmo: ‘OK, chegamos a um lugar estranho.’”

O professor Reed e seus compatriotas acreditam que a esquerda muitas vezes se envolve em batalhas por símbolos raciais, de estátuas a linguagem, em vez de ficar de olho nas mudanças econômicas fundamentais.

“Se eu dissesse a você: ‘Você está demitido, mas conseguimos mudar o nome de Yale para o nome de outra pessoa branca’, você me olharia como se eu fosse louco”, disse Sunkara, o editor da Jacobino.

Melhor, eles argumentam, falar de semelhanças. Embora exista uma vasta lacuna de riqueza entre americanos negros e brancos, os brancos pobres e da classe trabalhadora são notavelmente semelhantes aos negros pobres e da classe trabalhadora no que diz respeito à renda e riqueza, o que significa que possuem muito pouco de ambos. Políticos do Partido Democrata, dizem o professor Reed e seus aliados, usam a corrida como uma esquiva para evitar lidar com grandes questões econômicas que afetam mais profundamente, como a redistribuição de riqueza, já que isso perturbaria sua base de doadores ricos.

“Os liberais usam a política de identidade e raça como uma forma de conter os apelos por políticas redistributivas”, observou Toure Reed, cujo livro “Rumo à liberdade: o caso contra o reducionismo racial” aborda esses assuntos.

Alguns na esquerda argumentam que o professor Reed e seus aliados ignoram que uma forte ênfase na raça não é apenas uma boa política, mas também uma organização de bom senso.

“Não apenas os negros sofrem opressão de classe”, disse o professor Taylor de Princeton, “eles também sofrem opressão racial. Eles são fundamentalmente mais marginalizados do que os brancos.

“Como entramos pela porta sem falar de raça e racismo?”

Eu coloquei essa pergunta para o Professor Reed. Filho de acadêmicos radicais itinerantes, ele passou grande parte de sua infância em Nova Orleans. “Eu ia e voltava para o sul impregnado por Jim Crow e desenvolvi um ódio especial por aquele sistema”, disse ele.

No entanto, mesmo tendo tido prazer ultimamente, quando Nova Orleans removeu os memoriais da velha Confederação, ele preferiu um simbolismo diferente. Ele lembrou, quando menino, de viajar para pequenas cidades da Nova Inglaterra e caminhar por cemitérios e ver lápides cobertas de musgo marcando os túmulos de jovens brancos que morreram a serviço da União.

“Tive uma sensação calorosa ao ler aquelas lápides, ‘Fulano morreu para que todos os homens pudessem ser livres’”, disse ele. “Havia algo tão comovente sobre isso.”

Michael Powell é o colunista do Sports of The Times. Nascido em Nova York, ele se juntou ao The Times em 2007. Ele fez parte de times que ganharam o Polk Award e o Pulitzer Prize.@Powellnyt

fecho

Este artigo foi originalmente escrito em inglês e publicado pelo “The New York Times” [Aqui!].

O racismo não aumentou no Brasil, apenas ficou mais evidente

paulino guajajaraCacique Paulino Guajajara que foi assassinado por defender a Terra Indígena Arariboia no estado do Maranhão

Há quem diga com claro choque que o racismo aumentou no Brasil ao longo de 2019. Eu já diria que o caso não é esse, pois vivemos em uma sociedade marcada por diferenças sociais gigantescas e marcada pela recusa de se fazer as devidas reparações sociais e econômicas pelos vários séculos de escravidão negra e indígena.

Em minha opinião que temos agora é, por um lado, a sensação pelos racistas de que estamos vivendo uma espécie de temporada para a livre manifestação de ideias e posturas racistas e, por outro, da permissão para que grupos criminosos ou mesmo pertencentes pertencentes ao aparelho repressivo do estado possam agir com violência plena.

A verdade é que não estamos nos tornando um país racista repentinamente, mas sempre fomos. O que há de diferente agora é a presença de governantes que não apenas toleram, mas explicitamente fomentam não apenas o ódio racial, mas também a homofobia e a misoginia. Somando-se esse suporte vindo do interior do aparelho de estado a uma colossal crise econômica, não é de se estranhar a verdadeira epidemia de casos de violência racial, feminicídios e ataques homofóbicos que varrem diferentes partes do território nacional neste momento.

A resposta imediata a essa conjuntura precisa ser o fortalecimento das estruturas de organizações sociais que se coloquem como ferramentas de contenção e ações ativas contra os indivíduos e grupos que queiram se aproveitar do ambiente estabelecido para impor sua agenda de violência e discriminação.  Ou é isso ou continuaremos apenas contando os corpos em meio ao avanço dos grupos e indivíduos que usam a violência como instrumento para a acumulação de riqueza.

O racismo como parte do cotidiano: o caso da advogada Valéria Santos

O crescimento da aplicação inversa do “politicamente correto” já vem ocorrendo no Brasil há alguns anos, mas ganhou força com um livro que sumiu das prateleiras de autoria de Ali Khmael, uma das cabeças coroadas das Organizações Globo da família Marinho, intitulado “Não somos racistas” [1], o que ocorreu em 2006.

Mas o fato é que, motivados ou não pelas posições emanadas naquele livro, muitos brasileiros passaram a adotar uma postura de negação do racismo institucionalizado e explicitado nas relações mais básicas da nossa desigualdade fraturada.  Isso, inclusive, foi utilizado por vários espertalhões que passaram a basear suas plataformas eleitorais na negação do racismo e no questionamento da necessidade do Brasil adotar medidas de reparação histórica, sendo a política de cotas uma delas. Um ápice disso foi a negação recente em uma entrevista de um certo candidato a presidente que negou até que os africanos tivessem sido trazidos contra sua vontade para o Brasil.

Essa aplicação reversa do “politicamente correto” tem servido para obscurecer algo que é básico: o racismo é uma forma socialmente institucionalizada, o que torna muito difícil a vida dos brasileiros que descendem dos escravos que foram trazidos da África para impulsionar a economia colonial portuguesa. A chance de envelhecer calmamente e de forma digna é quase impossível para a maioria dos negros brasileiros, dada a perversa estrutura social que foi montada para negar-lhes aquilo que uma elite majoritariamente branca tem assegurado a partir de uma constante pilhagem das riquezas nacionais.

Um exemplo lapidar do que estou dizendo acaba de ocorrer no 3º Juizado Especial Cível do Fórum de Duque de Caxias (RJ), onde uma juíza leiga (portanto, terceirizada) ordenou a prisão da advogada Valéria Lúcia dos Santos que foi presa e algemada pelo simples fato de ter tentado exercer a defesa da sua cliente.

valeria

Como em tempos de redes sociais a informação circula existem inúmeros vídeos mostrando a prisão ilegal de Valéria Lúcia dos Santos, bem como a ação de concordância de vários advogados que esperavam sua vez de atuar na mesma vara que, em vez de se levantar contra a arbitrariedade cometida contra ela, davam razão à juíza leiga.

Aí é que eu digo,  como bem afirma o apresentador do vídeo, devemos nos perguntar se essa mesma situação ocorreria com uma advogada branca e loira? Eu não tenho dúvidas de afirmar que muito dificilmente. 

Agora me respondam: se fazem isso com uma profissional que desafiou a estrutura social e se levantou para atingir um espaço profissional que normalmente é destinado quase que exclusivamente aos brancos, o que dizer do tratamento que é dispensado nas vielas estreitas das comunidades mais pobres do Brasil? 

Recentemente um depoimento de um atleta negro estadunidense que dizia que seria necessário que mais pessoas brancas saíssem em defesa dos protestos contra a violência policial nos EUA para mostrar à sociedade que o problema atinge a todos. No nosso caso, me parece que um passo inicial é que os brancos comecem pelo menos (notem que eu disse “pelo menos”) a lembrar que somos o resultado de uma sociedade colonial que mais tempo exerceu, e aliás ainda continua exercendo, a escravidão humana para avançar os ganhos privados de uma minioria. Parece que não é muito, mas é o passo essencial para que este país comece realmente a se defrontar com seus fantasmas.

E deixo aqui expressa a minha admiração pela firmeza e profissionalismo que foram demonstrados por Valéria Lúcia dos Santos em sua provação no Fórum de Duque de Caxias.


[1] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/09/11/advogada-que-foi-presa-dentro-de-sala-de-audiencia-no-rj-notou-certo-desdem-de-juiza-leiga.ghtml

Socióloga da UENF é a sétima entrevistada da série “Os rumos de Campos dos Goytacazes: entre becos e saídas”

A socióloga Luciane Soares da Silva é professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) desde 2010 e, desde então, vem realizando diversos projetos que não ficam, como muitos críticos da universidade pública gostam de apontar, circunscritos aos muros da universidade.

Com base nessa disposição de unir pesquisa acadêmica qualiicada com compromisso com justiça social é que a professora Luciane Soares da Silva já é reconhecida em diversas arenas sociais por onde passa e atua como alguém que “entende do riscado”. De quebra, ela é chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e o Estado (LESCE) e também presidente da Associação de Docentes  da UENF (ADUENF).

Por isso ela foi convidada e aceitou ser a sétima entrevistada da série “Campos dos Goytacazes: entre becos e saídas”.  Os leitores do blog poderão conferir e refletir sobre o conjunto das respostas que certamente são tão contundentes quanto analiticamente robustas. 

Blog do Pedlowski (BP): Uma parte significativa da sua atividade acadêmica está relacionada ao estudo da violência, especialmente aquela que se abate diariamente sobre comunidades pobres que existem em nossa cidade. Em suas pesquisas, o que lhe pareceu mais relevante em termos das causas desta violência, bem como das possíveis saídas para que haja uma diminuição dos níveis que temos presenciado nos últimos anos.

Luciane Soares da Silva (LSS): Acredito que é importante explicar algo que sempre causa confusão na hora de pensar políticas públicas de segurança. Desde a década de 1990 quando a discussão de violência urbana ganhou centralidade nas cidades brasileiras, alguns pesquisadores, entre os quais me enquadro, investiram metodologicamente na separação entre violência e criminalidade urbana. E por quê? Se olharmos o tipo de crime que cresce nas grandes cidades nestas últimas décadas veremos dois quadros distintos: crimes contra o patrimônio e o tráfico de drogas com suas formas de organização local (PCC em São Paulo, facções no Rio, territorialidade em Campos). Além disto, a violência doméstica, por exemplo, assim como brigas entre vizinhos, são parte fundamental do cotidiano policial, mas ficam muitas vezes subnotificadas, pois dependem de negociações entre policiais e população. Dependem de certa “sensibilidade pública”. Diferente do roubo a carros, pessoas e do crescimento dos casos envolvendo tráfico de drogas. O que pode o município nestes casos? Creio que dentro dos limites de atuação, o município tem poder para: a) criar e fortalecer arenas públicas sobre temas como violência contra a mulher, racismo, formas de atuação democrática das instituições policiais. b) fortalecer políticas sociais que impactam indiretamente o incremento de casos de violência. Não me refiro aqui a relação (falaciosa) entre crime e pobreza. Esta relação em geral é equivocada. Quando me perguntam o que acho que crime em lugares como a Rocinha, devolvo: quanto moradores há na Rocinha? Mais de 100 mil. Qual a estatística de criminosos no local? Nem 10 %. O restante está nas padarias, farmácias, escolas, entregando pizzas, fazendo girar a economia local. Então este é o tipo de pergunta que criminaliza o território. Algo que os moradores de Guarus conhecem bem. Agora, se como gestor você retirar uma série de benefícios sociais, se você não oferece o mínimo de condições de transporte, renda e assistência, provavelmente é o próprio cenário urbano que se deteriora. O medo não está apenas na ocorrência real. O medo está no desvio de lugares que tornam-se abandonados, feitos, maltratados. Diminuem nossas possibilidades de encontro e favorecem a opção mais em voga na cidade: condomínios absurdamente fechados. Nos quais se pode fazer de tudo sem que o Estado entre. Como me disse um policial em pesquisa realizada dois anos atrás, “se tiver alguém traficando, ou uma mulher mantida em cárcere privado, como ficaremos sabendo? Trabalhamos com informação, com pessoas que nos ligam muitas vezes”. São praticamente ilhas privadas dentro da cidade, Esta é a caracterização de Campos. Uma cidade que opta pelos condomínios como forma de proteção. Mas se considerarmos as estatísticas, nem todos podem pagar por sua segurança em condomínios. E por esta razão, a Prefeitura deveria priorizar aqueles que estão menos protegidos.

Em recente evento no Trianon “Os Avanços da Segurança Pública com a Criação da Lei Federal 13.022/14 e os Desafios da sua Implementação”, o atual prefeito Rafael Diniz, defendeu a necessidade de atender as demandas da GCM de Campos. Curiosamente foi formado um “grupo de estudos” para implementação da lei. No entanto, não parece haver indicação de pesquisas ou pesquisadores externos ao Estado trabalhando para pensar estas políticas. E qual a gravidade disto para segurança pública municipal? Em primeiro lugar sem ouvir o que acontece nas áreas de periferia, não se pode avançar para construção de soluções conjuntas. Em segundo lugar, ao desperdiçar pesquisas realizadas (temos membros na Guarda, estudando de forma crítica, estas questões na própria UENF),ficamos a mercê de tecnocratas. Existem soluções de baixíssimo custo já implementadas em periferias como o Jardim Ângela em São Paulo. Por que não realizar uma grande plenária com a sociedade civil para pensar o município de Campos? Por que não ousamos sair dos cafés com a Câmara de Dirigentes Lojistas de Campos e vamos a Guarus, pensar as razões do aumento de criminalidade em Santa Rosa? Porque não realizar seminários que unam música e escola para abordar o tema que atinge em cheio jovens negros destes territórios? A escolha de um espaço como o Trianon nos diz muito sobre a orientação da atual Prefeitura, embora tenha sido eleita como símbolo de mudança.

(BP):  Após 1,5 ano de existência, como a senhora avalia o desempenho do governo comandado pelo prefeito Rafael Diniz em termos da entrega da sua principal promessa de campanha que era melhorar a eficiência da máquina pública do município de Campos dos Goytacazes?

(LSS):  Interessante esta pergunta. Eu tinha 12 anos quando pela primeira vez vi este mote do “novo”. O novo era o caçador de marajás, notório esportista, herdeiro da elite alagoana. Desde então tenho acompanhado o uso eleitoral desta idéia de renovação, mudança, aquele que vem para virar o jogo, o desafiante. Não havia nada de novo na eleição do então vereador Rafael Diniz. Era perceptível o esgotamento de um ciclo político, os candidatos não tinham o menor carisma e sua eleição decolou a despeito da qualidade do candidato. Talvez o mais impressionante e lamentável seja a qualidade de seu secretariado. E junto a isto, o apoio de parte importante de uma parte de população que de fato apostava no fim da política de compadrio. Mas aí reside uma contradição indissolúvel. O partido ao qual está filiado o prefeito, o PPS (Partido Popular Socialista, com uma enquete on line, para escolha de novo nome) participa neste momento, de um governo ilegítimo. Não seria de estranhar que aplicasse em Campos as mesmas diretrizes praticadas em nível federal e estadual: retirada de direitos e pouca transparência de gestão. A despeito da competência de secretários e equipe, ninguém pode avaliar este governo sem atribuir-lhe um adjetivo: desastroso.

(BP):  Ao longo desse período inicial do governo Rafael Diniz, temos ouvido e lido diversas declarações do prefeito e de alguns de seus principais secretários sugerindo que o município de Campos dos Goytacazes vive a maior crise econômica de sua história, e que eles têm nas mãos uma espécie de “herança maldita” deixada pela administração da prefeita Rosinha Garotinho. Em sua opinião, a tese da herança maldita explica o descompasso que estamos presenciando entre as promessas de campanha e as práticas de governo? Por favor, elabore.

(LSS):  Curioso que ele não soubesse desta herança enquanto vereador. Gostaria de pensar alguns exemplos sobre atuação da Prefeitura e esta crise: O fato de mais de 500 famílias não terem direito a receber cartas em suas casas, não depende de um centavo de verba. Mesmo assim, os moradores do conjunto habitacional Morar Feliz em Ururaí não têm este direito. E são eles que mais sofrem os efeitos da atual política da gestão Diniz. Sem emprego e com a passagem mais cara, alguns estão voltando para o trabalho nos canaviais. Talvez um bom retrato do retrocesso atual. Muitos não recebem correspondências, perdendo audiências, chamadas de emprego, intimações judiciais Os correios já informaram que o processo para que recebam cartas, depende da Prefeitura. O fato de não saberem se poderão ficar nas casas, ocupadas após a saída da prefeita, permanece sem solução com respostas burocráticas da Prefeitura. O custo do fechamento do restaurante popular se comparado a outros custos: onde está o debate público? Temos agora um grupo enorme nas imediações da Praça São Benedito em busca de alimentos. O valor da taxa de iluminação para trafegar na Avenida Alberto Lamego às escuras. Qual a explicação? E a cultura então? Precisamos de apenas uma parede e poucos recursos para um festival de cinema. Bibliotecas populares têm baixo custo e podem ser ótimas estratégias de organização da vida nos bairros. Precisamos de uma campanha que enfrente o racismo na cidade como crime. Racismo é crime, mas a campanha feita no município optou por usar o mote “racismo é ignorância”. O que em uma cidade com o IDEB de Campos e o número de pessoas com escolaridade precária é um equívoco monumental. Combater o racismo é um ponto fundamental para uma população de negros e mestiços e com o passado da cidade de Campos dos Goytacazes.

 São feitos muitos diagnósticos, muitas reuniões, congressos, cafés, e pouquíssimas ações de impacto. Mas acredito que esta é uma política de governo. Prestar contas ao futuro incerto. Também acho fundamental discutir a situação das escolas municipais. Como os estudantes conseguem suportar o preço da passagem? Como uma cidade tão rica conta com esta frota de ônibus? Por que a merenda escolar vem do Espírito Santo? Igualmente importante é olhar para as escolas do campo. Estas são questões que devem ser discutidas quando pensamos cidade e gestão. E isto não tem relação com custos, mas com decisões políticas.

(BP):  Como a senhora vê o processo de descontinuação das políticas sociais herdadas de administrações anteriores, e mais especificamente aquelas voltadas para assistir aquelas famílias que se encontram em condições de miséria absoluta? Até que ponto a interrupção dessas políticas serviu para melhorar a eficiência do uso de recursos públicos em Campos dos Goytacazes?

(LSS):  O cenário que tenho acompanhado é desolador. Não vi números que justificassem os cortes em políticas que garantiam o mínimo de dignidade para famílias pobres. Mas creio que nas respostas anteriores respondi a esta pergunta. É importante dizer que esta é uma escolha e não resultado de uma herança maldita ou da pior crise que Campos já viu. Creio que o jovem prefeito ao se deparar com o cargo real, seguiu uma cartilha já praticada por outros prefeitos eleitos recentemente: arrochar as condições de vida da população sem mexer em pilares que poderiam ao menos, mitigar o quadro de miserabilidade vivido e visto na Campos de 2018.

(BP):  Um dos grandes desafios que o município de Campos dos Goytacazes vem enfrentando desde a promulgação da chamada Lei do Petróleo é usar de forma efetiva os recursos bilionários aportados no tesouro municipal via o pagamento de royalties e participações especiais.  No tocante à atual administração, a senhora tem visto alguma mudança qualitativa no uso destes recursos em relação a outras administrações?

(LSS):  O que tenho visto é o discurso da falta articulado ao discurso de que todos os problemas atuais têm a mão dos Garotinho (o que é uma bravata que dá muito poder ao adversário). Faltam carros para guarda, falta gasolina para os fiscais, faltam trabalhadores para limpeza de áreas tomadas pelo mato, falta dinheiro para as secretarias de “menor importância”. Faltam professores. Por isto, efetivamente, creio que esta se tornou a principal política Diniz. A política da falta. Enquanto esta nuvem paira sobre a cidade, sequer conseguimos discutir receita, arrecadação, soluções. É como se ainda não tivesse iniciado o mandato e fosse tomado por perplexidade. No varejo, os mais corajosos seguem tentando fazer a máquina funcionar. Mas como vamos produzir uma política eficaz de assistência as mulheres sem recursos? Com toda admiração ao trabalho daqueles que “tentam fazer algo” me parece que sai muito barato para gestão Diniz fazer uso de profissionais qualificados, vindos das Universidades, e não dotá-los de orçamento para que a política funcione como deveria. E a má fé desta gestão pode ser exemplificada com o projeto “Viva Ciência”: 30 bolsas no valor de R$ 400 reais por um ano para projeto em desenvolvimento, inovação em tecnologia. É praticamente um escárnio com uma cidade que tem mais de 20 mil estudantes em Universidades, produzindo pesquisa. Seria mais válido ter liberado o passe para todos os estudantes, seria uma política mais honesta. È interessante ver que os servidores municipais não parecem nada satisfeitos com o prefeito. Salários atrasados. Ou seja, o básico não é cumprido.

(BP):  Tenho notado um grande desapontamento em muitos cidadãos que optaram por votar no prefeito Rafael Diniz e na sua promessa de mudança. Em sua opinião, existe mesmo esse desapontamento? E se sim, este desapontamento é justo ou vivemos uma situação de cobrança exagerada sobre um governo que nem chegou à metade da sua duração?

(LSS):  Converso com taxistas, professores, atendentes de padaria, mulheres desempregadas, estudantes. Ainda não encontrei entusiastas desta gestão. E a cada mês o desapontamento se agrava. A figura dos Garotinho já não serve como avatar de justificativa, torna-se visível que a crise não pode seguir como explicação para todos os problemas do município. Creio que não haverá mais nenhum pico de mudança se considerarmos que o primeiro ano geralmente é aquele em que o gestor tem a opinião pública ao seu lado e pode calar os opositores alegando início de governo. Este tempo já passou. Enfim, vemos no Rio de Janeiro, capital, que o resultado do descontentamento com o prefeito Marcelo Crivella tem levantado uma onda considerável de expressões populares contra seu mandato. Estes perfis, Crivella e Diniz, uma vez eleitos colocam em curso, medidas muito impopulares. Não seria de estranhar que a decepção alcançasse estes níveis em Campos. Mas creio que a decepção política aqui é uma constante na fala da população. Ela talvez se intensifique pela promessa de mudança feita por Rafael Diniz como carro chefe de sua campanha. Tenho curiosidade em acompanhar como será sua vida política pós-prefeitura e que grupo ocupará este lugar.

(BP):  Em sua opinião, quais têm sido até aqui os principais defeitos e qualidades do governo Rafael Diniz?

(LSS):  Acredito que sua gestão segue uma cartilha impopular ao cortar benefícios fundamentais para populações mais vulneráveis. É pouco criativa e pouco transparente. E estranhamente, a maior qualidade, que é o seu secretariado (qualificado), acaba anulada pelo conjunto da obra, portanto, soma zero. Uma demonstração dos erros de visão desta gestão: em uma reunião entre o superintendente de Trabalho e Renda e a ACIC (Associação Comercial e Industrial de Campos), foi feita uma declaração de que a qualificação da mão de obra para o comércio seria fundamental para enfrentar a crise. Creio que é uma avaliação totalmente equivocada no caso de Campos; Quando cheguei a Uenf em 2010, iniciei uma pesquisa sobre qualificação. Fomos a casas de show, restaurantes, hotéis, entrevistamos jovens, proprietários, empregadores. O problema era muito mais grave, mas muito mais grave do que ensinar alguém a fazer um café expresso ou atender a portaria de um hotel. Era um problema que remetia a escola básica, a como ver o mundo, a como se comportar em um espaço de trabalho formal. Em suma, era superar um atraso educacional de décadas para ajustar este trabalhador na modernidade capitalista que a quimera do Porto de Eike Batista exigia. Mas nenhum empregador queria pagar mais por este profissional. As relações trabalhistas em Campos se demonstraram muito abusivas para o empregado. E não há convênio entre Prefeitura e ACIC que possa alterar isto nesta ou na próxima gestão, porque é uma questão estrutural que não será modificada em 4 semanas de curso. E se o mercado não se expande, a moeda não circula, a qualificação serve para quê? È como em um mercado em recessão vender a idéia de aquisição do diploma universitário como saída para o desemprego. Mote utilizado por boa parte das Universidades Privadas. Mas o que precisamos é de instituições públicas sólidas e concurso público municipal.

(BP):  O nosso município vive um momento muito delicado da sua história com altos níveis de desemprego e violência. Em sua opinião, quais passos deveriam ser adotados pelo prefeito Rafael Diniz para que possamos iniciar o processo de superação desse momento?

(LSS):  Abrir as contas desta gestão, retomar os projetos descontinuados, abrir diálogos mais conseqüentes com as instituições de pesquisas (não apenas para fotos oficiais), investir no servidor. Investir em campanhas de saúde preventiva (pois têm baixo custo), criar formas de transporte alternativo para estudantes e idosos. Descentralizar ações de cultura usando as praças dos bairros como palco (há um curso de teatro no IFF que possivelmente poderia ser um parceiro de projetos), investir no combate ao racismo com campanhas nas escolas (assim como discussão de gênero). Fomentar projetos de renda para além de cursos de padaria, fazendo, por exemplo, cursos de programação de computadores (nem todos os moradores de áreas periféricas têm como projeto de vida trabalhar em uma padaria ou fazer um curso de torneiro mecânico, eles podem ir bem, além disto). Investir na agricultura familiar e escoar a produção em feiras de orgânicos. Enfim, creio que são algumas das possibilidades possíveis em um período de crise.