Por Luciane Soares da Silva*
Tenho estudado as situações de violência no Rio desde 2005. E gostaria de ofertar uma contribuição para pensar os desdobramentos atuais em dois casos de racismo (um deles de racismo e xenofobia): o caso de Moïse e o caso do sargento que atirou em seu vizinho. No primeiro caso, temos o linchamento de um refugiado político vivendo desde 2011 no Brasil. Morto pela ação brutal de 3 homens. Morto por exigir o pagamento pelo trabalho realizado. No segundo caso, Durval, homem negro de 38 anos, igualmente um trabalhador, foi confundido por seu vizinho, Aurélio, sargento da Marinha. E baleado dentro do próprio condomínio. Acredito que não precisamos recuperar o número de vezes em que um homem negro foi confundido pela polícia. Policiais já confundiram furadeiras, sombrinhas e até moedas de um real com armas. Já alvejaram pessoas inocentes neste estranho hábito de confundi-las com outras. Sempre o mesmo grupo é confundido: os negros.
Estes dois casos têm além do racismo outro ponto em comum: geram comoção social e ganham as redes e a grande mídia. Produzem pressão sobre o Estado. Voltando a 1992, o Jornal Nacional repetiu ad nauseum cenas de uma confusão em Ipanema, classificada como arrastão pela mídia. A Polícia Militar ofereceu outra explicação. Pesquisadores da área também. Mas desde então, não importa. A categoria funkeiro tem sido o motor de manchetes que associam bailes a tráfico. E portanto, chacinas praticadas nestes locais recebem o aval da sociedade. Foi o caso da chacina da Providência, mortes no Turano e recentemente Paraisópolis em São Paulo. Estar em um baile funk libera a sociedade civil para apoiar o extermínio da juventude trabalhadora de periferia.
O caso Tim Lopes é um marco fundamental para compreender a relação entre mídia, cidade e favelas. O jornalista da rede Globo, premiado e reconhecido por suas matérias investigativas, estava disfarçado na Vila Cruzeiro e foi torturado e morto por ordem de Elias Maluco. Tim faria uma reportagem sobre denúncias envolvendo menores e uso de drogas em bailes. A favela está para a cidade do Rio de Janeiro como uma fonte inesgotável de crime, vícios, desordens e todo tipo de aberração. As manchetes colaboram para banalização de decapitações, corpos carbonizados, furados a balas, mutilados. Impossível que qualquer morador do Rio nunca tenha se deparado com a cena de 10 ou mais pessoas em frente a uma banca de jornal debatendo uma manchete do Povo com um cidadão sem cabeça ou sem as mãos. A questão envolvendo Tim Lopes foi uma ruptura definitiva com tempos menos violentos. A imagem de um homem andando com uma espada, as notícias de incremento cada vez maior das armas, tudo isto mostrava que o Rio entrava em uma nova era. A era da intensificação das mortes por atacado e das execuções bárbaras.
Em 2014, DG, dançarino do programa “Esquenta” apresentado por Regina Cassé, foi morto por uma ação policial no Pavão Pavãozinho. Em julho de 2013, o pedreiro Amarildo sumiu em uma unidade de polícia pacificadora. Sob comando do Major Edson, foi torturado e sua família jamais obteve o corpo. Não se sabe onde está Amarildo. Marcus Vinícius de 14 anos foi atingido em um incursão policial na Maré em 2018. Usava camiseta da escola. Em maio de 2020, João Pedro e outras quatro crianças perderam a vida durante ação da Polícia Militar. Estes são casos que ganharam notoriedade. Tantos outros não tiveram o mesmo desfecho.
Por outro lado, os casos de linchamento a castigos físicos públicos se tornaram mais comuns nos últimos. Basta lembrarmos do caso de um jovem negro amarrado a um poste, nu, no Flamengo em 2014.
Todos estes casos têm elementos em comum. O fato de gerarem comoção pública é o primeiro. É importante dizer isto porque o número de mortes e violações que não ganham espaço na mídia é bastante expressivo. Recentemente este fato foi debatido na comparação do caso Henry com o caso do 3 meninos de Belford Roxo desaparecidos em dezembro de 2020. Ou seja, a mídia seleciona e dá maior visibilidade para certos casos. Dito isto, vamos ao segundo elemento importante: a mobilização da sociedade civil por justiça. Situações de violência nas favelas são cotidianas, a exigência de justiça pelos mortos e desaparecidos estão presentes na base de movimentos contra a violação dos direitos humanos.
Lamentavelmente a resposta do Estado é limitada. Famílias sem apoio psicológico em seu pós trauma, falta de resolução nas investigações e sobretudo falta de punição são uma constante neste sistema. A exoneração de secretários, a criação de programas como as Unidades de Polícia Pacificadora, o café da manhã na Providência com uma mãe que encontrou seu filho mutilado, em tudo isto funciona a mesma lógica cosmética de uma segurança pública que não pode (porque não quer poder) atacar problemas como eles devem ser atacados.
Em julho de 2013, vi um policial subindo a Rocinha com um tubo de conexão para improvisar um banheiro. Compreendi o que tinha ouvido alguns dias antes: a UPP dependia da crença em sua existência para que funcionasse como política. Não havia efetivo suficiente e nem recursos. Jogar um policial de 18 anos com formação de seis meses em uma favela de 100 mil habitantes? Descobrimos com o sumiço de Amarildo como as práticas da Ditadura seguem vivas dentro destas instituições.
Segundo um dos relatos sobre o caso Moïse, a Guarda foi chamada mas preferiu não se envolver. Talvez porque soubesse quem era o dono do quiosque. Nestas relações de dominação territorial não há a menor possibilidade de cidadania efetiva. O homem comum, trabalhador, será tratado como estabelecido no Código do Império: coisa. Ou seja, em minha avaliação há um acordo muito tácito em funcionamento entre aqueles que espancam um ser humano até a morte, aqueles que deveriam prover segurança e aqueles que rifam o território por terem as credenciais para isto. Não há espaço para a universalização de direitos. Nossa cordialidade nos obrigada a saber sempre com quem estamos falando.
As manifestações de indignação e luto deverão dar lugar a ações sem trégua dos movimentos sociais e da sociedade civil pela ampliação do debate sobre as instituições de controle. As oficiais e sobretudo, as extra-oficiais.
Entregar dois quiosques para que virem um memorial em homenagem a cultura congolesa e africana, segue a mesma lógica cosmética e diversionista descrita acima. É a lógica da UPP social, é a lógica de renomear as ruas com o nome dos mortos pela polícia. É a lógica do faz de conta. O Estado conta com nosso esquecimento. O Estado conta com nosso medo. E com a mídia em seu trabalho eterno de morder e assoprar. Mantendo altos seus índices de audiência.
É o Fado Tropical de Chico Buarque, que me faz pensar em um torturador sentimental. De tudo isto que trago o verso :
“Oh, musa do meu fado, Oh, minha mãe gentil, Deixo-te consternado,
No primeiro Abril, Não seja tão ingrata, não esqueças quem te amou,
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.
*Luciane Soares da Silva é é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce), e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).
Como sempre, uma visão rasa do assunto, que poderia ser resumida se as idiossincrasias fossem deixadas de lado.
Vamos lá:
– Não compreender (ou menosprezar) a lógica do Estado capitalista, que reduz e amplia significados ancestrais e a ele (capitalismo) anteriores, como racismo, machismo, escravidão, homofobia, intolerância religiosa, desconectando a relação de causa e efeito que mantêm entre si é um assombro, ainda mais para quem reivindica algum saber acadêmico acerca do assunto.
Vou destacar o trecho do texto que, ao meu ver, explicita a pobreza argumentativa:
“(…)Ou seja, em minha avaliação há um acordo muito tácito em funcionamento entre aqueles que espancam um ser humano até a morte, aqueles que deveriam prover segurança e aqueles que rifam o território por terem as credenciais para isto. Não há espaço para a universalização de direitos. Nossa cordialidade nos obrigada a saber sempre com quem estamos falando.(…)”
Ou seja, quando a moça remete a um acordo tácito (e de fato, existem tais acordos, o que chamados de normalização ou normatização), sem prover a sua origem: o funcionamento precário da atividade capitalista periférica em países periféricos, e a resultante apropriação do funcionamento do Estado, de seus processos normativos (legislativos) e judiciais (policiais), que geram “acordos informais”, mas intensamente (violentamente) legitimados, ela cai direto na outra armadilha da ideologia capitalista:
– A universalização dos direitos!
É o papai noel sociológico, a fada do dente ou o pote de ouro do Leprechaun das ciências humanas.
Pretender estruturar este debate, tendo como referência (ou objetivo) a chamada “universalização de direitos” no universo capitalista é de doer…
Dá vontade de rir (de nervoso).
Capitalismo só universaliza exploração, desigualdade, exclusão, racismos, machismos, etc…
Outra coisa que me chama atenção é o crasso erro na conceituação de “cordialidade” (que vem ou que passa pelo coração, do radical coeur).
Buarque de Hollanda já explicou que esta concepção de “cordialidade”, vulgarizada a partir do que ele escreveu, e que é descrita como uma resiliência “afetiva” que não se insubordina com possíveis injustiças, como aqui no caso usado pela moça, também descrito como o sentimento que impede que aceitemos o autoritarismo destas relações injustas, ESTÁ COMPLETAMENTE EQUIVOCADA!!!!
Hollanda chamada de cordialidade nossa estratégia de improvisar e afastar um formalismo que engessaria relações sociais que, em outros países centrais, guardam aspectos institucionais rígidos, mas que aqui, dada a precariedade da vida em geral, não conseguiriam cumprir seu objeto primeiro que é normatizar a vivência coletiva.
Hollanda descreveu o “jeitinho” mas os idiotas deram a esta descrição um viés pernicioso, moral, como se ao pobre da periferia do mundo este “jeito” não fosse uma imposição de sobrevivência, e sim falta de caráter…
Então, não é nossa “cordialidade” que nos obriga a saber com quem estamos falando, é nossa inteligência, porque distinguir isso pode ser a diferença entre estar vivo ou morto…
O Moïse, de certa forma, foi morto porque achava que estivesse falando (quando entrou e tentou apanhar bebidas no freezer) com gente “igual a ele”.
De certa forma eram, mas estavam imbuídas do papel de defesa do território do patrão, só isso, e não foi pouco…
Todo o resto é elucubração sociológica para semovente adormecer.
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