Reforma agrária continua parada após 2 meses de governo Lula, impedindo avanço no combate à fome

Orçamento de 2023 prevê apenas R$ 2,4 milhões para aquisição de terras e criação de novos assentamentos, dificultando cumprimento de promessa de reverter retrocessos do governo Bolsonaro; no Incra ainda falta indicar os gestores estaduais

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Por Daniela Penha e Diego Junqueira para a Repórter Brasil

Duas trouxas de roupas. Foi o que sobrou para Aziel Souza dos Santos, a esposa e os quatro filhos pequenos recomeçarem a vida após terem sido expulsos do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA) em 2018. As 250 famílias que viviam ali aguardam desde então por um pedaço de terra para trabalhar, e esperavam notícias melhores com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder. Mas apesar de o novo governo apostar na reforma agrária para combater a fome, pouco mudou em 60 dias de gestão.

Em 2018, cerca de 250 famílias foram expulsas do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA), e desde então aguardam solução (Foto: Divulgação/Assessoria de Comunicação da CPT Nacional)

A demora para definir o novo presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), anunciado apenas nesta semana, é apontada por movimentos de trabalhadores do campo como um dos motivos para o atraso na retomada da reforma agrária. No entanto, o baixo orçamento deixado pelo governo de Jair Bolsonaro para este ano, o pouco crédito para a produção e o desmonte das políticas de desapropriação e distribuição de terras são vistos como desafios. Reverter esse cenário é considerado urgente pelos movimentos ouvidos pela Repórter Brasil, mas o plano continua engavetado.

“A gente achava que iria começar a toda velocidade, porque já são seis anos de desgoverno”, lamenta o sociólogo Givanilson Porfírio da Silva, assessor da presidência da Contag (Confederação Nacional do Trabalhadores na Agricultura), que fez parte do grupo de desenvolvimento agrário na equipe de transição. “Ainda é o governo Bolsonaro nas superintendências [estaduais] do Incra. Se isso não mudar, nada adianta, porque são as equipes locais que executam as políticas”.

Durante o governo Bolsonaro, a vida dos camponeses ficou “suspensa” devido à paralisação de todos os processos de aquisição, vistoria, regularização e distribuição de terras, medida determinada na primeira semana de seu mandato, em 2019. Atualmente há 360 processos de criação de assentamentos congelados, de acordo com o Incra. Enquanto isso, 90 mil famílias vivem acampadas pelo país, segundo o MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

O governo Lula ainda não detalhou o plano de reforma agrária, mas o relatório da equipe de transição aponta alguns caminhos: voltar a reassentar trabalhadores, ampliar a concessão de crédito para o plantio, reforçar a assistência técnica e revisar o cadastramento das famílias.

Além disso, a reforma vai se articular com outros programas que também devem ser reforçados, como o de produção de alimentos saudáveis, redução de agrotóxicos e compras públicas de alimentos. O Programa de Aquisição de Alimentos, por exemplo, chegou a ter orçamento de R$ 1 bilhão em 2014, mas recuou para 2,6 milhões em 2023. A gestão é do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar. Com Lula, a pasta passou a comandar a Companhia Nacional de Abastecimento, que também sofreu cortes importantes no governo Bolsonaro e estava sob guarda-chuva do Ministério da Agricultura.

Essas políticas são necessárias para combater a fome, segundo o governo, pois a agricultura familiar é a principal responsável pelos alimentos que chegam à mesa da população. Por isso, o objetivo é ampliar a área plantada de culturas alimentares como arroz, feijão e mandioca, já que o governo avalia que nos últimos anos as políticas públicas priorizaram os plantios de soja, milho e café e a bovinocultura, em razão dos preços favoráveis no mercado internacional.

Além de distribuir terra, a reforma agrária precisa vir acompanhada de políticas públicas para que os agricultores familiares não desistam de produzir (Foto: Gustavo Marinho/MST)

“É necessário combater o agronegócio como forma de produção de alimentos, porque isso está adoecendo o país”, afirma Pablo Neri, que integra a coordenação nacional do MST. “É pelo combate à fome que vamos ter que reformular a reforma agrária no Brasil”, concorda Ademir de Lucas, especialista em extensão rural e organização de produtores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP).

Reconstrução

Qualquer política a ser implantada, entretanto, vai esbarrar na falta de recursos. Em 2011, o programa de aquisição de terras para a criação de novos assentamentos tinha R$ 930 milhões em caixa, cifra que caiu gradualmente até sofrer um corte abrupto em 2017, com Michel Temer, quando chegou a R$ 41 milhões. O orçamento de 2023, elaborado pelo governo Bolsonaro e aprovado no Congresso no ano passado, destina irrisórios R$ 2,4 milhões. “Isso não dá para comprar nem um apartamento em Brasília, imagina uma propriedade rural”, critica Silva, da Contag.

Para driblar a falta de orçamento, um dos primeiros passos é levantar e organizar informações. Hoje, segundo o Incra, os processos de aquisição de terras para criar novos assentamentos não estão informatizados, o que dificulta o planejamento e o controle da reforma agrária.

Além disso, faltam dados até sobre as terras públicas – que pertencem ao próprio governo e, por isso, poderiam ser distribuídas sem a necessidade de adquirir áreas privadas. “O governo não tem uma dimensão do que é terra pública e do que pode ser destinado para reforma agrária”, salienta Isolete Wichinieski, que integra a coordenação nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra).

Após identificar as terras disponíveis, a segunda etapa seria estudar o histórico dos acampamentos que aguardam regularização para selecionar os casos mais sensíveis. Para Wichinieski, é urgente pensar na Amazônia Legal. “É um dos territórios com mais conflitos e, do ponto de vista de terras públicas, é o que mais tem”, diz.

Outro desafio é recuperar o espírito original da reforma agrária, pois o governo Bolsonaro substituiu o programa por uma política de concessão de títulos provisórios para quem já era assentado. Os títulos de domínio dão a propriedade da terra para o assentado, ao contrário do que ocorre na concessão de direito de uso, em que a área do assentamento permanece coletiva e não pode ser comercializada. Ao titularizar a terra, o governo se exime da responsabilidade de promover políticas públicas no local e, na prática, também insere essas terras no mercado.

Sem incentivo, os pequenos produtores acabam vendendo as áreas que conquistaram para grandes fazendeiros, o que pode agravar ainda mais os conflitos no campo e a concentração de terras.

A agricultura familiar é a principal responsável pela produção de alimentos no país, e incentivá-la é essencial no combate à fome (Foto: Divulgação/MST)

Espera amarga

A expulsão da família de Aziel do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA), causa traumas até hoje. Em uma madrugada de julho de 2018, pistoleiros chegaram atirando, ameaçando moradores e ateando fogo em tudo o que encontraram. Um dos alvos era a esposa de Aziel.

“A gente fala que foi livramento. Ela conseguiu fugir. Eles ameaçaram nossa filha, uma criança. Diziam que iriam jogar a menina no carro pegando fogo. Um companheiro conseguiu tirar ela de lá”, ele relembra o terror.

O Incra informou que já tentou a compra da fazenda onde está o acampamento, mas não houve acordo com o proprietário. As famílias continuam aguardando, alojadas em outro acampamento há quase cinco anos.

A espera e a violência alimentam o medo, que eles driblam para seguir. “A gente não pode deixar que esse medo nos impeça de lutar pela nossa família e pelas outras. A luta pela terra é árdua”, diz.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil


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Este texto foi originalmente publicado pela Repórter Brasil [Aqui!].

Conflitos no campo: Afinal, de quem é a terra?

Dados parciais já indicam aumento no número de assassinato de lideranças

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Não é de hoje que lideranças são ameaçadas por conta dos conflitos existentes no campo. Muitas foram até mesmo assassinadas por não se subordinarem ao “deus” dinheiro.

No Brasil, essa problemática se estende desde o período colonial com o início da distribuição de terras no país. Depois de mais de quinhentos anos tais conflitos têm se intensificado e preocupado órgãos e instituições que acompanham a realidade de lideranças e comunidades. Os que detém a maior quantidade são chamados de latifundiários que fazem uso da terra para o agronegócio e a pecuária, tomando por vezes a força terras pertencentes a indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e ribeirinhos.

Tal realidade está presente em todas as regiões do país. Contudo, algumas pedem uma atenção redobrada. Na região amazônica, por exemplo, três estados vêm apresentando números assustadores.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) o estado do Pará apresenta índices alarmantes de violência no campo. Já no Maranhão a violência é direcionada aos povos indígenas e comunidades tradicionais e, em Rondônia, o agronegócio tem sido o motivo de muitos conflitos.

Andréia Silvério, coordenadora nacional da CPT, reforça a importância da comissão e de que forma é feito o acompanhamento dos casos e violações. “É importante a gente pontuar que a CPT foi criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ainda na década de setenta justamente em razão do acirramento dos conflitos no campo. […] E ao longo dos anos também a gente teve uma ampliação do trabalho da CPT não só acompanhar casos de conflitos que são decorrentes de processo de luta pela terra como é o caso dos posseiros, dos trabalhadores rurais sem terras, mas a CPT também tem um acompanhamento muito presente, muito marcante junto aos povos e comunidades tradicionais. […]Essa também é uma característica muito forte do trabalho da CPT, sobretudo na Amazônia,” pontuou Andreia Silvério.

Quais os principais motivos desses conflitos? A quem pertence essa terra?  

Muitos são os fatores que direcionam para essa situação. Primeiro ponto: a ausência da justa distribuição de terras no Brasil, agora então, dá-se preferência ao agronegócio. Segundo: impunidade, pois muitos casos de violência direta, ameaças e assassinatos no campo apresentam uma falha no sistema de justiça no momento da investigação e punição. Em algumas situações os inquéritos nem sequer chegam a ser concluídos o que dificulta ainda mais a solução da problemática, abrindo assim, brecha para o surgimento de novos casos.

No Maranhão, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também tem feito o acompanhamento de violações contra os povos indígenas.  Hemerson Pereira destaca que as iniciativas são feitas in loco, com escuta, assessoria jurídica, intercâmbio e articulação entre os povos indígenas.

“Estamos na luta nos territórios, presente com eles nas aldeias, vivenciando com eles os problemas, discutindo, fazendo formação política, contribuindo com intercâmbios para fortalecer a união e articulação entre os povos indígenas do estado para encontrar alternativas e fazer luta diante desses conflitos. [..] Nosso objetivo é contribuir na formação política dos povos, com nossa assessoria jurídica também e na busca de reivindicação constitucionais dos povos indígenas, afirmou”

Garimpo ilegal, mineração, exploração de madeira, invasão por parte de grileiros, fazendeiros, empresas do agronegócio, agências do próprio estado e violação dos direitos constitucionais dos povos indígenas e das políticas públicas são as principais causas desses conflitos.

Hemerson pontuou ainda que todos os territórios indígenas do Maranhão estão em constante processo de conflitos, sejam eles demarcados ou não.

“Os territórios estão em conflito sofrendo de causas comuns: De invasão do agronegócio, de ameaça de pistoleiros, por parte de atropelamentos, por parte de invasão de garimpeiros, fazendeiros então são conflitos comuns que perpassam todos os territórios indígenas do estado”, reforçou Hemerson.

Vidas ameaçadas!

Sair e não saber se vai chegar viva, temor em ver a família ameaçada, intimidações, não poder nem se quer decidir sobre a própria vida são apenas algumas das objeções de quem vive em constante ameaça nos territórios amazônicos.

Em entrevista a nossa reportagem, Osvalinda Pereira, liderança do Projeto de Assentamento Areia, no município de Trairão (PA), relatou sobre como é viver ameaçada 24h por dia.

“Viver num lugar, um território com tantas ameaças não é fácil. Eu digo que não é fácil, não é fácil pra ninguém. É você não ter vontade própria. A gente tem que fazer o que os outros mandam, o que a equipe e a polícia manda fazer. A pressão é diariamente. A gente não dorme de noite, e sempre na preocupação se a gente vai sair e vai acontecer alguma coisa. [..] A pior parte da vida do ameaçado é conviver com ameaçador e sem poder fazer nada. É como se tivesse numa colmeia e viesse o predador. Não tem pra onde correr. Porque só tem uma saída. É assim que a gente se sente sem saída, e sem resposta do governo”, concluiu Osvalinda.

Muitos são os desafios das comunidades e lideranças diante de atentados, ameaças e intimidações nas mais diversas regiões, em especial, na Amazônia.

Nos últimos quatro anos o Brasil passou por uma grande reviravolta constitucional, social e política. Tal mudança agravou ainda mais os embates já existentes. A parte ambiental foi uma das mais afetadas.

Que ações poderiam diminuir esses índices de ameaças, bem como, assassinatos no campo?

Andréia Silvério afirmou que a garantia de direito das comunidades seria um passo fundamental nesse processo. “A garantia de direitos não só para permanência nesses territórios que já foram estados, mas também avançar para conquista de novas áreas, que sejam destinadas para a reforma agrária, comunidades tradicionais, povos originários e também que seja assegurada a inversão dessa lógica produtiva que é única e simplesmente no incentivo à produção de commodities, mas que o Brasil saiba também priorizar, incentivar a produção de alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos, né? Especialmente destinados para aquelas famílias que estão em maior vulnerabilidade. […] Necessidade de monitoramento com relação a atuação de outros poderes da república. [..]Uma atuação do sistema de justiça para garantir uma investigação que seja isenta, imparcial e também para garantir que haja julgamento de todas as pessoas que estão envolvidas nesses casos de crimes no campo. E aí a gente está falando de assassinato mas não só de assassinatos, né? De toda e qualquer forma de violência e de violação de direitos humanos que são praticadas contra esses sujeitos sociais, finalizou Andréia.

Em outubro passado, o relatório parcial da CPT já indicava um aumento nos casos de violência no campo, sobretudo, no número de assassinatos de lideranças. Já em abril deste ano deve ser lançado pela Comissão Pastoral da Terra o Caderno de Conflitos no Campo referente ao período de 2022. Vale ressaltar, que os dados publicados estão em constante atualização.

Frear o quanto antes esses conflitos no campo também será um dos grandes desafios para o novo governo federal, principalmente, nos estados da região amazônica.

A eleição de Marina do MST lança a oportunidade de que afinal se faça justiça para Cícero Guedes

Conheci a agora deputada estadual “Marina do MST” assim que cheguei em Campos dos Goytacazes em 1998 quando ela era uma liderança ascendente dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que recém havia chegado ao município para empreender um arrojado esforço em prol da reforma agrária em terras pertencentes aos donos das usinas de cana de açúcar que haviam entrado em processo falimentar, deixando para trás dívidas milionárias com seus trabalhadores e com o tesouro nacional.

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Vê-la agora eleita com impressionantes 46 mil votos é testemunhar a chegada ao parlamento de uma ativista política que amadureceu ao longo do tempo para se transformar em uma personagem com potencial de ter forte impacto na política fluminense, mesmo porque ela investiu na sua capacitação intelectual ao longo dos anos, sem que tenha abandonado seus compromissos com a luta em prol da reforma agrária no Brasil.

Se a eleição de Marina dos Santos é razão para celebração em um estado em que figuras completamente alheias à necessidade do povo trabalhador. Mas essa eleição e a chegada de Marina na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) também oferece oportunidade para que, finalmente, haja algum tipo de justiça para o líder do MST do Norte Fluminense, Cícero Guedes, que foi covardemente assassinado em janeiro de 2013.

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Cícero Guedes, líder do MST assassinado pelas costas em 2013 quando organizada a luta pela desapropriação das terras da falida Usina Cambahyba

Há que se lembrar que o assassinato de Cícero Guedes mereceu apenas um simulacro de julgamento apenas em novembro de 2019, quando o indíviduo identificado pela Polícia Civil como sendo o mandante foi rapidamente inocentado por um juri composto em sua maioria por estudantes da Faculdade de Direito de Campos.

Estou entre aqueles que acreditam que Cícero Guedes faz por merecer um tratamento mais respeitoso do que aquele que lhe tem sido dispensado até hoje, especialmente por parte do judiciário.  Além disso, a impunidade dos responsáveis pela morte de Cícero serve como incentivo para que outras lideranças sejam igualmente eliminadas, apenas para dificultar a organização dos trabalhadores rurais que precisam de terras para cultivar e garantir a sobrevivência de suas famílias.

Assim, espero que após instalada na Alerj, agora como deputada estadual, Marina dos Santos aja para garantir que a morte de Cícero Guedes deixar de ficar impune.  Esta seria a única forma de se manter o legado de um líder político que tombou em nome dos seus ideais que eram, acima de tudo, coletivos.

Cícero Guedes vive!

Questões ambiental e agrária, as grandes ausentes do debate eleitoral de 2022

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Algum distraído que olhar para o simulacre de debate eleitoral que está ocorrendo na campanha presidencial (e também nas estaduais) irá pensar que o Brasil e seus entes federativos já resolveram algumas questões dramáticas, permitindo assim que os candidatos se concentrem em pontos que apesar de importantes passam ao largo de problemas centrais. 

Exemplos disso são as questões ambiental e agrária que estão sendo flagrantemente omitidas pelos principais candidatos que preferem concentrar suas atenções em pautas que, apesar de importantes, não deveriam servir de desculpa para que os brasileiros sejam informados sobre o que eles têm como proposta para solução.

O problema é que essas duas questões caminham juntas no Brasil e servem para agravar a situação vivida pela maioria de brasileiros que hoje vivem alijados das condições mínimas de existência.  O domínio da lógica das grandes propriedades rurais e da dependência da exportação de commodities agrícolas e minerais vem consumindo amplas áreas de florestas e servindo para aumentar o padrão de concentração da terra, tanto rural como urbana, o que contribui não apenas para aumentar a acumulação de riqueza existente, mas também para desalojar populações tradicionais e povos indígenas de suas territórios. 

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Um dos exemplos mais óbvios de ajuste dos candidatos à dominância política do latifúndio agro-exportador ocorreu no debate presidencial realizao pela Band TV onde pressionado a se manifestar sobre um suposto radicalismo anti-agronegócio do MST, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva preferiu enaltercer uma suposta guinada do mais importante movimento social brasileiro, em vez de aludir, por exemplo, ao congelamento da reforma agrária pelo governo Bolsonaro.

Entretanto, há algo igualmente grave acontecendo na Amazônia e no Cerrado que é um avanço exponencial da mancha de desflorestamento que está colocando em risco, entre outras coisas, o abastecimento futuro de água em áreas consideráveis do território nacional. Mas não há nada que se aproxime de um debate mínimo sobre essa situação.  A explicação para isso é que a maioria dos candidatos, o ex-presidente Lula incluído, são dependentes da bancada ruralista que, em função disso, impõe uma espécie de silêncio sepulcral sobre os crimes e violações que estão acompanhando o avanço do latifúndio agro-exportador sobre regiões ainda intocadas da Amazônia e do Cerrado,

O resultado dessa indisposição para debater essas questões centrais é que qualquer que seja o futuro presidente a dificuldade em desenvolver políticas públicas para resolver as questões aqui abordadas irá permanecer e provavelmente os problemas irão se agravar.

A fábula do “agronegócio” como salvador da pátria esconde a necessidade de uma ampla reforma agrária de base ecológica no Brasil

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Ao contrário dos que propagam a fábula do agronegócio, a produção de alimentos ocorre é na agricultura familiar

No ano passado comentei aqui o término da minha leitura do livro de Caio Pompeia, publicado pela editora Elefante, intitulado “Formação política do agronegócio” cujo principal mérito é mostrar que o agronegócio é algo que foi formulado na década de 1950 na Universidade de Harvard, mas que só foi tardiamente adotado no Brasil no início da década de 1990 a partir de esforços realizados por uma espécie de parceira público-privada envolvendo o Instituto de Estudos Avançados da USP.

Desta forma, o conceito de agronegócio é nascido nos EUA e apenas está em uso no Brasil por força de uma ação diligente para esconder a face mais retrógrada do padrão de concentração da terra que foi formalizado no Brasil a partir da promulgação da chamada de Lei de Terras em 1855. 

De cara o que o conceito de agronegócio se presta a esconder os aspectos mais danosos não apenas da alta concentração de terras, mas também aqueles que acompanharam a chamada Modernização Conservadora que foi executada pelo regime militar de 1964 para impedir a realização de uma ampla reforma agrária no Brasil.

Mas voltando ao conceito de agronegócio como formulado pelo economista John H. Davis, agronegócio significaria a “soma de todas as operações da fazenda, mais a manufatura e a distribuição de produção agrícola providos pelos negócios, mais o total das operações realizadas em conexão com a manipulação, a estocagem, o processamento e a distribuição de commodities”.

Em outras palavras, assumida ao pé da letra, a definição de agronegócio de Davis coloca tudo o que se refere ao plantio, produção, estocagem, comercialização e transporte dentro de uma mesma sacola, como se fosse possível igualar agentes do tamanho da Bayer e da Cargill com um assentado de reforma agrária em algum lugar perdido na Amazônia brasileira. Apesar da impossibilidade óbvia de tudo cair sob este guarda-chuva gigantesco, o conceito de agronegócio serve exatamente ao propósito de se juntar gregos e troianos, escondendo as diferenças de escala de poder que envolve a produção e circulação de produtos agrícolas no planeta.

Agronegócio e meio ambiente são compatíveis?

Na entrevista realizada no Jornal Nacional com o ex-presidente Lula, a jornalista Renata Vasconcellos tentou jogar uma casca de banana para seu entrevistado ao afirmar, algo na linha de que o “agronegócio não é incompatível com a proteção meio ambiente“. 

Apenas examinando quem cai dentro da categoria de agronegócio é evidente que apesar de todas as campanhas da “governança sócio-corporativa e ambiental” que corporações como a Bayer, Basf e Syngenta possam fazer, a dependência de produtos danosos ao meio ambiente (os agrotóxicos) para a geração de lucros impede um compromisso real com a proteção ambiental.

Entretanto, olhando ainda mais de perto o que ocorre no Brasil deixado da lona do “agronegócio” é possível encontrar facilmente exemplos de como os agentes do agronegócio (latifundiários, por exemplo) estão envolvidos diretamente no desmatamento ilegal de terras públicas, uso abusivo de agrotóxicos e no emprego de mão de obra escrava. 

E não adianta tentar separar como fez o ex-presidente Lula o “bom agronegócio” do “mau agronegócio”, pois é da natureza desse amplo segmento incorrer em custos ambientais altíssimos para gerar lucros fabulosos. Aliás, tentar criar tal dicotomia só contribui para que a verdadeira natureza (anti-ambiental e anti-social) do agronegócio seja colocada à luz do dia.

Reforma agrária como base da transformação ecológica da agricultura brasileira

Eu não tenho nenhuma dúvida de que não há outra saída para o fim da condição de economia dependente do Brasil que não se realizar uma ampla reforma agrária no Brasil. Essa reforma seria capaz de liberar uma energia produtiva inédita na história do Brasil, criando empregos em escala inédita e ampliando a produção de alimentos que, estes sim, poderiam servir para diminuir o número de brasileiras e brasileiros que passam fome todos os dias. 

Mas uma reforma agrária não poderá ser feita para manter o mesmo tipo de padrão viciado em insumos poluentes como o que foi estabelecido a partir da chamada Revolução Verde. A modificação da estrutura da propriedade terá de ser acompanhada por uma profunda alteração nas bases da produção agrícola, saindo do modelo atual para outro que respeite os limites ecológicos e produza a partir deles. Aliás, para quem acha que isso é utópico demais, basta dizer que a atual forma de produção agrícola nos leva claramente para um mundo distópico. Além disso, um modelo agroecológico é algo que cientistas como a indiana Vandana Shiva e o chileno Miguel Altieri já têm se ocupado por várias décadas.

 

Gustavo Petro e Francia Marquez assumem o poder na Colômbia, em um feito inédito

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Este domingo (07/08) representa uma data histórica para o povo colombiano com a posse do presidente Gustavo Petro e da sua vice-presidente Francia Márquez.  É que pela primeira vez na história da república colombiana, um político com trajetória de esquerda que optei por formar chapa com uma mulhere negra engajada na luta pelos direitos humanos.

Obviamente os desafios que serão enfrentados por Petro e Márquez serão enormes, na medida em que as elites colombianas, tão caninas aos intereresses estadunidenses, não aceitarão ceder qualquer espaço que seja para a implantação de políticas públicas que coloquem em xeque seus privilégios históricos. 

Mas a despeito do que possa acontecer durante o mandato de Gustavo Petro, o caso colombiano demonstra que há sim espaço para propostas usadas em que os programas históricos não são jogados fora em nome de uma suposta viabilidade eleitoral, como está acontecendo neste momento no Brasil.

Nesse sentido, há que se destacar que dentro do programa eleitoral que elegeu Petro e  Márquez estão a a implementação da reforma agrária, a adoção de políticas para combater as mudanças climáticas, a taxação de grandes fortunas, a implantação de programas para fortalecer os direitos das mulheres, e ainda uma audaciosa modificação na estrutura das forças de segurança.

Se olharmos o que foi dito (já que programa mesmo ninguém mostrou) até agora pelos candidatos de oposição a Jair Bolsonaro, incluindo o ex-presidente Lula e o ex-ministro Ciro Gomes, não há nada que chegue próximo ao programa mínimo de Petro e Márquez.

“Meu nome é Cícero” é mais do que uma peça teatral, é um chamado à ação

Assassinado pelas costas em uma estrada empoeirada nos limites da antiga Usina Cambaíba em 2013, o líder sem terrra Cícero Guedes ressurgiu na noite de ontem no palco do Teatro Trianon em Campos dos Goytacazes graças à criação de Adriano Moura que escreveu e dirigiu peça-musical “Meu nome é Cícero” (ver imagem abaixo).

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Como muitos que conheceram Cícero enquanto ele estava vivo e lutando pelo avanço da reforma agrária em Campos dos Goytacazes, só posso dizer que essa recuperação da memória de uma liderança que se ergueu do trabalho escravo para expressar as múltiplas formas que a luta pela justiça social é não apenas justa, como fundamental em um contexto histórico tão ruim para a maioria pobre do nosso povo.

Um detalhe que parece sempre passar em branco em uma sociedade claramente racista é que Cícero Guedes era mais do que simplesmente um líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Por sua origem social e étnica, Cícero era uma liderança negra cujo vulto se levantava para colocar claramente que é preciso que construamos uma nova sociedade em que a ordem escravocrata seja um dia superada no Brasil.

Cícero Guedes, o musical | Imagem: Reprodução

Não pude estar no Teatro Trianon, mas a narrativa de quem esteve presente me faz ter certeza que a energia que emanava das palavras e gestos foi revivida de uma forma que  fez justiça a quem Cícero realmente foi. Um personagem de múltiplas facetas Cícero era o que eu já chamei muitas vezes de “uma força natureza” tal era a energia que ele emanava para defender a necessidade da reforma agrária em um país profundamente marcado por graves distorções sociais e desigualdades econômicas.

Aproveitando a deixa, o fato de que os mandantes e assassinos de Cícero Guedes possam caminhar livremente pelas ruas é exemplo de como a justiça continua a ser negada aos que ousam se insurgir contra a ordem social que vige no Brasil.  Cobrar que eles sejam trazidos aos tribunais é uma necessidade que deveria ser abraçada por todos os que dizem defender a injustiça social que grassa em todo o território brasileiro.

Por isso “Meu nome é Cícero” é mais do que uma peça teatral, e se mostra como um convite à ação que Cícero Guedes abraçou de forma contundente, fosse cortando cercas de latifúndios improvidos ou ao entoar músicas que animavam os que encontravam abriga nos barracos de lona preta que são instalados após a derrubada delas.

Titula Brasil faz parte da maior ofensiva de grilagem pós-ditadura

Governos Lula, Temer e Bolsonaro produziram leis responsáveis por passar cerca de 190 milhões de hectares de terras públicas para domínio particular; processo de apropriação vem desde FHC, mas na gestão atual avança de forma avassaladora

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A reportagem é de Mariana Franco Ramos, publicada por De Olho Nos Ruralistas e O Joio e O Trigo, 12-04-2022.

“Como deputado, em 100% das vezes votei acompanhando a bancada ruralista”. Foi assim que o presidente Jair Bolsonaro começou seu discurso em um nada prosaico café da manhã oferecido a membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), no dia 4 de julho de 2019, em Brasília. “E vocês sabem que votar com a bancada ruralista é quase como parto de rinoceronte, recebendo críticas da imprensa, de organizações não governamentais e de governos de outros países”, prosseguiu o presidente. “Esse governo é de vocês”, finalizou.

Desde então, Bolsonaro vem provando que não só o governo, como o país, é sim da FPA e de quem a financia.

Lançado em 10 de fevereiro de 2021 pela ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, uma das autoridades presentes naquele encontro, o Titula Brasil foi a cereja do bolo de uma série de iniciativas que beneficiam invasores de terras e estimulam o crime, a violência e o desmatamento no campo.

Por isso, logo que saiu do papel, ele ganhou, de ambientalistas, camponeses e organizações de defesa dos direitos humanos, o apelido de “Invade Brasil.

A série de reportagens “Brasil, país que grila” feita pela equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas está mostrando como sob o discurso da “modernização”, o programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo: “Titula Brasil promove conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo”.

O programa busca, segundo o governo, “agilizar o processo de regularização fundiária”, por meio da parceria entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as prefeituras municipais. Foi criado pela Portaria Conjunta nº 1, de dezembro de 2020, da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf), comandada por Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e um autodeclarado inimigo da reforma agrária.

Na prática, a proposta terceiriza aos municípios as atribuições de regularização fundiária de áreas da União. A instrução estabelece que as parcerias do Incra com os municípios devem ser feitas por meio de Acordos de Cooperação Técnica (ACT), sem previsão de repasse de recursos entre as partes.

Transferência de terras públicas para domínio privado

Antes da portaria, em dezembro de 2019, o governo federal já tinha publicado a Medida Provisória 910/2019, conhecida como MP da Grilagem, que possibilitava ampla transferência de terras públicas invadidas por grileiros até dezembro de 2019. A MP acabou caducando, mas integrantes da FPA se articularam para aprovar projetos de lei que, com pequenas variações, repetem as mesmas proposições. São os casos do PL 2633/2020, assinado pelo deputado Zé Silva (SDD/MG), e do PL 510/2021, ainda em tramitação, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), filho da senadora Kátia Abreu (PP-TO).

“O que está em questão em meio à pandemia do novo coronavírus é a transferência de cerca de 60 a 65 milhões de hectares de terras públicas para o domínio privado”. A afirmação é de um grupo de professores de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), que inclui Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Camila Salles de Faria, Carlos Alberto Feliciano, Gustavo Francisco Teixeira Prieto, José de Sousa Sobrinho, Maurício Torres, Sandra Helena Gonçalves Costa e Tiago Maika Muller Schwab.

No livro “A grilagem de terras na formação territorial brasileira”, eles alertam para o perigo de novas formas privadas de dominação e desmatamentos. “Não surpreende ninguém, mas ressalta-se que o governo Bolsonaro tem colocado em primeiro lugar a defesa dos interesses de latifundiários, madeireiros e garimpeiros, ou seja, do agronegócio e do rentismo à brasileira no centro da antipolítica fundiária. É um governo de grileiros e, como sabemos, estes não fazem home office.”

Retrocessos vêm desde FHC, mas ganham escala com Bolsonaro

Para o geógrafo Paulo Roberto Raposo Alentejano, doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o cenário geral é de ofensiva sobre terras ainda públicas no Brasil. “Há um processo de expandir a incorporação dessas terras ao mercado”, diz. “Isso vale tanto para terras devolutas, aquelas fruto de grilagem, principalmente, mas não só, na Amazônia, como para aquelas situadas em assentamentos, que também são alvo de uma nova tentativa de titulação generalizada”, analisa.

O professor explica que o processo não começou agora. Fernando Henrique Cardoso fez, no final do segundo mandato, “um movimento significativo, já expressivo, que depois arrefeceu bastante durante os governos petistas, foi retomado com força no governo Michel Temer e com o Bolsonaro virou prioridade absoluta”. No contexto mais amplo, o geógrafo fala em avanço da mercantilização das terras públicas. “São esses dois movimentos principais, somados a um terceiro, que é a mercantilização plena, a questão da liberação de arrendamento de terras indígenas para o agronegócio e a mineração”.

Prieto vai na mesma linha. Segundo ele, é preciso entender o grilo para além da fraude: “Com a grilagem, a luta pela terra é transformada em negócio”, opina. “Grila-se uma terra e ainda se recebe indenização do Estado quando as pessoas são desapropriadas. É algo estrutural para o conjunto do agronegócio”.

A hegemonia do agronegócio, de acordo com os geógrafos, é realidade desde o final dos anos 1990, quando houve a crise do Real, com a desvalorização da moeda, e a promulgação da Lei Kandir, que isenta as tributações incidentes nas exportações dos produtos primários. O setor foi, assim, ganhando poder de interferir nas decisões governamentais. “Isso se propaga para o primeiro governo Lula, quando o Roberto Rodrigues, então presidente da Abag, foi indicado para o Ministério da Agricultura”, lembra Alentejano, sobre a Associação Brasileira do Agronegócio.

Outras lideranças fundamentais do agronegócio também alçaram na época cargos no primeiro escalão, como Blairo Maggi e Kátia Abreu. “Há um processo de neutralização da reforma agrária, desconstruído ao longo do tempo, que se acentua, a ponto de o Lula chamar os usineiros de heróis”, acrescenta o professor. Ou seja, essa simbiose com o agronegócio era realidade já nas administrações petistas. “Fortaleceram os segmentos mais retrógrados, mais atrasados da sociedade brasileira, e agora estamos pagando o pato”, completa.

Alentejano reforça que as exportações foram alavancadas fortemente ao longo desse período. “Saltam dos 12 milhões de hectares colhidos de soja no Brasil nos anos 90, para o patamar de quase 40 milhões, um crescimento exponencial”. O volume de crédito também foi gigantesco. Tais medidas, juntas, fortaleceram um setor “tradicionalmente retrógrado e aliado ao que há de mais atrasado na política brasileira”. O cenário propício, que se reforçou mais com Temer e Bolsonaro, já estava então criado. “No governo Bolsonaro há um apoio absoluto desse setor, conectado com a agenda dele”.

Conforme cálculos dos pesquisadores da USP, sintetizando e somando a legalização jurídica e nacional da grilagem entre 2009 e 2020 chega-se a 190 milhões de hectares. São 67 milhões do Programa Terra Legal, implementado por Lula em 2009 e que autoriza a transferência sem licitação a particulares de terrenos da União na Amazônia Legal, mais 60 milhões de “regularização fundiária” de Temer em 2017 e mais 65 milhões de hectares do governo Bolsonaro.

“A ordem é simplificar e titular”

“Pra mim, o Titula Brasil é grilagem por app”, resume Gustavo Prieto, em referência aos aplicativos de smartphones. “A própria pessoa faz a declaração sobre a ocupação mansa e pacífica”, comenta. De acordo com ele, a tática é implementar a MP 910, que caducou, “na marra”.

O perigo, porém, é que a anistia aos grileiros passa a ser ad infinitum. “Você faz de duas formas: a primeira é garantir a grilagem no passado e estabelecer possibilidades de que aquilo vai ser nacionalizado ou no futuro vai ser garantido um novo marco temporal”, explica. “E a segunda é a mobilização constante do termo segurança jurídica”.

Como forma de tentar confundir a população, em torno dessa grande ideologia da bancada ruralista se estabelece um novo vocabulário do agro. “Esse léxico estabelece aquilo que está rotineirizado pela Tereza Cristina e pelo Luiz Nabhan: a grilagem nunca aparece; aparecem áreas públicas federais não regularizadas, adquirentes de boa fé etc”, diz Prieto. E, para complementar, há uma confusão jurídica entre posseiros e grileiros. “Nos vídeos institucionais, aparecem cidadãos de baixa renda acessando pela primeira vez um título”, comenta.

Na audiência pública que marcou o lançamento do programa, em 25 de março do ano passado, a ministra afirmou que o Titula Brasil tem como objetivo “facilitar a concessão de títulos”. Ela também argumentou que a aprovação do PL 510/2021, do senador Irájá (PSD-TO), “auxiliará na desburocratização do processo”. Segundo dados do Incra, em 2021 foram emitidos 137 mil títulos de terra, contra 109 mil documentos em 2020.

“As palavras de ordem são simplificar e titular”, define Prieto. “São os dois mantras: automatizar e desburocratizar”. O professor fala em grilagem por app pois paira a dúvida de como a União e os técnicos dos municípios vão fiscalizar esse processo, já que o Incra vem sendo “esvaziado” nos últimos anos. “São 166 mil imóveis só na Amazônia”, lembra. Na avaliação dele, há ainda uma flagrante inconstitucionalidade. Isso porque a operação acontece em escala municipal, entretanto, as terras são da União.

Orçamento do Incra é quase todo para pagamento de precatórios

Outra questão diz respeito ao baixo orçamento do Incra. Em 2021, a autarquia executou R$ 3,4 bilhões em verbas, sendo a maior parte dos recursos destinada ao pagamento de precatórios. A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef/Fenadsef) e a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (CNASI-AN) informaram que as verbas para créditos, melhorias de assentamentos, monitoramento de conflitos fundiários e reconhecimento de territórios quilombolas sofreram um corte de 90%.

“Os servidores públicos vão de fato averiguar os dados declaratórios dos latifundiários?”, questiona o pesquisador. Fala-se, por alto, de regularização fundiária de 300 mil famílias, que serão cadastradas por funcionários municipais, cabendo ao Incra a checagem remota. “Para além da pressão política local, esses apps de georreferenciamento e funcionamento remoto vão ser operados por quem, em locais onde não há nem internet?”

A falta de transparência na descentralização do processo para os municípios, onde a pressão política local pode influenciar quem vai receber os títulos, favorecendo interesses particulares, é a principal crítica de organizações sociais. Para o Greenpeace, titulação sem justiça social e ambiental não funciona. “Ao defender a facilitação na concessão de títulos, o governo Bolsonaro tenta maquiar a realidade, porque não está preocupado em dar o título de terra para quem realmente tem direito e em prol do interesse coletivo”, escreve a ONG, em nota.

Acirramento dos conflitos em assentamentos

Paulo Alentejano menciona ainda a questão das florestas públicas, que também são objeto de um movimento de concessão privada. Todas essas propostas são fruto, de acordo com o professor, da dinâmica expansiva do agronegócio no Brasil.

Em relação aos governos anteriores, ele destaca duas diferenças fundamentais. “Essa ofensiva ocorre diante de um desmonte generalizado de todas as políticas de sustentação e de apoio ao desenvolvimento dos assentamentos”. Bolsonaro acabou com ou enfraqueceu políticas de assistência técnica, de educação, caso do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), voltado para a formação de estudantes do campo, e de apoio à comercialização, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

“Isso tudo, somado à entrega do título de propriedade privada, aumenta a fragilidade dos assentados”, opina. O geógrafo prevê que, com a possibilidade de venda das terras, uma vez tituladas privadamente, ocorra uma reconcentração fundiária muito maior. “Os processos de grilagem são legitimados por esse governo, que legitima também a violência no meio rural, com liberação de armas e incentivo ao porte”, afirma. Trata-se, conforme o professor, de uma “combinação explosiva”, que potencializa os conflitos.

De acordo com Alentejano, a grande diferença do governo Bolsonaro para os demais é a escala. “Algo disso já vinha do governo Temer e, mais longe ainda, desde FHC, que é a construção de uma hegemonia do agronegócio”, afirma. “Essa hegemonia atravessou os governos petistas sem contraposições mais expressivas”.

Na opinião de Gustavo Prieto, essa é a maior ofensiva de grilagem pós-ditadura. “Eu acho que sim e que está associada a um outro processo: uma tentativa de liquidação de projeto de reforma agrária, ou seja, de reinserção de terras de assentados no mercado formal de terras”. O professor destaca o fato de não se estabelecer a concessão de direito real de uso, mas sim um título definitivo: “É não só grilar a terra do estoque de terras públicas brasileiras, mas junto disso reverter a nossa tímida reforma agrária, sobretudo em áreas onde o valor médio de hectares é alto, como no sudeste, e onde há forte especulação imobiliária. Não é só um processo de impacto pro campo brasileiro. É também para a área urbana”, define.


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Este texto foi inicialmente publicado pelo Instituto Humanitas [Aqui!].

8a Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária da UFRRJ debate Desmonte das políticas agrárias e ambientais

8ª Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária
📆⏰Em 27 de julho de 2021, às 19h


A atividade será transmitida ao vivo no youtube do Terra Crioula através do link: https://youtu.be/-FRWogNGtig

O fortalecimento dos ruralistas junto ao Congresso e ao Executivo nos últimos anos tem levado ao desmonte das políticas agrárias e ambientais e à intensificação dos casos de grilagem de terras, desmatamento e de violência no campo. Esta mesa busca discutir esse contexto, dando destaque à crescente influência da bancada ruralista, as investidas nas terras indígenas e quilombolas e na regularização da grilagem.

Por reforma agrária, MST ocupa terras da Usina Cambahyba

Por que ocupamos as terras da usina Cambahyba? Nesta quinta-feira (24/6), 300 famílias do MST ocupam uma das fazendas que pertence ao Complexo Cambahyba, após esta ser oficialmente desapropriada para fins de Reforma Agrária pela Justiça

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Da Página do MST

Há 25 anos o MST marca sua trajetória no Rio de Janeiro com a ocupação de terras das fazendas da falida usina Capelinha, em Conceição de Macabu. A ocupação se deu em resposta ao latifúndio improdutivo e ao massacre do Eldorado dos Carajás, onde 21 Sem Terras foram assassinados pelo governo do estado (PSDB) no Pará, em abril de 1996. No ano seguinte o MST no RJ se consolidou com a ocupação da usina São João em Campos dos Goytacazes (RJ) dando origem ao assentamento Zumbi dos Palmares, onde mais de 500 famílias conquistaram suas terras para viver e produzir alimentos.

Hoje 24 de junho de 2021, 300 famílias ocupam uma das fazendas que pertence ao Complexo de Fazendas Cambahyba, após esta ser decretada oficialmente desapropriada para fins de Reforma Agrária pela justiça da 1ª Vara Federal de Campos, no dia 05 de maio junto com outras fazendas: a Flora, Saquarema e a Cambahyba pertencentes ao Complexo.

mst cambahyba

Nasce assim o Acampamento Cícero Guedes, construído com o apoio de diversas organizações, sindicatos, entidades de Direitos Humanos, entidades religiosas, partidos políticos, movimento estudantil, movimentos sociais do município de Campos dos Goytacazes e também entidades nacionais.

As famílias que participam da ocupação são oriundas de diversos territórios de resistência da região, de processos de lutas atuais e anteriores, como os agricultores de São João da Barra despejados no Porto do Açu, trabalhadores do corte de cana de Floresta, Ocupação Nova Horizonte em Guarus, trabalhadores do bairro da Codin e do antigo acampamento Luís Maranhão.

A história da Usina Cambahyba é a expressão da formação da grande propriedade e da exploração da força de trabalho e do meio ambiente no Brasil. É uma história de violência marcada pela resistência dos trabalhadores e trabalhadoras.

Há mais de 20 anos, o MST luta pela desapropriação do Complexo Cambahyba em Campos (RJ), que desde 1998, através de decreto presidencial, foi considerada improdutiva por não cumprir sua função social.

Essas terras pertenceram ao ex-vice-governador do estado, Heli Ribeiro Gomes (1968), e a ausência de função social da terra se fazia diante da manutenção de trabalho análogo à escravidão, degradação do meio ambiente, exploração do trabalho infantil, além de acumular dívidas trabalhistas e previdenciárias milionárias com a União.

Não foram poucas as ocupações e as mobilizações para que o direito à desapropriação das terras da Cambahyba se realizasse. Foram muitos os momentos que nos levaram à praça São Salvador para que o judiciário federal finalmente reconhecesse a improdutividade e garantisse a imissão de posse ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Exatos 21 anos de luta, de perdas, mas também de resistência e esperança de que essas terras seriam dos trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra.

Por isso, ocupamos a Cambahyba! Ocupamos pela memória daqueles que foram silenciados e desaparecidos pela desumanidade do poder. Daqueles que foram torturados, assassinados na ditadura empresarial-militar e tiveram a conivência da Cia Usina Cambahyba, permitindo que seus fornos fossem utilizados para incinerar 12 corpos de presos políticos e opositores do regime. Dentre eles, Luís Maranhão, Fernando Santa Cruz e Ana Rosa Kucinski.

Ocupamos as terras da Cambahyba para exigir justiça para Cícero Guedes, grande liderança do MST que lutou ativamente para ver o chão conquistado e as famílias trabalhadoras com melhores condições de vida. Também em homenagem à Dona Neli, Seu Toninho, Edson Nogueira, Renilda e Dona Regina que doaram suas vidas e batalhas pelo tão sonhado direito à terra, efetivação da Reforma Agrária e pelo fim do trabalho escravo nos latifúndios açucareiros, em Campos dos Goytacazes.

Ocupamos as terras da Cambahyba para exigir democracia, terra para produzir comida saudável para todas as trabalhadoras e trabalhadores pobres do campo e da cidade que vem sofrendo as consequências da pandemia de Covid-19 negligenciada pelo governo.

Ocupamos a Cambahyba cumprindo todos os protocolos de saúde porque queremos vacinas para todas, todes e todos. Reforçamos as práticas de saúde em relação ao distanciamento social, uso de máscaras e álcool em gel. Nos levantamos para denunciar o governo genocida de Jair Bolsonaro, com mais de 500.000 mil mortes de brasileiras e brasileiros.

Ocupamos a Cambahyba porque ela é um patrimônio público da memória, de resistências das famílias de trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra que nada mais querem do que a efetividade da Constituição que impõe a Reforma Agrária para terras improdutivas.

Em nenhum momento tivemos dúvidas de que se tratava de um latifúndio improdutivo marcado pela exploração do trabalho, impactos ambientais e comprometimento com a ditadura empresarial-militar que manchou nossa história.

Nossa Luta é uma luta de todxs, viva o Acampamento Cícero Guedes por vida digna, vacina no braço, comida no prato!!!

Ditadura Nunca Mais!

Fora Bolsonaro!

Viva o Acampamento Cícero Guedes! A Cambahyba é nossa!

Direção Estadual do MST no Rio de Janeiro
24 de junho de 2021

*Editado por Solange Engelmann

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Este texto foi inicialmente publicado na página do MST [Aqui!].