Além das florestas: traders enfrentam riscos regulatórios da UE sobre a expansão da soja no Brasil

Os traders de soja estão mais expostos à conversão dos habitats do cerrado e dos pampas do que à conversão das florestas. Conforme a União Europeia (UE) considera incluir outros ecossistemas em sua nova legislação de devida diligência, a análise da Trase revela quais comerciantes enfrentam os maiores riscos regulatórios

defo trase

Por Mark Titley e Tiago Reis para a Trase

Com o futuro regulamento da UE sobre produtos livres de desmatamento , os comerciantes de commodities em breve terão que provar que produtos como soja e óleo de palma destinados ao mercado da UE não estão vinculados à conversão das florestas. No futuro, isso poderá ser ampliado para incluir outros ecossistemas.

Isso teria grandes implicações para os comerciantes de soja que compram do Brasil: apenas 17% da recente expansão da soja nos habitats naturais aconteceu nas florestas. Os comerciantes muito provavelmente estavam comprando soja que invadiu o cerrado e os pampas biodiversos do Brasil.

Na primeira revisão do regulamento, prevista para acontecer até setembro de 2024, a UE irá considerar a inclusão de “outras terras arborizadas”, o que iria aumentar a cobertura do cerrado de 26% para 82% . Um ano depois, em setembro de 2025, será considerada a inclusão dos pampas e pântanos.

A nova análise da Trase revela como essa ampliação do escopo não afetaria todos os comerciantes da mesma forma, pois os padrões de compra diferenciados desses comerciantes no Brasil os expõem a diferentes tipos de conversão (ver a figura).

Brazil soy traders deforestation exposure

A inclusão de outras terras arborizadas teria implicações particularmente grandes para empresas como a Bunge, que veria a porção da sua exposição ao desmatamento e conversão coberta pela regulamentação triplicada, de 6.920 hectares (ha) para 24.600 ha, e a Cargill, cuja área de exposição coberta pela regulamentação seria cinco vezes maior, de 4.420 (ha) para 21.000 (ha). Ambas as empresas são grandes exportadoras de soja para a UE e estão mais expostas ao desmatamento e conversão devido a este comércio com o bloco.

Outras empresas com exposição menor à conversão de outras terras arborizadas ainda veriam mudanças dramáticas, como o aumento de dez vezes da CHS, de 732 ha para 7.360 ha. Enquanto isso, a Orlam, que tem seu fornecimento no estado do Rio Grande do Sul, seria particularmente afetada se os pampas fossem incluídos, onde fica 91% da sua exposição ao desmatamento e conversão.

Uma oportunidade para a UE reduzir seus impactos sobre a natureza

Seria uma grande vitória para a biodiversidade se a ampliação do escopo do regulamento da UE levasse a uma redução na expansão da soja nos ecossistemas que não são de floresta no Brasil. O cerrado é o lar de mais de 11.000 espécies de plantas, muitas das quais não são encontradas em nenhum outro lugar, e fornece habitats importantes para os animais, incluindo o tamanduá-bandeira, o tatuaçu e a onça. A necessidade de proteger os pampas dos altíssimos níveis da recente expansão da soja permanece bastante negligenciada, apesar de este ser um ecossistema frágil que está entre as pradarias mais ricas em espécies do planeta.

A experiência anterior da Moratória da Soja da Amazônia – um acordo com cerca dos 20 maiores comerciantes de soja para parar de comprar soja de terra que foi desmatada após julho de 2008 – mostra como o esforço conjunto dos comerciantes, combinado com governança forte e monitoramento do desmatamento, levou a uma redução drástica do desmatamento direto por soja na Amazônia brasileira. No entanto, devido a esta política estar restrita à Amazônia, argumentou-se que cerca da metade do desmatamento evitado foi transferido para outras regiões , tais como o Cerrado.

Estender o regulamento da UE para cobrir outros ecossistemas é essencial para ajudar a evitar que efeitos semelhantes de “vazamento” se repitam. No entanto, é vital que a UE aplique um prazo comum (um tempo a partir do qual a produção seja considerada vinculada ao desmatamento ou conversão) para todos os tipos de conversão, para evitar incentivar uma rápida expansão em outros ecossistemas vulneráveis enquanto a possível inclusão desses ecossistemas é revisada.

Uma chance para os vendedores gerirem o risco de conformidade

Para os comerciantes, aumentar o escopo do regulamento da UE significa que eles provavelmente enfrentariam maior escrutínio sobre uma porção muito maior da sua produção e teriam que fornecer informações no nível das explorações agrícolas sobre sua compra em regiões de maior risco.

Os comerciantes são bem orientados a garantir que sua produção não esteja vinculada à conversão de nenhum ecossistema nativo, principalmente porque muitos desses comerciantes já têm compromissos de desmatamento zero que incluem esses ecossistemas. Apesar de isso parecer complexo, os dados da Trase mostram que a exposição desses comerciantes ao desmatamento e conversão da terra está altamente concentrada em poucos lugares, destacando as regiões prioritárias para engajar os produtores e revelando onde eles podem querer melhorar a rastreabilidade de sua cadeia de suprimento.

Além disso, os comerciantes devem se comprometer a não expandir a infraestrutura de processamento de soja em áreas fronteiriças de desmatamento e conversão. Em vez disso, eles devem focar a expansão de infraestrutura em regiões com grandes áreas de pastagens degradadas e subutilizadas, que totalizaram mais de 33 milhões de hectares em 2021 . Isso seria um sinal para os produtores e motivaria a expansão da soja sem promover mais conversão, ajudando a abrir o caminho para os comerciantes cumprirem o regulamento progressivo do lado da demanda e seus próprios compromissos de desmatamento zero e ajudando a proteger a biodiversidade globalmente importante do Brasil.


color compass

Este texto foi originalmente publicado pela Trase [Aqui!].

Peixes com “níveis mais altos de herbicidas no mundo” são encontrados em bacia dominada por monoculturas de soja na Argentina

sabalo-Parana-996x567Curimbatás (Prochilodus lineatus) são altamente consumidos em toda a bacia do Paraná. Crédito da imagem: Jonas Techy Potrich/Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons (CC BY-SA 3.0)

Os peixes do Río Salado, afluente do Paraná (o maior rio sul-americano depois do Amazonas), mostrarão restos de novos inseticidas, herbicidas e fungicidas aplicados em cultivos transgênicos de soja, milho e algodão que abundam nessa bacia fluvial.

Embora os efeitos em peixes e humanos ainda não estejam completamente certos, os autores aconselham sobre a necessidade de medidas extremas de precaução em um dos cursos de água mais importantes do país, que provê alimento tanto no âmbito local como para exportação.Estudio planta que “se necessita urgentemente aumentar a distância entre os cultivos transgênicos dependentes de agrotóxicos e os ecossistemas aquáticos, assim como melhorar a abordagem dos riscos ambientais”. Rafael Lajmanovich, responsável pela pesquisa,  disse ao SciDev.Net que essa distância deveria ser de 1.000 metros como mínimo.

Os pesquisadores analisam sedimentos do rio, músculos e vísceras de 16  peixes comprados de pescadores ao longo de 100 quilômetros de alta produtividade agrícola.

No tecido muscular, há “concentrações muito altas” do inseticida cipermetrina (até 204 microgramas por quilo); do fungicida piraclostrobina (50 μg/kg); dos herbicidas glifosato (187 μg/kg), junto com seu ácido de degradação AMPA (3116 μg/kg), e glufosinato de amônia (677 μg/kg).

Antes deste trabalho, os maiores níveis de glifosato registrados em peixes eram “menores a 10 ug/k” e “não havia” informações sobre a presença de glufosinato, assegurou Lajmanovich em um correio eletrônico.

“É necessário aumentar urgentemente a distância entre os cultivos transgênicos dependentes de pesticidas e os ecossistemas aquáticos, assim como melhorar o tratamento dos riscos ambientais”.

Publicado em: “Cocteles de residuos de plaguicidas en peces Prochilodus lineatus del río Salado (América del Sur): Primer registro de altas concentraciones de herbicidas polares”.

Um estudo sobre os efeitos de herbicidas polares publicado em 2021 detectou níveis máximos de AMPA de 300 ug/k no tecido muscular e de 650 ug/k no fígado de peixes Hoplosternum littorale (mais conhecidos como cascudos) da mesma província, precisou em outro e-mail Andrea Rossi, uma das autoras. Embora não tenho sido encontradas  evidências de danos celulares ou efeitos neurotóxicos, é possível encontrar alterações nos parâmetros hematológicos dos espécimes amostrados.

A exposição aguda às quantidades encontradas nesta ocasião, sem nenhuma dúvida, poderia gerar efeitos “múltiplos”, tanto em peixes como em humanos, que incluíam genotoxicidade (capacidade de causar danos genéticos) e disrupção hormonal, associada ao aparecimento de tumores, malformações , disfunções do aparelho reprodutor, neurotoxicidade ou problemas imunológicos, explica Lajmanovich.

Entre 2019 e 2022, o mesmo investigador ―professor titular da Cátedra de Ecotoxicologia da Universidade Nacional do Litoral― fez várias advertências semelhantes sobre os efeitos combinados do glifosato com o arsénico e com os microplásticos .

Os autores reconhecem que a alta solubilidade dos agrotóxicos faz com que a determinação dos níveis de contaminantes seja “problemática”, embora essa mesma solubilidade provoca que sua toxicidade aumente em ambientes aquáticos, onde as membranas dos peixes facilitam a absorção.

Nesse sentido, o médico  Eric Speranza – que há 14 anos encontrou altos níveis de hidrocarbornetos em curimbatpas próximos da cidade de Buenos Aires – disse por telefone que está satisfeito que foi possível medir o glifosato e o glufosinato no tecido muscular do peixe.

“Está evidenciando o impacto da atividade agrícola sojeira”, avisou o investigador do Laboratório de Química Ambiental y Biogeoquímica das universidades argentinas de La Plata e Arturo Jauretche.

Em relação a uma possível vedação provincial sobre a pesca, Speranza é cautelosa, já que se trata de uma medida que “requer ter em conta fatores econômicos e sociais, como as próprias pessoas que vivem dessa atividade”.

Fontes do Servicio Nacional de Sanidad y Calidad Agroalimentaria –encarregado de controlar a segurança dos alimentos de origem animal e vegetal na Argentina – diz ao SciDev.Net que o relatório “recebeu relativa importância”, pois eles têm dúvidas sobre sua metodologia,  , por exemplo, em relação à quantidade de exemplares analisados.

A agência atualmente não mede vestígios de herbicidas em peixes; limites máximos de resíduos (LMR) são estabelecidos apenas para vegetais. Mesmo assim, eles sugerem que os valores encontrados não representam risco à saúde humana. No caso da soja para consumo, por exemplo, o LMR para glifosato é de 5.000 μg/kg.

No entanto, os autores do trabalho insistem em que “a contaminação por agrotóxicos do Rio Salado representa uma ameaça prejudicial à viabilidade da população de peixes e outros organismos aquáticos, e um grande risco para os consumidores”.

Propõe-se uma regulação clara sobre os níveis máximos toleráveis ​​para essas substâncias, permitindo uma melhor abordagem da situação.

Diversas tentativas da SciDev.Net para obter uma declaração oficial sobre medidas futuras por parte do governo de Santa Fé foram infrutíferos até o fechamento deste texto

Link para o resumo do artigo na Science of the Total Environment


compass black

Este artigo foi produzido pela edição de América Latina e Caribe de  SciDev.Net [Aqui!].

Comunidade caiçara do Guarujá fará denúncia internacional contra a Cargill

Moradores e pescadores do Sítio Conceiçãozinha reclamam de não terem sido ouvidos sobre obras de ampliação do terminal da gigante mundial dos alimentos, que deverá fechar antiga saída para o mar

sitio-conceicaozinha

Por Cida de Oliveira, da RBA

São Paulo – A comunidade tradicional do Sítio Conceiçãozinha, em Guarujá, vai formalizar denúncia contra a Cargill na União Internacional de Associações de Trabalhadores da Alimentação, Agricultura e Afins (Uita). O ato faz parte dos manifestos contra as obras de ampliação do terminal da gigante mundial da indústria de alimentos no Porto de Santos. Um dos principais problemas do projeto, já em andamento, é que o acesso ao mar para pescadores tradicionais que vivem no local deverá ser fechado.

Em outra frente, a União dos Pescadores de Conceiçãozinha (Unipesc), a Central de Movimentos Populares (CMP) e a Associação de Combate aos Poluentes (ACPO) protocolaram representação no Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público de São Paulo na Baixada Santista. Isso foi na última sexta-feira (17), véspera do carnaval.

No mesmo dia, a CMP divulgou um manifesto contra a “obra antissocial da Cargill, que literalmente está sufocando os pescadores do Sítio Conceiçãozinha” (íntegra no final da reportagem).

Na representação ao Ministério Público, os autores pedem providências contra a expansão considerada irregular dos atracadouros marítimos da empresa Cargill, vizinha do Sítio Conceiçãozinha. Isso porque as obras têm impactos na mobilidade pesqueira e potencial de poluição das águas e do ar.

Imagem mostra a comunidade vizinha à Cargill e a ampliação do atracadouro (em vermelho). Foto: Reprodução/Representação ao MPSP

Para a comunidade, obra da Cargill é irregular

“O estacionamento de gigantescos navios afetará a circulação de ar, a entrada, saída e circulação de embarcações de pescadores tradicionais, aumentará o potencial de risco de poluição das águas e atmosférica devido ao embarque e desembarque de mercadorias a granel que ocorrerá por esses terminais, criando uma barreira de aço entre o pescador e a sua fonte de renda, o mar”, destacam em trecho da representação.

Comunidade antiga de origem caiçara, o Conceiçãozinha tem uma população fixa, consolidada, de cerca de 6 mil pessoas. Ali diversas ruas são asfaltadas, há iluminação, escola pública, posto de saúde e um comércio significativo. “O sentimento é de que estamos sendo emparedados pela multinacional, que chegou aqui muito tempo depois de nós”, disse à RBA o líder comunitário Newton Rafael Gonçalves, de 75 anos.

Segundo ele, o bate-estaca que já rachou muitas casas na comunidade trabalha sem parar. E a obra avança sem que os moradores tenham sido ouvidos. “Não houve nenhuma audiência pública para discutir o assunto com os moradores”, disse.

No entendimento do advogado da CMP, Benedito Barbosa, o Dito, a Cargill desrespeita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. A resolução prevê que as comunidades tradicionais, entre elas caiçaras, sejam devidamente informadas e consultadas em casos de intervenções locais como essa. Isso porque têm papel relevante na proteção do meio ambiente e, sem ela, a cultura e as práticas tradicionais não prosseguiriam.

O Sítio Conceiçãozinha está localizado entre o canal de Santos e a Via Santos Dumont, no distrito de Vicente de Carvalho, no Guarujá. Durante o governo Lula, a comunidade recebeu investimentos para melhoria da infraestrutura e houve regularização fundiária. O governo federal repassou a área para a Prefeitura de Guarujá, que em 2009 concedeu títulos de posse a 1.832 famílias.


“O presidente Lula viveu aqui em sua infância, quando veio de Garanhuns. E mais tarde, quando presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, já voltou sua atenção para o local, que nunca esqueceu. Mas agora enfrentamos essa situação difícil, contra a qual vamos lutar”, disse Newton.


Cargill nega bloqueio do acesso de moradores ao canal

O Terminal Exportador do Guarujá da Cargill afirma, por meio de sua assessoria, que a realização das obras, iniciadas em janeiro de 2023, atendem solicitação da Capitania dos Portos e da Santos Port Authority (SPA). Assim, alega que seu objetivo é “ampliar a segurança das operações, conferindo mais estabilidade às embarcações nas manobras de atracação dos navios”. E ressalta que as obras não eliminarão o acesso dos comunitários ao canal.

“O projeto conta com a anuência dos órgãos competentes para sua realização e, embora iniciativas desta natureza não demandem a realização de audiências públicas, em respeito aos comunitários, o Terminal procurou proativamente as lideranças locais, com quem segue dialogando e que inclusive já visitaram o Terminal para conhecer o projeto e sanar eventuais dúvidas”, diz a empresa.

A Autoridade Portuária de Santos, antiga Companhia Docas, Codesp, é um empresa pública federal. Até o governo anterior, estava subordinada ao Ministério da Infraestrutura, então chefiado pelo atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Mas no atual governo, está vinculado ao Ministério dos Portos e Aeroportos, chefiado por Márcio França.

Enquanto Freitas defende a privatização do Porto de Santos, França contesta. “Quando a gente fala em privatizar o Porto de Santos, o que o governador Tarcísio pretendia (quando era ministro), que era a orientação dada pelo Paulo Guedes e Bolsonaro, era a venda da autoridade portuária. Mas esse modelo só existe em um único país, a Austrália, e mostrou muitas dificuldades”, disse França em recente entrevista à CNN.

Leia o manifesto dos moradores

Cargill, empresa gigante e mundial de alimentos, amplia porto privado e fecha saída para o mar de pescadores da Vila Sítio Conceiçãozinha no Guarujá. Bate-estacas que está ampliando o porto também tem provocado rachaduras em casas de moradores na Vila. Os moradores e pescadores locais tentam impedir a obra que segue a todo vapor, para o desespero de todos no Sítio Conceiçãozinha que estão indignados com ação da empresa.

Diversas lideranças, a convite do companheiro Newton Rafael, que é dirigente da CMP, pescador e morador, visitaram o território em solidariedade aos moradores e pescadores, para, também, ampliar a denúncia sobre esta obra antissocial da Cargill, que literalmente está sufocando os pescadores  do Sítio Conceiçãozinha.

Os moradores reclamam que o bate-estacas, quando está funcionando, provoca tremor nas casas, o que tem provocado diversas rachaduras nos imóveis.Os pescadores reclamam, também, que não houve qualquer audiência ou consulta pública sobre a obra. Por isso, exigem a paralisação imediata da ampliação do porto. No Sítio Conceiçãozinha vivem 6 mil pessoas e cerca de 100 pescadores dependem da pesca.


compass black

Este texto foi originalmente publicado pela Rede Brasil Atual [Aqui!].

Nos seus estertores e com presidente fora do Brasil, governo Bolsonaro libera mais 98 agrotóxicos, totalizando 2.030 em 4 anos

agrotoxico-presidente

Enquanto o presidente cessante Jair Bolsonaro fugia para os EUA, o Ministério da Agricultura mostrava o seu potencial tóxico ao liberar em dois atos (Números 63 e 64) mais 98 agrotóxicos, com os quais se chegou ao impressionante “grande total” de 2.030 liberações desde 01 de janeiro de 2019.  Não há sombra de dúvidas que na área da liberação de venenos agrícolas, o MAPA mostrou-se um dos mais ativos e eficientes braços do governo Bolsonaro.

Uma olhada rápida nos dois atos reforça as mesmas características marcantes de toda a coleção de agrotóxicos liberados por Jair Bolsonaro, na medida em que se manteve a preponderância da origem chinesa da maioria dos produtos técnicos que entrarão em um mercado controlado por versões genéricas de agrotóxicos pós patentes. 

Essa situação de preponderância de produtos chineses que estão em parte proibidos em mercados com regras de uso e comercialização mais exigentes (como é o caso da União Europeia) acaba de ser analisada no artigo que co-autorei com meus colegas Ossi Ollinaho e Markus Kröger, o qual acaba de ser publicado pela revista Third World Quarterly.

Uma das consequências dessa quantidade de agrotóxicos altamente perigosos e que estão destinados para uso majoritário nas monoculturas de exportação (i.e., soja, cana de açúcar, algodão e milho) é a exposição cada vez maior dos brasileiros a resíduos de produtos conhecidos por causarem incontáveis tipos de doenças, a começar por vários tipos de câncer.

Essa herança trágica será, contudo, de difícil remoção, na medida em que o latifúndio agro-exportador continuará efetivamente controlando o MAPA, e certamente com isso as pressões por mais liberações de venenosa agrícolas altamente tóxicos continuarão ocorrendo.

Resta saber como reagirão as outras forças e movimentos sociais do campo que terão, de alguma forma, avançar com as propostas no sentido de uma mudança ecológica em uma agricultura que hoje se encontra com um vício muito forte no uso de agrotóxicos. Da ação dessas forças é que dependerá a diminuição do ritmo avassalador de entrada de venenos agrícolas no mercado brasileiro de agrotóxicos.

O “Observatório dos Agrotóxicos” do Blog do Pedlowski irá ao longo do mês de janeiro publicar arquivos contendo a descrição de todos os atos liberados desde setembro de 2022.

Cultivo de soja no Brasil avança em áreas de desmatamento recente

Estudo elaborado pela plataforma de transparência Trase em parceria com o Imaflora aponta expansão da cultura nos biomas Cerrado, Pampas e Amazônia
desmatamento soja

O cultivo de soja em áreas de desmatamento recente continua avançando em níveis alarmantes no Brasil, afetando de forma crítica três biomas e o combate às mudanças climáticas no país. Em 2020, 562 mil hectares de soja foram colhidos em áreas desmatadas ou convertidas nos cinco anos anteriores, sendo o Cerrado a região mais impactada. Os dados fazem parte de um estudo realizado pela Trase, plataforma que monitora a exposição de cadeias de commodities agropecuárias ao desmatamento, em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Segundo o estudo, em 2020 os campos de soja ocuparam, no Cerrado, mais de 264 mil hectares de terras recentemente desmatadas e convertidas – uma área equivalente ao dobro da extensão da cidade de São Paulo. Já nos Pampas, o cultivo do grão em áreas de desmatamento foi de 196 mil hectares, no mesmo período. Três dos cinco municípios com maior conversão de vegetação nativa em cultura de soja se localizam na região Sul. “Os Pampas vinham sendo uma área pouco estudada até agora. No entanto, os dados mais recentes do Mapbiomas mostram que o bioma se tornou um dos mais ameaçados no Brasil, com conversão ativa e acelerada de campos naturais, e é preciso agir com rapidez para reverter esse quadro”, alerta Vivian Ribeiro, coordenadora de inteligência espacial da Trase.

Os dados também apontam que a Amazônia segue sob forte ameaça da expansão do cultivo da commodity, apesar da proteção fornecida pela Moratória da Soja – acordo firmado entre empresas, organizações da sociedade civil e do governo que prevê o compromisso de não adquirir grãos ou financiar safras cultivadas em áreas desmatadas da Amazônia após julho de 2008. Em 2020, 133 mil hectares de soja foram colhidas de áreas desmatadas após 2008 na Amazônia, em contradição com a Moratória da Soja .

Esta ação afeta diretamente o combate à crise climática: a produção de soja do Brasil em terras recentemente desmatadas e convertidas liberou 103 milhões de toneladas de CO₂ — 11% do total anual de emissões de mudanças no uso da terra do país. Ou seja, o desmatamento da vegetação natural rica em carbono contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa.

Recomendações

Os dados levantados pela Trase com o Imaflora revelam que a expansão da commodity é concentrada: apenas 13% dos 2.388 municípios produtores de soja representavam, em 2020, 95% da produção do Brasil em terras recentemente desmatadas ou convertidas. “Nossas análises apontam com clareza quais regiões concentram a maior parte da soja com desmatamento e conversão. Essas informações são de grande importância para a implementação de medidas direcionadas para a produção de commodities livres de desmatamento. Produtores rurais, empresas, governos municipais, estaduais e federal precisam se unir para fornecer transparência ampla aos compradores e reguladores de mercados consumidores”, afirma Tiago Reis, coordenador da Trase na América do Sul.

Para Lisandro Inakake de Souza, coordenador de cadeias agropecuárias no Imaflora, a redução da conversão de terras para cultivo de soja é do interesse de toda a cadeia. “Temos a Moratória da Soja como um exemplo de compromisso que pode nortear políticas para todo o país e deveria ser ampliado além do bioma amazônico. Além disso, ainda é preciso avançar em tecnologias e processos, aumentar investimentos em monitoramento e fiscalização, em atuações conjuntas dos setores privado, público e organizações da sociedade civil.”

Como resposta a esse problema, o estudo defende que é preciso criar políticas públicas mais duras. Uma das recomendações é o desenvolvimento de um sistema de rastreabilidade público, universal e totalmente transparente, abrangendo todas as commodities agrícolas produzidas no país.

Ações como essa podem ser fundamentais para que o Brasil continue ocupando uma posição de destaque no mundo em exportações de grãos de forma sustentável. A União Europeia está finalizando um regulamento que exige que as empresas fiscalizem suas cadeias de suprimentos e comprovem que seus produtos não são provenientes de áreas desmatadas, mas a regra, como vem sendo elaborada até agora, não prevê cobertura de todos os biomas brasileiros. “Excluir o Cerrado e os Pampas dessa regulamentação deixaria algumas das áreas naturais mais biodiversas do Brasil vulneráveis. Pior ainda, pode aumentar a pressão sobre essas áreas, já que a regulamentação as declararia ‘liberadas’ para derrubada de vegetação natural”, alerta Helen Bellfield, diretora da Trase na Global Canopy.

Além da União Europeia, a China tem papel importante: o país é o maior destino da soja brasileira e importou em 2020 229 mil hectares de soja com desmatamento, seguido pelo próprio consumo do Brasil (102 mil ha). A exposição ao desmatamento da soja na União Europeia é menor, esteve em 29,8 mil ha, em 2020.

Sobre a Trase

A Trase é uma iniciativa de transparência, baseada em dados, que mapeia o comércio e financiamento internacional de commodities que promovem o desmatamento e a conversão nos trópicos. 

Sobre o Imaflora

O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola — Imaflora — é uma associação civil sem fins lucrativos, criada em 1995, que nasceu sob a premissa de que a melhor forma de conservar as florestas tropicais é dar a elas uma destinação econômica, associada a boas práticas de manejo e a uma gestão responsável dos recursos naturais. O Imaflora acredita que a certificação socioambiental é uma das ferramentas que respondem a parte desse desafio, com forte poder indutor do desenvolvimento local, sustentável, nos setores florestal e agrícola. Dessa maneira, o Instituto busca influenciar as cadeias produtivas dos produtos de origem florestal e agrícola; colaborar para a elaboração e implementação de políticas de interesse público e, finalmente, fazer, de fato, a diferença nas regiões em que atua, criando ali modelos de uso da terra e de desenvolvimento sustentável que possam ser reproduzidos em outros municípios, regiões ou biomas do País. Mais informações: Link 

União Europeia chega a acordo para proibir produtos ligados ao desmatamento

desmata1

Uma área queimada da floresta amazônica é vista em Prainha, estado do Pará, Brasil, em 23 de novembro de 2019

Por Alice Tidey para a EuroNews  

Muitos produtos que contribuem para o desmatamento não serão mais importados e vendidos na União Europeia, de acordo com um acordo provisório firmado pelos legisladores da UE na manhã de terça-feira.

O acordo alcançado pelos representantes do Conselho e do Parlamento abrange óleo de palma, gado, soja, café, cacau, madeira e borracha, bem como produtos derivados como carne bovina, móveis, chocolate, papel impresso e derivados selecionados à base de óleo de palma.

Isso significa que as empresas agora terão que apresentar e emitir uma declaração de “due diligence” de que esses produtos colocados no mercado da UE não levaram ao desmatamento e à degradação florestal em nenhum lugar do mundo após 31 de dezembro de 2020.

“As novas regras visam garantir que, quando os consumidores compram esses produtos, eles não contribuam para degradar ainda mais os ecossistemas florestais. Proteger o meio ambiente em todo o mundo, incluindo florestas e florestas tropicais, é uma meta comum para todos os países e a UE está pronta para assumir sua responsabilidade”, disse Marian Jurečka, ministro tcheco do meio ambiente que liderou as negociações para o Conselho em um comunicado.

O acordo está sendo apresentado como uma grande vitória para o Parlamento, que acrescentou borracha, carvão e vários derivados de óleo de palma ao texto.

Os deputados também trabalharam em uma definição mais ampla de degradação florestal que inclui a conversão de florestas primárias ou florestas em regeneração natural em florestas plantadas ou em outras terras arborizadas e a conversão de florestas primárias em florestas plantadas.

A Comissão Europeia, entretanto, foi encarregada de avaliar se deve estender o escopo da legislação a outras terras arborizadas, bem como a outros ecossistemas e commodities nos próximos dois anos.

Também avaliará se as instituições financeiras da UE devem ser incluídas e proibidas de fornecer serviços aos clientes se houver risco de que esses serviços possam levar ao desmatamento. 

“Não foi fácil, mas alcançamos um resultado forte e ambicioso antes da conferência da biodiversidade COP15 em Montreal”, disse o relator Christophe Hansen (EPP, Luxemburgo) em um comunicado. 

“Esta importante nova ferramenta protegerá as florestas globalmente e cobrirá mais commodities e produtos como borracha, papel impresso e carvão. Além disso, garantimos que os direitos dos povos indígenas, nossos primeiros aliados no combate ao desmatamento, sejam efetivamente protegidos. Também garantimos uma forte definição de degradação florestal que abrangerá uma extensa área de floresta”, acrescentou.

O Greenpeace descreveu a nova legislação como um “grande avanço para as florestas e para as pessoas que as enfrentaram”.

“Não se engane, esta lei fará com que algumas motosserras se calem e impeça as empresas de lucrar com o desmatamento”, disse o porta-voz do Greenpeace na UE, John Hyland.

Mas a ONG criticou o que diz serem as inclusões dos governos da UE de “brechas para suas indústrias madeireiras e proteção frágil para os direitos dos povos indígenas que pagam com seu sangue para defender a natureza”.

Também deplorou a capacidade das empresas que se beneficiam do desmatamento de obter empréstimos de bancos europeus.

O WWF também deu as boas-vindas ao acordo com Anke Schulmeister-Oldenhove, oficial sênior de política florestal de seu escritório de política europeu, dizendo que “fizemos história com esta primeira lei mundial contra o desmatamento”.

“Como um grande bloco comercial, a UE não apenas mudará as regras do jogo para o consumo dentro de suas fronteiras, mas também criará um grande incentivo para que outros países que fomentam o desmatamento mudem suas políticas. A lei não é perfeita, mas inclui elementos fortes “, disse ela também.

Mas a ONG gostaria que outros ecossistemas já fossem incluídos, como as savanas, que segundo ela já estão sob imensa pressão da conversão agrícola e são importantes depósitos de carbono e refúgios para animais. Também vê a definição de degradação florestal como não “suficientemente ambiciosa”.

A legislação agora precisa ser formalmente aprovada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu.


compass black

Este texto escrito originalmente em inglês foi publicada pela EuroNews [Aqui!].

Agronegócio brasileiro só é competitivo porque exporta soja sem cobrar por água e biodiversidade perdidas, diz cientista

soja bbcBrasil é o maior exportador de soja do mundo. Ueslei Marcelino/Reuters

Por  Leandro Machado para BBC News Brasil em São Paulo

Para o biólogo e pesquisador Reuber Brandão, o Cerrado brasileiro vive um momento dramático: o desmatamento e o avanço descontrolado do agronegócio sobre o território estão matando nascentes de água e pequenas lagoas extremamente importantes para o abastecimento da população e a geração de energia elétrica.

Oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras, como as dos rios São Francisco e Paraná, nascem nesse que é o segundo maior bioma do país, perdendo só para a Amazônia.

Segundo Brandão, o uso da água do Cerrado para irrigação de produtos agrícolas, principalmente a soja, está diminuindo o volume do recurso nessas bacias, além de destruir boa parte da fauna e da flora que fazem do bioma a savana mais biodiversa do planeta.

“Quando você exporta uma commodity como a soja, o valor da água e da biodiversidade perdidas não está embutido no preço da semente. Por isso, o Brasil é competitivo”, disse o pesquisador em entrevista à BBC News Brasil.

Brandão aponta que boa parte do bioma já está perdido para sempre. Conservar o restante do Cerrado, diz, seria um movimento estratégico mais importante do que manter o país na posição de maior exportador de soja do mundo.

Segundo o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Cerrado perdeu 4.091,6 km² para o desmatamento entre janeiro e julho deste ano, uma alta de 28,2% em relação ao mesmo período do ano passado.

Os dados mostram que os Estados que mais desmataram estão na região conhecida como Matopiba — principal fronteira de expansão agrícola no país: Maranhão, Bahia, Tocantins e Piauí.

De acordo com o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, 45,4% do Cerrado já foi destruído para dar lugar à agropecuária.

Reuber Brandão, de 50 anos, conhece o Cerrado desde a infância, quando brincava e consumia as frutas típicas. Depois, estudou a biodiversidade da região até virar professor de manejo de fauna e de áreas silvestres da Universidade de Brasília (UnB), cidade onde nasceu. Ele também é membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).

Reuber Brandão Pesquisador Reuber Brandão, professor da UnB, estuda a biodiversidade do Cerrado. Crédito: Arquivo Pessoal.

Neste ano, o biólogo liderou uma equipe de pesquisadores em uma expedição na reserva particular Serra do Tombador, em Goiás, área que pertence à Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza desde 2007. Na área de 9 mil hectares, os cientistas encontraram 34 espécies de anfíbios e 55 répteis, boa parte desconhecida naquela região.

Reservas particulares, diz Brandão, podem ser uma das soluções para conservar a parte do Cerrado que ainda resta. “Empresários que preservam a natureza devem ser valorizados e remunerados”, diz.

Na entrevista a seguir, ele também fala sobre o consumo da água do Cerrado pelo agronegócio, o histórico da ocupação do território e como o bioma deveria ser conservado e utilizado para gerar riquezas ao Brasil.

BBC News Brasil – Por que o Cerrado é importante?

Reuber Brandão – O Cerrado é a savana mais diversa e úmida do planeta, com paisagens belíssimas como a Chapada dos Veadeiros. Quando a gente pensa em savana, pensa na África com elefantes ou na Austrália com os cangurus. Mas nenhuma dessas savanas tem a diversidade do Cerrado. Ele tem mais de 12 mil espécies de árvores.

Há uma pluviosidade (volume de chuvas) comparada à de regiões da Amazônia, mas a chuva é concentrada em poucos meses do ano. Oito das 12 bacias hidrográficas do Brasil nascem no Cerrado. E, em algumas delas, 70% de suas águas vêm do bioma, como a bacia do rio São Francisco. Pensando em grandes projetos para o país, sem a conservação do Cerrado você inviabiliza inclusive a transposição do São Francisco.

As usinas hidrelétricas dependem da água do Cerrado para gerar energia. Os processos hidrológicos do Pantanal também, porque uma parte das águas que correm por ele nasce no Cerrado. Essa combinação de biodiversidade com a quantidade de nascentes coloca o bioma em uma posição estratégica para o Brasil.

BBC News Brasil – O abastecimento de água de outras partes do país pode ser afetado pela destruição do Cerrado?

Brandão – Sim, afeta do abastecimento de água nas cidades à geração de energia. Afeta a própria água necessária para a agricultura. Não faz muito sentido a agricultura brasileira tratar a água como um insumo infinito, quando todo mundo sabe que ela pode acabar.

O próprio agronegócio tem preocupação com isso, porque já sabe que mais de 80% das bacias hidrográficas do Cerrado diminuíram sua quantidade de água.

BBC News Brasil – Como essa água está sendo afetada?

Brandão – O maior reservatório de água do planeta é o solo, onde ela permanece por muito tempo. Isso permite o crescimento da vegetação e uma grande quantidade de água nas nascentes.

Nas chapadas, as áreas mais altas cobertas pelo Cerrado, essa água é aparente em veredas, lagoas rasas e nascentes. Mas esse volume vem do afloramento do lençol freático. E esse lençol depende da água da chuva que entra no solo e da quantidade usada para outros fins.

Quando há um rebaixamento desse lençol, esses ambientes deixam de crescer. Os pequenos riachos de montanha, as veredas e lagoas de alto chapadas são fortemente afetadas pela irrigação da agricultura.

BBC News Brasil – Onde isso está acontecendo?

Brandão – No oeste da Bahia, por exemplo, o aumento da demanda por água para irrigação no sistema de pivôs centrais ocasionou o desparecimento de lagoas e veredas dos rios das Éguas, Arrojado e Formoso. Conheço veredas cuja nascente recuou mais de 10 quilômetros em relação à original. Essas áreas, que tinham a presença de corpos aquáticos na paisagem, passaram a ser muito mais secas.

E isso tem um impacto muito grande sobre fauna e flora, porque as plantas que precisam ter contato com a água do solo sofrem um estresse hídrico e começam a morrer. Há um grande mortalidade de árvores. Já a fauna foge para procurar áreas com água.

BBC News Brasil – Estamos retirando a água do Cerrado para irrigar o quê?

Brandão – Principalmente soja. O único destino de ocupação do território do Cerrado é o agronegócio. E ele tem uma demanda muito grande por água. Um único pivô central, aqueles círculos de irrigação com uma lança de 150 metros, gasta por ano a mesma quantidade de água que 4 mil famílias. Cada pivô central é uma pequena cidade — e há 1 milhão deles no Brasil.

 

Pivô central em fazenda

Pivô central utilizado para irrigar lavoura. Crédito: Embrapa

Essa água é retirada do solo com autorização do Estado, por meio de outorgas previstas na lei. Mas é bem possível que existam irrigações ilegais também. A expectativa é que o número áreas irrigadas aumente muito nos próximos anos.

Quando você exporta uma commodity como a soja, o valor da água e da biodiversidade perdidas não está embutido no preço da semente. Por isso, o Brasil é competitivo. É uma visão reducionista e míope do país, porque a commodity não tem valor agregado e depende da oscilação do mercado. De repente, o preço cai e vira uma quebradeira geral. É diferente do produto industrial.

BBC News Brasil – O que poderia ser feito de diferente?

Brandão –O Cerrado tem um potencial de biodiversidade gigantesco. Seja para bioprodutos tecnológicos, como colas, ou para alimentícios, cosméticos e medicamentosos, como analgésicos. Há proteínas do veneno da jararaca, por exemplo, com valor econômico enorme. Ou a grande quantidade de palmeiras que nunca foram estudadas. A mesma coisa com as castanhas do Cerrado, que poderiam ter um impacto de uso global.

Veja o caso do açaí, que não é do Cerrado, mas é um produto brasileiro que em pouco tempo se tornou uma commodity. Hoje, há áreas na Amazônia que estão deixando de criar búfalos para plantar açaí, o que ajuda na recomposição da floresta.

O Cerrado é único, e o Brasil ainda não acordou para o fato de que tratá-lo como mero campo de expansão da pecuária e da agricultura sem proteção garantida pela lei é colocar fogo no nosso futuro. Estamos apostando em um modelo de produção sem valor agregado que depende da ocupação de grandes territórios para ser viável. Ninguém consegue ter uma produção de soja economicamente viável com menos de 800 hectares de terra.

 

Áreas de plantação de soja ao lado do rio Formoso, na Bahia. Os círculos são pontos com pivô central de irrigação

Áreas de plantação de soja perto do rio Formoso, no oeste da Bahia. Os círculos são pontos com pivôs centrais de irrigação. Crédito: Google

BBC News Brasil – Os programas de conservação do Cerrado ficaram para trás em relação a outros biomas, como a Amazônia e a Mata Atlântica?

Brandão –Por muito tempo, o Cerrado se manteve conservado por causa de seu solo ácido. Poucas culturas agrícolas efetivamente davam certo. Outro ponto foi o isolamento geográfico. A maior parte da ocupação do Brasil estava no litoral e ao longo de grandes rios, como o Amazonas e o São Francisco.

Mas isso mudou bastante com a inauguração de Brasília, em 1960, e com o avanço tecnológico da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) no campo da calagem do solo (técnica de preparação que diminui a acidez do solo). Ele se tornou viável para ser ocupado pela agricultura, e isso aconteceu de maneira acelerada.

Quando o Brasil acordou, boa parte do Cerrado já estava destruída. Não houve a criação de grandes áreas de conservação. No próprio imaginário do brasileiro, ele fica atrás de outros biomas, como Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal. As pessoas se perguntam: ‘para que serve o Cerrado?’

BBC News Brasil – Quais áreas já foram destruídas?

Brandão – Existem Cerrados diferentes. Em cada lugar, há um ecossistema e uma biodiversidade diferentes, pois o Cerrado tem quase o tamanho da Argentina.

A parte sul do Cerrado, no Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas e São Paulo, praticamente não existe mais. Há apenas minúsculos fragmentos, muito alterados. As maiores áreas maiores ainda estão no norte, em Tocantins, Maranhão e Piauí. Elas são muito valiosas. E conservá-las é uma questão urgente para o Brasil. É preciso criar grandes áreas de conservação.

 

Cachoeira e lagoa no Cerrado

Pequenas lagoas e nascentes de água estão sendo afetadas pela destruição do Cerrado. Divulgação

BBC News Brasil – É possível recuperar algumas áreas?

BrandãoQuando ela está degradada, ainda é possível recompor grande parte do que foi perdido. Mas, se o solo é removido completamente, demoraria milhões de anos para recuperar a biodiversidade. As pessoas precisam entender que, quando você destrói uma área dessas, não tem mais volta, ela está permanentemente perdida.

BBC News Brasil – As chamadas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), que estão em expansão, podem ser uma solução para o bioma?

Brandão – O grande problema das reservas privadas é que muitos proprietários não têm condição de contribuir com uma grande quantidade de terra para conservação. Para eles, é muito caro ceder o território.

Do ponto de vista da conservação, não faz grande diferença, porque pequenos fragmentos não vão ajudar muito na preservação de mamíferos e predadores de grande porte, como onças e crocodilos, que precisam de enormes áreas e muitas presas para sobreviver.

Mas esse modelo é muito importante porque, com as reservas particulares, dá para proteger áreas singulares ou pequenos remanescentes que sobraram. Dá para unir reservas e aumentar conectividade, principalmente se a propriedade for no entorno de uma área pública protegida.

Já existem 1,5 mil reservas particulares no Brasil, então o modelo deu certo. Isso mostra que o proprietário de terra não é uma pessoa insensível à conservação da biodiversidade, ele tem a percepção do valor do recurso natural. Dono de terra que conserva a natureza precisa ser valorizado.

BBC News Brasil – O senhor acredita há no agronegócio a preocupação de que a destruição de biomas como Cerrado e Amazônia pode ser prejudicial aos negócios, como haver dificuldade de exportar produtos oriundos de áreas desmatadas?

Brandão – Os empresários da agricultura não tem um modo único de pensar. Existem grandes empresários que são instruídos, que sabem o impacto da perda de água e das mudanças climáticas. Eles não são negacionistas e estão acompanhando o mercado internacional, que está cada vez mais preocupado com a questão ambiental.

Veja o caso da Europa… Você não acha que um alemão, ao ver um rio do país secar, não está pensando no efeito estufa e no desmatamento da Amazônia? Com certeza está.

 

Área de Cerrado recém-incendiadaSegundo o MapBiomas, mais de 45% do Cerrado já foi destruído para dar lugar à agropecuária. Crédito: AGÊNCIA BRASIL

A tendência é esses mercados colocarem cada vez mais barreiras para produtos vindos do desmatamento. Então existe sim uma preocupação real dos proprietários com o futuro da atividade agrícola, porque eles são pessoas que tem um vínculo com uma produção, e eles querem deixar a terra para os filhos.

BBC News Brasil – Quais são as principais questões do Cerrado que o próximo presidente precisará enfrentar?

Brandão –A primeira coisa é aumentar a rede de áreas protegidas em pontos remanescentes importante. Outra é agilizar um projeto de lei de pagamentos aos proprietários que mantêm conservação em suas áreas. Eles precisam ser remunerados por isso. É necessário que, do ponto de vista econômico, seja interessante para o proprietário manter áreas naturais em vez de desmatar.

Um terceiro ponto é se aproximar de proprietários na região do sul do Cerrado para incrementar projetos importantes de recomposição do bioma. Também seria muito importante valorizar e empoderar as universidades e instituições de pesquisa, para que seja possível desenvolver projetos de biotecnologia a partir do Cerrado.

Você pode criar startups do Cerrado. Por exemplo, uma empresa que desenvolva um novo produto a partir do baru (espécie de árvore), ou de uma castanha, um novo tipo de adesivo a partir do extrato de uma proteína de alguma planta ou animal do Cerrado. Há um potencial imenso a ser explorado.

– Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62718299

 Vínculos da Cargill e da Bunge com fazenda contestada no Brasil por violações de direitos humanos contradizem as próximas regulamentações da UE

Screen-Shot-2022-08-29-at-12.39.14-PM-645x454

Cargill e Bunge, as duas maiores comercializadoras de soja brasileira do mundo, foram recentemente vinculadas a uma fazenda contestada no Brasil, conectando as empresas a violações de direitos humanos de comunidades tradicionais. Earthsight e De Olho nos Ruralistas, duas organizações sem fins lucrativos no Reino Unido e no Brasil, descobriram recentemente que a Cargill e a Bunge estão adquirindo soja de Brasília do Sul, uma fazenda de soja de 9.785 hectares em Mato Grosso do Sul (MS) (Figura 1) que está sendo contestado atualmente.

Os dois gigantes comerciais são os maiores exportadores de soja para a União Europeia e o Reino Unido. Entre 2014 e maio de 2022, a Bunge teria exportado mais de 17 milhões de toneladas métricas (TM) de soja para a UE, com Espanha, França e Alemanha como os principais destinatários. A Cargill exportou mais de 13,7 milhões de toneladas, com os principais destinos Espanha, Holanda e Reino Unido.

Figura 1: Fazenda brasileira contestada Brasília do Sul com instalações próximas da Cargill e Bunge

Fonte : AidEnvironment, com base no INCRA, Sicarm 2022, Funai 2020. Observe que a ADM não foi mencionada na pesquisa investigativa .

A terra em disputa é supostamente roubada de uma comunidade tradicional chamada Guarani Kaiowá, os moradores originais da terra ancestral Takuara Eles foram deslocados décadas atrás. A Funai, a agência federal brasileira encarregada de proteger os direitos indígenas, reconheceu Takuara como uma terra indígena tradicional, tornando ilegal a atividade de agronegócios de acordo com a constituição do país. No entanto, nenhuma das decisões judiciais emitidas ao longo dos anos foi conclusiva, e a demarcação final da área ainda está sendo considerada . Além da grilagem, a fazenda contestada também está ligada ao assassinato do líder Guarani Kaiowá, Marcos Veron.

As descobertas são particularmente importantes por causa dos próximos regulamentos da UE, que colocarão commodities de risco florestal, como soja e gado, sob maior escrutínio por desmatamento e violações de direitos humanos. A Diretiva de Governança Corporativa Sustentável (SCG) da UE, que visa melhorar a legislação societária e a governança corporativa, está em status de proposta desde fevereiro de 2022. De acordo com essa legislação, os comerciantes de commodities, como Cargill e Bunge, estão sujeitos a due diligence obrigatória para abordar direitos humanos adversos e impactos ambientais em suas cadeias globais de valor. As questões de direitos humanos também serão cobertas pelos requisitos de due diligence do Regulamento de Desmatamento da UE proposto, que  busca para travar a desflorestação legal e ilegal e a degradação florestal resultantes do consumo e da produção da UE. Embora os requisitos da  iniciativa SCG  “vão além dos requisitos do regulamento de desmatamento, eles se aplicam em conjunto”.

A investigação da Earthsight e De Olho nos Ruralistas também ressalta a importância da implementação e controle dos estados membros da UE sobre o não cumprimento de violações de direitos humanos sob a legislação futura. Por exemplo, como atualmente estruturada, a abordagem de direitos humanos do Regulamento de Desmatamento da UE baseia-se exclusivamente nas leis dos países produtores e não exige o atendimento de declarações e convenções internacionais sobre direitos humanos e trabalhistas. A Cargill, que confirmou relação de fornecedor com a fazenda contestada, apontou o cumprimento da legislação brasileira em resposta às alegações: não há ilegalidade na produção local.”Essa resposta (“violações de direitos humanos podem ter sido encontradas, mas nosso fornecimento não é ilegal”) pode prejudicar a eficácia das próximas regulamentações. Como diz a Earthsight: “A Cargill poderia ter adotado uma política de não causar danos e cortar os laços com quaisquer fazendas envolvidas em disputas de terras não resolvidas com comunidades indígenas e outras comunidades tradicionais, em vez de se apegar a interpretações legais equivocadas e zombar de sua própria natureza humana. compromissos de direitos ”.

Pesquisas anteriores do CRR destacaram a incerteza de como a implementação e a execução das próximas iniciativas legislativas da UE se desenvolverão na prática. Por exemplo, para o Regulamento de Desmatamento da UE, existem requisitos mínimos para verificações de conformidade. Além disso, não  é obrigatória a apresentação de uma lista pública dos operadores e comerciantes que infringiram o regulamento. Essa lista forneceria um  forte incentivo  para o cumprimento, uma vez que separaria as medidas de acusação da disposição das agências nacionais de aplicação de penalidades, aumentaria a transparência e possivelmente serviria como um impedimento para as empresas não conformes.

No entanto, o  projeto alterado  do Regulamento de Desmatamento, que ainda precisa passar por várias rodadas de votação, agora incluiu explicitamente leis e padrões internacionais sobre os direitos dos povos indígenas e direitos de posse das comunidades locais, incluindo a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas , a Declaração da ONU sobre os direitos dos camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a diretriz da OCDE sobre direitos humanos e negócios.

O caso também chama a atenção para os requisitos de rastreabilidade mais fortes sob a próxima legislação. A fazenda contestada Brasília do Sul também abastece indiretamente, por meio de intermediários, a unidade de processamento da Bunge em Dourados. Em resposta, a Bunge afirmou que “ não possui a fazenda Brasília do Sul em seu banco de dados de fornecedores ”. Essa afirmação está aberta à interpretação e também pode implicar que a Bunge não consiga rastrear a soja até a fazenda contestada por meio de uma rede de intermediários. Em 2022, a empresa informou que poderia monitorar 64% de seus volumes indiretos em regiões prioritárias. Se o Regulamento de Desmatamento da UE mantiver o requisito de geolocalização como está atualmente (de volta ao “terreno”), a origem desses suprimentos seria atestada. Empresas como a Bunge teriam que monitorar toda a sua rede de abastecimento, revelando conexões entre produção de commodities e desvios socioambientais.

O setor financeiro da UE não é afetado diretamente pelo Regulamento de Desmatamento da UE, mas, indiretamente, os financiadores provavelmente seriam afetados por riscos financeiros em suas ações, títulos e empréstimos. Esses riscos incluem riscos de valor, bem como risco de reputação. A Bunge e a Cargill recebem financiamento de instituições financeiras da UE (e do Reino Unido) que se comprometem a reportar de acordo com o Regulamento de Divulgação de Finanças Sustentáveis. Desde 2017, essas duas empresas receberam 33% de seus financiamentos identificados de bancos e investidores na Europa, dos quais dois terços são da UE-27. Do total de financiamento identificado, 44% são provenientes de linhas de crédito rotativo. Entre os 10 maiores financiadores da Bunge e Cargill, o BNP Paribas é o maior. Outros financiadores europeus no top 10 incluem Deutsche Bank, HSBC, Barclays e ING. Todos esses financiadores têm várias políticas de financiamento sustentável e podem sentir a pressão para se engajar nas alegações identificadas acima.


compass black

Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pela “Chain Reaction Research” [   ].

Sobrevoo na bacia do Rio Tapajós mostra grande destruição causada por garimpo ilegal, extração seletiva e monocultura da soja

SNY03744

Graças a um esforço do pessoal do ClimaInfo (as imagens são da lavra de Christian Braga) é possível ver os resultados de um sobrevoo realizado na bacia do Rio Tapajós, principalmente nos municípios paraenses de Itaituba, Santarém e Trairão, como mostram as imagens logo.

Este slideshow necessita de JavaScript.

O que essas imagens eixam claro é que no Pará está ocorrendo uma pilhagem muito bem organizada dentro de áreas de proteção e de terras indígenas para a qual está sendo aplicada uma grande quantidade de capital, já que se pode observar a presença de barcas, pistas de aterrissagem e instalações de garimpo que não instaláveis sem grande injeção de capitais.

As imaghens mostram ainda a presença de plantios de soja em larga extensa em terras protegidas, o que serve para desmacarar toda a suposta cadeia de “due diligence” que as grandes corporações que controlam o comércio global de grãos alegam possuir. 

Por outro lado, a grande quantidade de sedimentos chegando no Rio Tapajós e seus tributários principais é uma demonstração da magnitude da ação do garimpo ilegal de ouro, principlamente em torno do município de Itaituba, mas se estendendo por outras partes da bacia hidrográfica de um dos principais tributários do Rio Amazonas.

O somatório de todas essas coisas é que há um imenso passivo social, econômico e ambiental sendo gerado na Amazônia neste momento e que em tempo futuro irá trazer gravíssimos prejuízos para o Brasil, sobrecarregando ainda mais as populações mais pobres que servirão como uma espécie de receptáculo de todos os males que estão sendo realizados neste momento.

Enquanto isso, ficamos em um debate vazio sobre “democracia”, com os saqueadores nacionais e internacionais se aproveitando disso para avançar no processo de grilagem de terras e exploração irracional das riquezas da Amazônia. Simples assim, mas ainda trágico.

Para acessar todas as imagens desse sobrevoo, basta clicar [Aqui!].

Soja da destruição: subsidiária brasileira do grupo japonês Mitsui & Co. está envolvida em conflito fundiário no Matopiba

Comunidade tradicional do oeste baiano relata intimidações e ameaças relacionadas à ‘grilagem verde’ do seu território; investigação da Repórter Brasil revela conexões entre a Agrícola Xingu, uma das envolvidas na disputa, com fornecedores globais do grão

matopiba 1

Por André Campos, Hélen Freitas e Poliana Dallabrida para a “Repórter Brasil”

Localizada na zona rural do município de Correntina, no oeste da Bahia, a comunidade do Capão do Modesto está no centro de um conflito fundiário que envolve ameaças de morte, intimidação e destruição de bens comunitários. Do outro lado dessa disputa estão empresas produtoras de soja, milho e algodão com atuação no Matopiba – nova fronteira agrícola brasileira nos estados do Maranhão, Piauí, Bahia e Tocantins. Elas reivindicam a posse de uma área ocupada há mais de 300 anos pelos moradores do Capão do Modesto, segundo membros da comunidade local.

A Agrícola Xingu, uma das empresas envolvidas no conflito, é fornecedora de soja de importantes tradings multinacionais responsáveis pela venda da commodity para países da Europa, Ásia e Estados Unidos. Também conhecida como Xingu Agri, a companhia é uma subsidiária brasileira do grupo Mitsui & Co, um dos maiores conglomerados econômicos do Japão, e apontada como uma das maiores latifundiárias no Matopiba.

Uma investigação da Repórter Brasil revela novas conexões entre a empresa e gigantes do agronegócio. Documentos obtidos pela reportagem mostram que, em 2021, soja oriunda da Agrícola Xingu abasteceu os silos da ALZ Grãos, uma joint-venture criada pela Amaggi, pela companhia francesa Louis Dreyfus Company (LDC) e pela subsidiária local do grupo japonês Zen-Noh Grain. A operação conjunta entre as multinacionais exporta soja e milho através de um terminal portuário próprio no Maranhão.

Cercas instaladas por empresas do agronegócio dividem território ocupado há mais de 300 anos por moradores do Capão do Modesto, em Correntina (BA). (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Os grãos da Agrícola Xingu haviam sido adquiridos originalmente por uma outra empresa intermediária: a Nutrade Comercial Exportadora, subsidiária do conglomerado suíço Syngenta, um dos principais fabricantes de agrotóxicos e sementes para o agro brasileiro. Por meio da Nutrade, o grupo Syngenta atua nas chamadas operações “barter”, nas quais commodities como a soja são utilizadas como pagamento por insumos repassados anteriormente aos fazendeiros.

Repórter Brasil obteve a cópia de um contrato prevendo a entrega, em 2021, de quase 3 mil toneladas de soja da Nutrade para a ALZ Grãos. O produto, segundo o documento, seria oriundo dos armazéns Agrícola Xingu em São Desidério, município vizinho a Correntina.

Procurada, a Agrícola Xingu afirmou que “atua firmemente na preservação do meio ambiente” e que possui os documentos que provam a posse da área em disputa. A empresa disse que a comunidade do Capão do Modesto tem um “possível interesse” sobre a propriedade e alegou que não existem documentos que comprovem o seu direito sobre a área. O posicionamento completo da empresa pode ser lido na íntegra aqui.

Já a Nutrade disse que a fazenda de origem da soja fornecida pela Agrícola Xingu e a propriedade foco de conflito fundiário são “áreas com matrículas distintas”. A trading afirmou ainda que adota um processo de verificação de todas as áreas conectadas às negociações firmadas, “atentando integralmente a todos os regramentos ambientais e trabalhistas”. Leia aqui o posicionamento da empresa na íntegra.

A ALZ Grãos declarou que, no ato da compra, não verificou quaisquer restrições socioambientais ou conflitos fundiários sobre a área de origem da soja adquirida em negociações com a Nutrade. Afirmou ainda não ter relação comercial com a Agrícola Xingu. Trata-se, conforme descrito pela Repórter Brasil, de um caso de fornecimento indireto, tendo em vista que a aquisição da soja ocorreu por meio de relações comerciais estabelecidas com outra tradingAcesse aqui a resposta completa.

Grilagem Verde

A disputa com a comunidade do Capão do Modesto teve início a partir dos anos 2000, quando empresas produtoras de commodities com atuação no Matopiba passaram a reivindicar a titularidade de terras preservadas na zona rural de Correntina.

São áreas hoje utilizadas para a compensação de passivos ambientais em fazendas da região. Segundo o Código Florestal brasileiro, os imóveis rurais localizados no Cerrado devem manter ao menos 20% de suas terras com a mata nativa original. Mas, quando há desmatamento acima desse limite, a lei permite compensar o passivo por meio da aquisição de áreas preservadas fora da propriedade.

É justamente uma dessas áreas que está sobreposta às terras reivindicadas pela comunidade de fundo e fecho de pasto do Capão do Modesto. Os “fecheiros”, como são conhecidos os integrantes dessa comunidade tradicional, desenvolvem métodos próprios de agricultura de subsistência, com o cultivo de roças, colheita de frutos nativos do Cerrado e pastoreio do gado, criados livremente, sem cercas.

Vista aérea do Capão do Modesto; moradores afirmam que área usada como reserva legal de empresas privadas está sobreposta às terras da comunidade. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Apesar de a Constituição do Estado da Bahia de 1989 prever o reconhecimento de comunidades tradicionais, como as de fundo e fecho de pasto, e cessão de certificados de posse dessas áreas, muitas ainda não foram regularizadas. Nesse cenário, os conflitos por terra se multiplicam, gerando um verdadeiro caos fundiário.

Advogados e ativistas locais ouvidos pela Repórter Brasil avaliam que a área de preservação sobreposta ao Capão do Modesto foi adquirida de forma fraudulenta. Segundo relatório da organização Global Witness, sua aquisição faz parte de um processo de “grilagem verde”, em que terras tradicionalmente ocupadas por comunidades locais são usurpadas para servirem como reservas legais para empresas do agronegócio possuidoras de passivos ambientais. 

O território, que antes era usado pelos “fecheiros” para o pastoreio do gado, agora possui cercas e placas que proíbem a circulação dos animais e dos integrantes do Capão do Modesto. Ele é administrado como um condomínio por nove empreendimentos agropecuários: logo depois da porteira é possível ver placas que identificam o local como área de reserva legal dessas empresas.

Nove empreendimentos agropecuários alegam a posse de reservas legais na zona rural de Correntina; 7 deles entraram com processos contra ‘fecheiros’ do Capão do Modesto. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Repórter Brasil esteve na comunidade e conversou com moradores que relataram uma rotina de ameaças por parte das equipes de segurança privada contratadas pelas empresas para fazer a vigilância da área. “As fazendas têm pistoleiros que você não sabe nem quem é o patrão. Junta o grupo e vai dar pressão em você”, denuncia Vanderlino Barbosa, presidente da associação da comunidade de fundo e fecho de pasto do Capão do Modesto.

“As empresas chegaram, invadiram, meteram as máquinas arrancando os benefícios que a gente tinha dentro. Botando pressão, tirando suas liberdades”, pontua Barbosa. “Onde tinha um bebedouro, eles chegavam, ficavam por ali para espantar o gado, para você tomar prejuízo e desistir daquela área”, complementa.

Dentro do condomínio, a Agrícola Xingu afirma ter a posse da Fazenda Tabuleiro VII, uma área de 3 mil hectares que faz divisa com a propriedade da agricultora Geni Silva, bisneta do Seu Modesto, “fecheiro” que dá nome à comunidade tradicional.

Desde 2015, membros da comunidade já registraram mais de dez boletins de ocorrências relatando as intimidações sofridas. As ameaças aos “fecheiros” não são apenas físicas, mas também judiciais. Em novembro de 2017, parte dos produtores rurais que alegam ser donos das reservas legais que circundam o Capão do Modesto entraram com uma ação no Tribunal de Justiça da Bahia contra membros da comunidade.

Casal Limírio dos Santos e Geni Silva, bisneta do Seu Modesto, ‘fecheiro’ que dá nome à comunidade tradicional. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Segundo as empresas, integrantes da comunidade de fundo e fecho de pasto do Capão do Modesto estariam invadindo suas terras e destruindo a vegetação nativa. O objetivo do processo é impedir que a comunidade realize a soltura do gado na área. Para os “fecheiros” do Capão do Modesto, essa é mais uma forma de pressioná-los a deixarem suas terras. 

Em março de 2022, uma decisão judicial ordenou a desapropriação da área, reconhecendo a posse tradicional da comunidade. Poucos dias depois, no entanto, houve a revogação da decisão, e as terras continuam sob posse das empresas. O caso segue pendente de decisão final na Justiça.

Cadeia de negócios contaminada

No oeste baiano, a Agrícola Xingu é dona de diversas fazendas destinadas à produção de grãos e algodão. Somadas, as áreas de cultivo da empresa entre os municípios de Correntina e São Desidério teriam uma extensão de 67,9 mil hectares, segundo relatório publicado pela organização Global Witness. A expansão das atividades da empresa na região ocorreu, em grande medida, por meio do desmatamento de vegetação nativa,  segundo informações da organização Chain Reaction Research. Entre 2000 e 2017, a companhia teria desmatado 32,1 mil hectares de Cerrado.

Já a ALZ Grãos, um dos elos no escoamento da soja oriunda da Agricola Xingu, exporta o produto para outras grandes tradings do setor, segundo dados alfandegários acessados pela Repórter Brasil. Há registros, por exemplo, de vendas para subsidiárias da Cargill na Ásia e para o grupo chinês Cofco. Na Europa, a ALZ Grãos exportou o grão para subsidiárias da Bunge ao longo dos últimos dois anos. Um dos principais destinos é a Espanha, onde a Bunge atua em diversos mercados, inclusive na produção de biodiesel. A Espanha, ao lado da Alemanha, são os dois principais produtores europeus de ração animal. É na alimentação de bois, aves e suínos que a soja tem o seu maior uso. 

Em nota, a Bunge afirmou que não comenta relações comerciais com produtores específicos, mas disse estar “comprometida em alcançar cadeias de suprimentos livres de desmatamento em 2025”. Em relação às compras diretas, a companhia afirma ter “100% de rastreabilidade e monitoramento” e disse estar “atuando fortemente para impulsionar o setor a fortalecer a rastreabilidade e o monitoramento das compras indiretas”.

Por meio da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), as tradings Cargill e Cofco afirmaram que “não compram soja de áreas desmatadas ilegalmente” e que “apoiam os seus fornecedores indiretos buscando, constantemente, soluções operacionais e avaliando metodologias para engajamento destes fornecedores aos seus protocolos”. Confira as respostas das empresas na íntegra.


compass black

Este texto foi originalmente publicado pela “Repórter Brasil” [Aqui!].