Circulação de águas do Atlântico pode enfraquecer de modo inédito até 2100 e impactar chuva na Amazônia

Combinando dados de pesquisa de campo com projeções de modelos climáticos, estudo reconstituiu a atividade da Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico – um dos principais motores do clima terrestre – ao longo de todo o Holoceno. Cenários projetados para o futuro não têm precedentes nos últimos 6.500 anos

Equipe reuniu cientistas da Alemanha, da Suíça e do Brasil: efeitos mais graves podem ocorrer no norte da Amazônia, com redução drástica do regime de chuvas (imagem: CEN/Universität Hamburg)

Por José Tadeu Arantes | Agência FAPESP  

A Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico – conhecida pela sigla em inglês Amoc (Atlantic Meridional Overturning Circulation) – é um dos principais “motores” do clima terrestre. Ela funciona como uma esteira oceânica que transporta calor e nutrientes, conectando águas superficiais da porção tropical com águas profundas da região norte. Alterações nesse sistema sempre estiveram associadas a mudanças abruptas do clima global, como as que marcaram a última era glacial.

Um novo estudo mostra que, nos últimos 6.500 anos, a Amoc se manteve estável, após um período de oscilações durante o início do Holoceno. Mas que essa estabilidade se encontra agora ameaçada. Combinando dados de pesquisa de campo com projeções dos melhores modelos climáticos, o trabalho indica que as mudanças causadas pela ação humana podem levar a um enfraquecimento da circulação sem precedentes no período recente da história da Terra. O norte da Amazônia, justamente a parte mais preservada da floresta, pode ser fortemente afetado, com uma drástica redução do regime de chuvas.

Os resultados foram publicados no periódico Nature Communications.

A equipe internacional que realizou o estudo reuniu cientistas da Alemanha, da Suíça e do Brasil. Utilizando testemunhos de sedimentos marinhos coletados em diferentes pontos do Atlântico Norte e análises de elementos radioativos – tório-230 e protactínio-231 –, os pesquisadores reconstruíram quantitativamente a intensidade da Amoc ao longo de todo o Holoceno – os últimos 12 mil anos.

“Esses elementos radioativos são produzidos de forma constante na coluna d’água a partir do urânio. Como o tório se fixa rapidamente em partículas, enquanto o protactínio permanece mais tempo em circulação, a razão protactínio-tório registrada nos sedimentos fornece um ‘proxy’ da intensidade da circulação oceânica. Valores mais altos indicam enfraquecimento, e valores mais baixos, intensificação”, explica Cristiano Mazur Chiessi, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e coautor do estudo.


Representação esquemática da Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (seta em azul claro e vermelho), que transporta, perto da superfície, águas quentes do sul para o norte; e, em profundidades intermediárias, águas frias do norte para o sul. O desenho também mostra uma outra célula (seta em azul escuro), que transporta águas em grande profundidade (imagem: croqui de Cristiano Mazur Chiessi a partir de informações de Voigt et al., 2017)

Para transformar os dados de campo da razão protactínio-tório em valores de fluxo de água, a equipe utilizou o Bern3D, um modelo do sistema terrestre desenvolvido na Universidade de Berna, na Suíça, que simula oceanos, atmosfera e ciclos biogeoquímicos, permitindo converter registros de sedimentos em estimativas quantitativas da circulação oceânica. Isso permitiu estimar a intensidade da circulação em Sverdrups (Sv) – 1 Sv equivalente a 1 bilhão de litros por segundo.

Os resultados mostraram que, após o fim da última glaciação, a Amoc levou cerca de 2 mil anos para se recuperar do estado enfraquecido. Entre 9,2 mil e 8 mil anos atrás, sofreu novo declínio, associado ao aporte de água doce no Atlântico Norte decorrente do derretimento de geleiras e lagos glaciais, como o Lago Agassiz, no Canadá e nos EUA. Esse período incluiu o chamado “evento 8,2 ka”, registrado em testemunhos de gelo da Groenlândia como um dos episódios de resfriamento mais intensos do Holoceno. A partir de 6,5 mil anos atrás, no entanto, a circulação se estabilizou em torno de 18 Sv. E manteve essa intensidade até o presente.

“Reconstituímos o avanço das águas profundas do Atlântico Norte rumo ao Atlântico Sul ao longo de 11.500 anos. E, nos últimos 6.500 anos, não detectamos nenhuma oscilação maior, minimamente próxima daquilo que está projetado para 2100”, afirma Chiessi. “O cenário futuro é muito preocupante. E deve ser levado a sério tanto pelos governos quanto pela sociedade civil, incluída a comunidade científica.”

Segundo o pesquisador, o enfraquecimento projetado vai causar mudanças nas chuvas de todo o cinturão tropical do planeta, especialmente na América do Sul e na África, mas também afetando o sistema de monções da Índia e do Sudeste Asiático.

Impacto sobre a Amazônia

Um dos impactos mais importantes deverá ocorrer na Amazônia. “Projetamos uma marcante diminuição das chuvas no norte da Amazônia, justamente a região mais preservada da floresta. Esse efeito poderá ocorrer porque as chuvas equatoriais tenderão a se deslocar para o sul com o enfraquecimento da circulação do Atlântico. Com isso, o norte da Amazônia, abrangendo áreas do Brasil, da Colômbia, da Venezuela e das Guianas, poderá enfrentar reduções significativas na pluviosidade”, projeta Chiessi.

O pesquisador enfatiza que a gravidade desse cenário é ainda maior porque se trata da porção mais preservada da floresta. Diferentemente do sul e do leste amazônicos, onde o desmatamento e a degradação já avançaram fortemente, o norte tem funcionado como um “porto seguro” de biodiversidade. “É justamente nessa região, até agora menos impactada, que a mudança climática poderá impor uma vulnerabilidade nova e dramática”, observa.


Coleta de coluna sedimentar do fundo do Mar de Labrador, no Atlântico Norte, entre o Canadá e a Groenlândia. A coluna sedimentar coletada nesse local serviu como base para o artigo científico (foto: Stefan Mulitza)

Estudo anterior, publicado em 2024 por Thomas Kenji Akabane e colaboradores, entre eles o próprio Chiessi, já havia alertado para essa possibilidade. Por meio de registros de pólen e carvão microscópico em sedimentos marinhos, os cientistas mostraram nesse trabalho que enfraquecimentos passados da Amoc levaram à expansão de vegetação sazonal em detrimento das florestas úmidas do norte amazônico. E os modelos indicam que um enfraquecimento semelhante no futuro produziria impactos ainda maiores, uma vez que seriam agravados pelo desmatamento e pelas queimadas em outras partes da bacia.

Ponto de não retorno?O arrefecimento da Amoc poderá configurar um ponto de não retorno no sistema climático global. Se confirmadas as projeções, ocorrerá uma ruptura sem precedentes na circulação oceânica que sustenta o equilíbrio do clima do planeta. Há consenso entre os pesquisadores especializados de que o enfraquecimento constitui uma clara tendência. Mas os dados ainda não permitem saber se já está ocorrendo ou não. “Os monitoramentos diretos começaram apenas em 2004 e o oceano responde mais lentamente do que a atmosfera. Por isso, os registros são ainda insuficientes para uma resposta conclusiva. Porém, apesar dessa incerteza, a urgência de agir é inegociável. Ainda existe tempo, mas nossas ações precisam ser robustas, rápidas e conectadas, envolvendo governos e sociedade civil”, alerta Chiessi.

Como já foi dito em evento realizado na FAPESP, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), que ocorrerá em novembro deste ano em Belém, no Pará, constitui uma janela de oportunidade que não pode ser desperdiçada (leia mais em: agencia.fapesp.br/54611 e agencia.fapesp.br/55727).

Os dois estudos contaram com apoio da FAPESP por meio dos projetos 18/15123-419/19948-0 21/13129-8.

O artigo Low variability of the Atlantic Meridional Overturning Circulation throughout the Holocene pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41467-025-61793-z.


Fonte: Agência Fapesp

Desmatamento reduz 74% das chuvas e aumenta em 16% a temperatura na Amazônia em época de seca

Pesquisa liderada por cientistas da USP quantifica, pela primeira vez, impactos da perda da floresta e das mudanças climáticas globais no bioma 

Área de desmatamento de floresta próxima ao rio Negro (2016): cientistas alertam que, se o desmatamento continuar sem controle, a extrapolação dos resultados sugere um declínio adicional na precipitação total durante a estação seca e maior elevação da temperatura (foto: Léo Ramos Chaves/Pesquisa FAPESP)

Luciana Constantino | Agência FAPESP

O desmatamento da Amazônia brasileira é responsável por cerca de 74,5% da redução de chuvas e por 16,5% do aumento da temperatura do bioma nos meses de seca. Pela primeira vez, pesquisadores conseguiram quantificar os impactos da perda de vegetação e das mudanças climáticas globais sobre a floresta.

Liderado por cientistas da Universidade de São Paulo (USP), o estudo traz resultados fundamentais para orientar estratégias eficazes de mitigação e adaptação, temas-alvo da Conferência do Clima das Nações Unidas, a COP30, marcada para novembro em Belém (PA). Os resultados do trabalho estão publicados na última edição da Nature Communications e são destaque da capa da revista.

Os cientistas analisaram dados ambientais, de mudanças atmosféricas e de cobertura da terra de aproximadamente 2,6 milhões de quilômetros quadrados (km2) – 29 blocos com área de cerca de 300 km por 300 km cada um – na Amazônia Legal brasileira em um período de 35 anos (1985 a 2020). Utilizando modelos estatísticos paramétricos, destrincharam os efeitos da perda florestal e das alterações na temperatura, na precipitação e nas taxas de mistura de gases de efeito estufa.

As chuvas apresentaram uma redução de cerca de 21 milímetros (mm) na estação seca por ano, com o desmatamento contribuindo para uma diminuição de 15,8 mm. Já a temperatura máxima aumentou cerca de 2 °C, sendo 16,5% atribuídos ao efeito da perda florestal e o restante às mudanças climáticas globais.

“Vários artigos científicos sobre a Amazônia já vêm mostrando que a temperatura está mais alta, que a chuva tem diminuído e a estação seca aumentou, mas ainda não havia a separação do efeito das mudanças climáticas, causadas principalmente pela poluição de países do hemisfério Norte, e do desmatamento provocado pelo próprio Brasil. Por meio desse estudo, conseguimos separar e dar peso para cada um desses componentes, praticamente mostrando uma espécie de ‘conta a pagar’”, resume o professor Luiz Augusto Toledo Machado.

Pesquisador do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) e colaborador do Departamento de Química do Instituto Max Planck, na Alemanha, Machado diz à Agência FAPESP que os resultados reforçam a importância da conservação da floresta em pé para manter a resiliência climática.

Isso porque a pesquisa mostrou que o impacto do desmatamento é mais intenso nos estágios iniciais. As maiores mudanças no clima local ocorrem já nos primeiros 10% a 40% de perda da cobertura florestal.

“Os efeitos das transformações, principalmente na temperatura e precipitação, são muito mais importantes nas primeiras porcentagens de desmatamento. Ou seja, temos que preservar a floresta, isso fica muito claro. Não podemos transformá-la em outra coisa, como áreas de pastagem. Se houver algum tipo de exploração, precisa ser de forma sustentável”, complementa o professor Marco Aurélio Franco, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.

Franco é primeiro autor do artigo e recebeu bolsa de pós-doutorado da FAPESP, que também apoiou o trabalho por meio de outra bolsa, do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI) e de um projeto vinculado ao Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.

O programa é desenvolvido em parceria com a Academia Chinesa de Ciências e tem a pesquisadora Xiyan Xu como uma das responsáveis no exterior e autora do trabalho.

Sensível equilíbrio do ecossistema

A Amazônia, como a maior e mais biodiversa floresta tropical do mundo, tem um importante papel na regulação do clima global. É responsável, por exemplo, pelos chamados “rios voadores” – cursos de água invisíveis que circulam pela atmosfera e abastecem outros biomas, como o Cerrado. As árvores retiram água do solo por meio das raízes, transportam até as folhas e a liberam para a atmosfera em forma de vapor.

No final do ano passado, um grupo internacional de pesquisadores, com a participação de Machado e do professor Paulo Artaxo, também do IF-USP, publicou um estudo na Nature mostrando, pela primeira vez, o mecanismo físico-químico que explica o complexo sistema de formação de chuvas no bioma. Envolve a produção de nanopartículas de aerossóis, descargas elétricas e reações químicas em altitudes elevadas, ocorridas entre a noite e o dia, resultando em uma espécie de “máquina” de aerossóis que vão produzir nuvens (leia mais em: agencia.fapesp.br/53490).

No entanto, o desmatamento e os processos de degradação da floresta contribuem com a alteração desse ciclo de chuvas, provocando a intensificação da estação seca em escala local e aumentando os períodos de incêndios florestais. A Amazônia brasileira perdeu 14% da vegetação nativa entre 1985 e 2023, de acordo com dados do MapBiomas, atingindo uma área de 553 mil km2, o equivalente ao território da França. A pastagem foi a principal causa no período. Mesmo chegando ao segundo menor nível de desmate entre agosto de 2024 e julho de 2025 – uma área de 4.495 km² –, o desafio tem sido conter a degradação, especialmente provocada pelo fogo.

A estação seca – entre junho e novembro – é o período em que os impactos do desmatamento são mais pronunciados, principalmente sobre a chuva. Os efeitos cumulativos intensificam mais a sazonalidade.

Destrinchando os dados

Para chegar aos resultados, os cientistas trabalharam com equações paramétricas de superfície considerando tanto as variações anuais quanto do desmatamento. Elas permitiram separar as contribuições específicas das mudanças climáticas globais e da perda de vegetação. Usaram ainda conjuntos de dados de sensoriamento remoto e de reanálises de longo prazo, incluindo as classificações de uso da terra produzidas pelo MapBiomas.

Além dos achados relacionados à chuva e à temperatura, o grupo analisou dados de gases de efeito estufa. Concluiu que, ao longo do período de 35 anos, o aumento nas taxas de dióxido de carbono (CO) e de metano (CH) foi impulsionado praticamente pelas emissões globais (mais de 99%). Foi observada uma alta de cerca de 87 partes por milhão (ppm) para CO e cerca de 167 partes por bilhão (ppb) para CH.


Foram analisados dados ambientais, de mudanças atmosféricas e de cobertura da terra de aproximadamente 2,6 milhões de km2 na Amazônia Legal brasileira em um período de 35 anos (1985 a 2020) (gráfico: Marco Aurélio Franco et al./Nature Comm., versão)

“Em um primeiro momento, esse resultado parecia antagônico com outros artigos que mostram o impacto do desmatamento na redução da capacidade de a floresta retirar CO2 da atmosfera. Mas não é porque a concentração de CO2 é algo em grande escala. Naqueles eram medições locais de fluxo de CO2. Quando se trata de concentração, o aumento é predominantemente devido às emissões globais”, explica Machado.

No artigo, os pesquisadores alertam que, se o desmatamento continuar sem controle, a extrapolação dos resultados sugere um declínio adicional na precipitação total durante a estação seca e maior elevação da temperatura.

Estudos recentes indicam que o desmatamento na Amazônia já está alterando os padrões da monção sul-americana (fenômeno climático que leva chuvas abundantes para o centro e Sudeste do Brasil durante o verão), resultando em condições mais secas que podem comprometer a resiliência de longo prazo da floresta. Eventos extremos, como as secas de 2023 e 2024, só agravam a situação.

O artigo How climate change and deforestation interact in the transformation of the Amazon rainforest pode ser lido em www.nature.com/articles/s41467-025-63156-0.


Fonte: Agência Fapesp

Chuvas de 2024 no Rio Grande do Sul provocaram o maior evento de deslizamentos de terra no Brasil

Deslizamentos de terra no RS

A equipe identificou 16.862 pontos de início de deslizamento, distribuídos ao longo de cerca de 18 mil quadrados 

As fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024 ocasionaram o maior evento de deslizamentos de terra já registrado no Brasil. É o que revela estudo publicado na quinta (28) na revista Landslides. A pesquisa teve coordenação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), envolvendo instituições nacionais e internacionais como o Instituto Federal de Goiás (IFG) e o Serviço Geológico do Brasil (SGB), e mapeou a ocorrência de 15.376 deslizamentos. As conclusões podem contribuir para a formulação de políticas e estratégias preventivas, bem como planos de ação para novas ocorrências semelhantes.

Para enfrentar um dos maiores desafios da gestão de deslizamentos no Brasil, a falta de inventários abrangentes e padronizados, a equipe organizou um banco de imagens de satélite de alta resolução registradas no período estudado. Ao todo, 474 imagens, captadas entre 4 de maio e 31 de agosto de 2024, foram analisadas e utilizadas para caracterizar os deslizamentos.

A equipe identificou 16.862 pontos de início de deslizamento, distribuídos ao longo de cerca de 18 mil quilômetros quadrados em 150 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul. Isso corresponde a 30% das cidades gaúchas. Além dos deslizamentos, as chuvas de 2024 provocaram inundações, e 96% das cidades gaúchas foram atingidas por pelo menos uma dessas consequências do evento extremo – que afetou quase 2,4 milhões de habitantes, desalojou mais de 600 mil pessoas e resultou em 182 mortes. Clódis de Oliveira Andrades-Filho, professor do Instituto de Geociências da UFRGS e autor do estudo, explica que a magnitude do acontecimento está relacionada ao extraordinário acumulado de chuvas de abril a maio de 2024, e que a maior parte das encostas íngremes do estado se encontrava na área exposta à precipitação.

De acordo com o levantamento, os pontos de início dos deslizamentos ocorreram principalmente em encostas voltadas para norte, norte-nordeste e noroeste-norte, áreas com cobertura vegetal mais esparsas comparadas às voltadas para o sul. Esses setores também sofrem maior pressão de intervenções humanas, como desmatamento, cortes para estradas e construções residenciais. A combinação desses fatores reduz a estabilidade das encostas e ajuda a explicar a concentração observada de deslizamentos nessa orientação. “Estas características, juntamente com demais características do relevo, como o grau de declividade, permitem indicar quais aspectos do terreno predominam nas áreas com maior ocorrência de deslizamentos”, explica Andrades-Filho. “Isso é essencial para estabelecer novos modelos e mapas que indiquem as áreas dos municípios com maior exposição a deslizamentos em grandes episódios de chuva”, defende.

O autor também destaca a identificação de 2.430 trechos de estradas afetados por deslizamentos, resultando no isolamento de comunidades rurais e cidades, além de mortes, feridos e perdas materiais. Segundo a equipe, considerar as características do terreno e o risco geológico de cada região no planejamento e na adaptação das vias pode ser decisivo para evitar consequências mais severas em eventos extremos.

Além de apoiar a identificação de áreas suscetíveis e embasar planos de gestão de riscos, a publicação pode orientar estratégias de recuperação nas regiões afetadas. “Os resultados ainda oferecem suporte para a formação de profissionais voltados à gestão de riscos de desastres, sobretudo em capacitação geotecnológica, além de contribuir para elaboração e implementação de ações de educação e monitoramento comunitário”, explica Andrades-Filho. O pesquisador destaca que a equipe segue empenhada em apoiar esses objetivos por meio de ações como o uso de novas tecnologias para aprimorar o mapeamento, incluindo inteligência artificial, e esforços para tornar a prevenção mais eficiente. Isso inclui desde a comunicação de risco adaptada às condições de comunidades rurais até o planejamento de rotas de fuga e o monitoramento da estabilidade de terrenos.


Fonte: Agência Bori 

Chuvas RS 2025: quem será o Caramelo da vez?

Nas chuvas de 2024, o cavalo Caramelo simbolizou a resistência contra as chuvas devastadoras que se abateram sobre o estado do Rio Grande do Sul

Por João Anschau*

A saudosa professora Iracema foi um ser que surgiu em minha vida sem pedir licença para ficar. Ocupou a janela, mesmo tendo chegado atrasada na lista dos notáveis influenciadores que estava sendo construída no meu imaginário. Nem por isso teve sua importância diminuída. Era dura, mas nunca perdeu a ternura pela escolha de um ofício, na época mais valorizado e respeitado, e mantinha o mesmo sentimento com seus rebentos adotados. Certa vez, numa prova de matemática – minha matéria favorita na época – me deu zero. Algo “improvável” de acontecer, mas o poder da caneta era dela. Recebi a avaliação, voltei para minha mesa e conferi uma por uma das questões. Todas estavam certas. Retornei e disse para ela que havia um erro. Ela concordou. 

– Mas a falha foi sua professora, retruquei. 

– O que diz o enunciado? 

– Desenvolva as questões. 

– O que você fez? 

– Resolvi as questões e as respostas estão corretas. 

– Você às resolveu diretamente, sem detalhá-las. 

– Mas a senhora sabe que eu sei. 

– Eu te conheço, mas se outra professora tivesse aplicado a prova, ela poderia concluir que você copiou as respostas de um coleguinha.

– Mas eu não colei. 

– Mas também não elaborou.

Com as paredes vertendo água internamente, devido ao excesso de umidade, acompanho o noticiário oficial da tragédia chuvosa que mais uma vez atinge centenas de municípios gaúchos. E entre um e outro boletim, aparentando um “Não vale a pena ver de novo”, reprise de 2023/24, um repórter quase comemora o fato de não termos ainda atingido os mesmos níveis de chuvas de maio do ano passado. Você não leu errado. Informa assim: “comemorando.”

Quem mora no extremo sul do Brasil sabe que o ocorrido por aqui há mais de um ano foi tratado com irresponsabilidade por quem deveria “informar e mediar o debate” acerca das volumosas chuvas. Sonho meu. Reconheço. O básico, causas e consequências, não estava na pauta. Campanhas publicitárias ufanistas — até filme idealizado pela Secretaria de Comunicação do governo gaúcho foi lançado, no qual se enaltecia o nosso ‘novo Bento Gonçalves Leite’ — brotaram em todos os cantos do Rio Grande do Sul (RS). Era um tal de força dos gaúchos pra cá, pra cima deles pra lá, que, de tanto floreio, dava pra desconfiar dos rumos que tomava a discussão a respeito de crises climáticas provocadas pelos mesmos de sempre. Romantização e normalização do absurdo foram a tônica sem gás. A mídia hegemônica que tem lado – o do lucro, e dane-se a nossa vivência harmoniosa (catástrofes também enchem os cofres dos patrões) – parecia ter apenas um objetivo: criar novos ‘heróis’ conhecidos, ou nem tão anônimos assim. Agora está em busca de um novo “Caramelo” para chamar de seu. E as vidas ceifadas? E as vidas ceifadas? Os capitalistas guascas colocam na rubrica ‘danos necessários’ e (serão) cobertos pelo erário mais adiante.

O mundo de Cristina e a lei de Murphy… “Parece mentira que estamos passando por isso novamente”. Essa frase foi disparada pela apresentadora do telejornal mais visto no RS. Não foi uma estagiária fazendo um programa experimental, no qual até se admitem erros pontuais que não prejudiquem o produto final. E acreditem, a jornalista não corou. Foi na cara dura mesmo. Abro agora a seção “erraram”.  Dona Cristina, o hoje foi previsto ontem por quem nos avisa há muito. Pesquisadoras e pesquisadores não fazem exercícios de futurologia lendo a borra do café. A ciência usa métodos racionais e nos apresenta cenários. São pessoas que, mesmo atacadas e tratadas como delinquentes, continuam a executar a tarefa de iluminar a estupidez humana — de nada adianta ter, como bem lembrou Jorge Furtado em “Ilha das Flores”, o telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, se a desigualdade continuar a ser a nossa maior “virtude”. Não há problema com a sua memória que, evidentemente, é seletiva e atende a interesses distintos da sua audiência. E acredito que pela sua idade não deve haver um diagnóstico de Alzheimer que possa justificar seu esquecimento. A senhora representa sem questionamentos os fiadores e patrocinadores da destruição do bem comum.

Em abril deste ano, o cais do porto, um dos espaços mais atingidos, em Porto Alegre, pelas águas em 2024, foi palco de um evento que discutiu empreendedorismo e inovação. O South Summit Brazil 2025 foi uma festa,  literalmente. Um carnaval sem malemolência fora de época. Nem parecia que naquela área, há alguns meses, a natureza mandava recados, incompreendidos por quem decide e aparenta ter problemas cognitivos, auditivos e visuais. Tudo o que era mostrado agora tinha glamour, respirava um ar de normalidade e tentava dar contornos de superação, alegria e novas oportunidades. Durante vários dias, em quase todos os espaços de jornalismo/entretenimento, éramos inundados — não é um trocadilho — com notícias incessantes a respeito da celebração — numa análise mais cuidadosa, aqueles informes pareciam peças criadas por relações públicas e marqueteiros do patrocinador maior, o Governo gaúcho. O meio ambiente, e sua composição cada dia mais apagada, inexistia para os olhos ligados de pessoas descoladas do mundo de verdade, aquele no qual inundações mataram, desalojaram e apagaram histórias. 

E o gerente governador Eduardo Leite — mesmo sem o uso do colete laranja vibrante, sempre alinhado, limpinho e bem passado — concedeu entrevista à sua rede particular de comunicação – leia-se concessão pública de TV e rádio. Entre as platitudes proferidas, Edú disse que em um ano não se resolve tudo. Invejem, Brasil, nosso “Nostradamus” de boutique. Temos um genuíno visionário e difusor de sentenças dignas de crianças em processo inicial de alfabetização. Um luxo no meio do lixo acumulado nas casas dos desafortunados de plantão. Fiquei de butuca aguardando que o gestor Leite anunciasse uma nova e “profícua” viagem, juntamente com o prefeito do chapéu de palha, Sebastião Melo, para a Holanda e aprender com o primeiro mundo como se faz. Concluo, depois de doses de “sabedoria” governamental, que a experiência acumulada por pesquisadores e especialistas gaúchos no tema não produz diárias e fotos para o próximo álbum — 2026 logo ali na frente — de estadista gourmet. A ciência gaudéria não fala holandês e se convidada a sentar-se à mesa, pode azedar o leite. Por isso, continuam as apostas em soluções mágicas, paliativas e totalmente distantes das reais necessidades que o momento exige. 

Na quarta-feira, dia 18, início da tarde, durante o retorno da cidade de Ijuí, noroeste do RS, tive a companhia, em aproximadamente 40 kms, de muita chuva. Água na pista, misturada com terra, era normal. Lavouras encharcadas, idem. Curvas de nível praticamente inexistem, pois ‘diminuem’ a área produtiva, e o solo que lute. E no meio dessa lama — literal e política — eis que surgem os produtores do PIB, pedindo renegociação. Apoio. Desde que os beneficiários estejam no grupo daqueles que realmente foram severamente atingidos pelas águas e que não possuem condições de continuar. É importante lembrar que o chamado agronegócio recebe uma generosa fatia de incentivos fiscais patrocinados por mim e por você. Estima-se que 85% das benesses direcionadas para o agro estão concentradas em grandes produtores de commodities (soja, milho, gado). E o que recebemos em troca? Na água e nos alimentos um combo de venenos e outros insumos zero saudáveis que são utilizados para acelerar processos e atender a sanha produtiva predatória agroalimentar. Resulta que o Brasil é um grande produtor de alimentos cancerígenos, cujos tratamentos, em sua maioria, são custeados pelo SUS. Sem magoá-los, vou me apropriar de uma definição dos especialistas do segmento nada pop: abre-se uma janela de oportunidade para que seja revisto — só que não vai rolar — esse modelo nocivo de praticar agricultura. Registro que a securitização não é para a senhora e para o senhor que plantam comida de verdade e têm uma relação harmoniosa com a natureza.

E o Barão de Itararé se apresenta e reforça a sempre atual frase: “De onde menos se espera é que não sai nada”. Se o Rio Grande do Sul foi em 2024 um laboratório de como não desenvolver ambientalmente, o mínimo que se espera da representação política eleita democraticamente é que revejam suas posições, mesmo para aqueles que estão no Congresso apenas e tão somente para representar os interesses de seus financiadores privados. Esse seria, no meu mundo ingênuo, o melhor dos mundos. Se a legislação ambiental já sofria ataques anteriores, agora conseguiram a façanha de abrir toda a porteira e aprovaram a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Enquanto isso acontecia, o RS perdia mais um tanto de sua cobertura vegetal de Áreas de Proteção Permanente. Ah, mas o que isso tem a ver com as enchentes sulistas? Tudo e mais um pouco. E já que o pudor foi deixado do lado de fora da porta da casa de tolerância legislativa, humildemente sugiro — também por respeito a elas, tratadas a machadadas — que retirem dos calendários a data alusiva ao dia da árvore. Não é apenas incoerente manter o 21 de setembro, plantar algumas espécies, sacar algumas selfies e no outro dia fingir que a cidade passou do verde para o cinza do concreto. Até a máfia tem regras de convívio que devem ser respeitadas, portanto, não adianta a bancada da destruição ambiental cobrir sua cara de surpresa quando a água cobra a conta.

Escrevo essa provocação durante a semana de Corpus Christi. Milhares não estarão com os seus para dividir o pão e o vinho porque mais uma vez foram expulsos de suas casas pelo recado duro das águas. Não é mais aceitável tratar isso como novo normal e aguardar, daqui a 12 meses, outros registros do mais do mesmo. Tampouco é recomendável aguardar as eleições de 2026 para ver quem vai puxar a capivara da destruição e exibir seus feitos nada cristãos. Se ainda existe resistência e resiliência, urge que se apresentem e guiem. O contraponto não é apenas uma questão de retórica. É fundamental apontar o nome, sobrenome e endereço dos responsáveis pela necropolítica guasca, financiada por aqueles que dizem não guentar mais “pagar” tantos impostos, mas nadam em isenções fiscais pecaminosas. Não é um convite à revolução. É algo mais simples: é a busca da salvação coletiva. Para isso, precisamos gravar na lista dos compromissos diários que reconstrução não é sinônimo de estradas. 

Ah, detalhe importante: diferente do que disse uma senhora, que ao mostrar-se conformada por ter sido desalojada outra vez, cravou que ‘Deus está no controle’, há controvérsias. Primeiro: não tenho procuração para representá-lo, mas contudo já adianto que Ele nos entregou o planeta alinhadinho, bastando efetuar manutenções pontuais e seguir. Segundo: Ele é filho de carpinteiro, mas não cursou engenharia. Terceiro: atrevo-me a revelar — e não é uma heresia, apenas análise de seu comportamento — que Ele não volta mais. A desistência tem relação direta com a falta de interpretação textual e comportamental do que Ele pregava. Portanto, incluam Ele fora dessa bagunça. E mais: Ele também não disse para contribuir com o dízimo e sustentar os agiotas da fé.

As respostas continuam insatisfatórias, incompletas. O poder público é omisso e mostra-se incapaz de ouvir especialistas. O barulho do colapso sugere não incomodar, e a escora dos anúncios de recursos e vazios de planejamento dá indícios de apodrecimento. Para além dos extremos climáticos, o que continua a avançar é a agenda do capital, esta que nunca é chamada às falas e, onipresente, escreve, interpreta e sentencia o nosso amanhã. A ampulheta do ‘se continuar assim, vai dar nada bom’ corre lentamente e segue o seu rito. E nós, convencidos de que é assim que a roda gira, assistimos e esperamos um milagre de um Deus que já deixou claro que não é signatário da teoria da prosperidade destrutiva. E não será surpresa se em breve as bets — outra praga normalizada e legalizada — entrarem no cassino da morte e faturarem ainda mais, literalmente em cima de mais um desastre que atinge certeiramente os carregadores da base.

Vivemos uma quadra histórica na qual a estupidez humana é premiada. Grosseiramente comparando, é como se alertássemos uma criança a não pôr um objeto de metal em uma tomada elétrica. Que aquilo pode dar ruim. Ao invés da segurança, da proteção, o que temos é o estímulo a fazer errado e o errado é saudado como necessário para “desenvolver”. Nossas “crianças” grandes, bem nutridas e com polpudos orçamentos publicitários, são tratadas como empreendedores… — e faço o complemento — do caos. Vivemos tempos de carestia e não faço referência aos preços dos alimentos. O meu alvo é outro: a escassez da razão. Não sei se haverá tempo, mas os sinais estão aí para quem é crente ou ateu. Contemplar, refletir, exigir e cobrar de quem sempre ganha à custa do nosso sofrer é mais do que urgente. Professora Iracema, ah como a senhora faz falta, pois necessitamos de mais pessoas que exijam o desenvolvimento aprofundado do enunciado e não queiram, de forma apressada, resolver tudo na base do “eu sei e ponto”, ignorando processos, terceirizando responsabilidades e culpando os atingidos, como se eles pudessem fazer escolhas. Mestra, a senhora tinha razão: precisamos da conta completa, sem atalhos.


*João Anschau é jornalista e Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Também é criador e impulsionador do podcast “Salve, Terra!” que está disponível no Spotify.

Campos dos Goytacazes sofre com as chuvas intensas e a falta de política de adaptação climática fica óbvia

chuva campos

Mesmo distante da cidade de Campos dos Goytacazes por força do meu período de férias, venho acompanhando os efeitos dramáticos que as chuvas intensas que ocorem desde o último final de semana. As cenas de ruas e avenidas alagadas podem até parecer uma repetição de anos passados, mas os números sobre os níveis de precipitação mostram que se vive um processo de agravamento das tendências já anunciadas para os novos padrões de precipitação que acompanham o processo de ajuste climático que está ocorrendo no nosso planeta.

Uma coisa que fica evidente nos números divulgados para as precipitações que ocorreram em diferentes regiões de Campos é que nosso município possui padrões que se diferenciam em seu extenso território, deixando algumas partes mais propensas a situações mais extremas do que em outras (ver figura abaixo).

monitoramento pluviometrico

Mas para além das chuvas intensas e das recorrentes inundações de partes substânciais da nossa cidade e de localidade periféricas, o que mais deveria chamar a atenção é a óbvia falta de preparação que marca as ações do governo municipal.  Como alguém que vem orientando estudos sobre o processo de adaptação climática em Campos, eu diria que é preocupante que inexista uma estrutura municipal que permitisse ações estratégicas não apenas para os dias de chuva intensa, mas principalmente para os dias secos.

Contudo, o governo municipal comandado por Wladimir Garotinho em sua versão Número 1 nada fez para tirar Campos dos Goytacazes do profundo atraso em que se encontra o processo de adaptação climática em plano municipal.  Eu, inclusive, adoraria ver o orçamento da Secretaria Municipal de Defesa Civil para o período 2021-2025, anos em que Wladimir está com o caneta orçamenária nas mãos. Eu desconfio que mais dinheiro tenha sido gasto com shows onde a adaptação climática é feita na base do mangueirão como ocorreu recentemente no Farol de São Thomé.

O primeiro trio elétrico do Verão de Todos Nós 2025 trouxe uma explosão de  alegria ao percorrer a orla do Farol de São Tomé ao som de Paulinho  Badaloka e convidados especiais.

Como o que está se vendo nos últimos dias ainda vai ter inúmeras repetições, o que se espera é que se o governo municipal não agir de livre e espontânea vontade para começar a preparar o município para os novos padrões climáticos, isso se dê a partir dos afetados pelas inundações que tendem apenas a piorar nos próximos e décadas.

Como neste momento estou na cidade de Blumenau (SC), posso dizer que aqui estão ocorrendo obras estruturais para que as inundações devastadoras que ocorreram em 2023, e está claro que aqui já há um mínimo de compreensão sobre a necessidade de se preparar para o que virá. 

Estudo parte de interações oceano-atmosfera para nova compreensão sobre chuvas no Sul do Brasil

Ao mapear padrões de chuva e relacioná-los às dinâmicas do oceano, pesquisa questiona padrões climáticos estabelecidos e oferece subsídios ao enfrentamento de eventos extremos no clima subtropical brasileiro

CHUVAS SULEm grande parte do Paraná e de Santa Catarina, o período de maior pluviosidade ocorre de dezembro a março. Foto: Daniel Castellano/SMCS/Divulgação

Por Jéssica Tokarski para o Ciência UFPR 

Em um estudo sobre a complexidade climática da região Sul do Brasil, uma tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) revelou padrões de precipitação variáveis ao longo do ano na área investigada, apontando influências que vão além do tradicional fenômeno El Niño. 

Os resultados demonstram que, embora o clima dessa região apresente uma distribuição regular de precipitações ao longo do ano, há variações significativas entre as estações e as áreas, o que desafia as percepções já estabelecidas.

Além de confirmar o papel central do El Niño Oscilação Sul na modulação das chuvas, a pesquisa mostra que seus efeitos variam conforme diferentes áreas do Oceano Pacífico se aquecem ou se resfriam, estabelecendo novas perspectivas para entender as interações entre oceano e atmosfera no país. 

Defendida por Gabriela Goudard, a tese recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2024.

Segundo a autora, a compreensão dos regimes de pluviosidade e de seus mecanismos geradores é fundamental para o monitoramento e a modelagem climática, bem como para minimizar potenciais impactos relacionados ao clima e às mudanças climáticas.

“O entendimento da pluviosidade possibilita ter uma melhor previsibilidade para fenômenos como secas prolongadas ou eventos extremos de precipitação, potenciais desencadeadores de desastres no Sul do Brasil”, diz à Ciência UFPR. 

A influência do oceano no clima regional 

Gabriela explica que, como os oceanos recobrem grande parte do planeta Terra, muitos processos que acontecem no clima podem ser explicados, direta ou indiretamente, pela interação que ocorre entre eles e a atmosfera.

“Algumas dessas interações se propagam pelo planeta, para regiões distantes do local onde surgem e, nesses casos, são denominadas teleconexões. Por meio delas, é possível compreender como um determinado fenômeno que ocorre em uma porção do planeta afeta o clima em locais distantes de sua origem. A temperatura da superfície do mar funciona como uma espécie de ‘gatilho’ nessas interações que acontecem entre o oceano e a atmosfera”. 

Apesar de o El Niño-Oscilação Sul (ENOS) ser o principal modulador da pluviosidade — ou seja, da quantidade de chuva que cai em uma determinada região durante um período de tempo específico — no clima subtropical brasileiro, o estudo evidenciou relações com outros índices dos oceanos Pacífico, Atlântico, Antártico e Índico no recorte espacial da pesquisa, que abrange o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, a maior parte do Paraná e o sudeste de São Paulo. 

Para o orientador da tese e professor do Departamento de Geografia da UFPR, Francisco de Assis Mendonça, essas interações podem ser observadas pela sociedade para a prevenção de eventos climáticos extremos, sendo uma forma de evitar perdas de vidas e danos exagerados.

“O trabalho permite que, ao conhecer a situação climatológica atual, seja possível realizar análises de cenários presentes e futuros visando minimizar os impactos sobre as atividades humanas”. 

El Niño afeta diretamente o clima subtropical brasileiro 

O fenômeno climático El Niño-Oscilação do Sul (ENOS) é marcado pela alteração da temperatura do mar no oceano Pacífico Equatorial Centro-Leste e é composto por duas fases opostas: o El Niño e a La Niña. Enquanto o primeiro evento se refere à fase quente do fenômeno neste oceano, o segundo está atrelado à fase fria dessa região. 

“De modo geral, em anos de El Niño, as precipitações são mais expressivas no clima subtropical em relação às médias do clima, produzindo anomalias positivas de chuvas (chuvas acima da média). Em contrapartida, em períodos de La Niña, as precipitações tendem a estar abaixo da média, produzindo anomalias negativas de precipitação no sul do Brasil. Dessa forma, em anos de El Niño, casos de inundações podem ser mais frequentes, ao passo que em contextos de La Niña, as secas e estiagens ganham mais destaque”, detalha Gabriela. 

O estudo identificou que, enquanto o El Niño Leste apresenta as características clássicas desses eventos no Sul do Brasil, como aumentos de precipitação em todas as estações do ano, os El Niños Centrais promovem variações nesses padrões previamente conhecidos e amplamente estudados, com a predominância de anomalias pluviais negativas, sobretudo no outono do ano seguinte ao início do evento.  

“Assim no contexto dos El Niños Centrais, condições de seca e estiagem se destacam no clima subtropical, refletindo um padrão oposto ao dos El Niños Leste. Portanto, o conhecimento destas dinâmicas possibilita ações de planejamento e gestão de riscos mais efetivas”, assinala a pesquisadora. 

Já no caso das La Niñas, a pesquisa não observou mudanças de padrões, constatando o predomínio de chuvas abaixo da média na área de estudo independente da tipologia dos fenômenos. Contudo, foram observadas variações na intensidade das anomalias pluviais negativas no clima subtropical, sendo estas mais intensas no verão para as La Niñas Leste, na primavera para La Niñas Mix e no outono para La Niñas Centrais.  

“Este fato também requer monitoramento, uma vez que a depender da tipologia da La Niña, as condições de estiagens e secas podem ser bem mais intensas no Sul do Brasil, possibilitando assim, medidas de planejamento mais efetivas em relação a essas dinâmicas”, relata Gabriela. 

De acordo com Mendonça, a pesquisa contribui diretamente para a política de planejamento climático e para gestão de recursos hídricos, pois permite compreender melhor a dinâmica da influência dos oceanos e dos eventos climáticos com probabilidade maior ou menor de chuva nesses estados brasileiros. 

Chuvas no Sul do Brasil não são homogêneas 

A divisão do clima subtropical em nove regiões homogêneas realizada para a pesquisa permitiu verificar a existência de diferentes regimes de pluviosidade. Segundo a autora, na maior parte do Paraná e de Santa Catarina, o período de maior pluviosidade ocorre nos trimestres dezembro-janeiro-fevereiro e janeiro-fevereiro-março. 

 “O regime trimodal, com máximos de precipitações na primavera, verão e outono é verificado no noroeste do Rio Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná. Em geral, a porção norte e leste do clima subtropical apresenta a precipitação mais marcada no verão, ao passo que no Rio Grande do Sul, a distribuição é mais regular ao longo do ano”, descreve a pesquisadora. 

As análises possibilitaram o questionamento e a desconstrução da noção de homogeneidade pluvial no clima subtropical que é perpetuada na literatura clássica da climatologia e corroboraram com abordagens adotadas na meteorologia. 

A descoberta tem relevância para políticas públicas, principalmente as que tratam da produção agrícola na região Sul.

“Os planejamentos agrícolas, urbanos e industriais da região sempre consideraram a pluviosidade local como um todo, de forma igual e uniforme. Mas a tese mostra que a quantidade de chuva ocorre de forma variada no tempo e no espaço”, enfatiza Mendonça. 

Com o avanço da discussão sobre mudanças climáticas, dada a intensificação de fenômenos extremos que têm impactado a agricultura, a indústria, o meio urbano, a ecologia e até a saúde humana, os dados apontados no estudo revelam-se fundamentais para trabalhos relacionados à previsibilidade de condições climáticas e, consequentemente, à distribuição ou à escassez e excesso de água no sistema natural.   

Ter esse tipo de informação com antecedência permite influenciar as ações de previsão, bem como as ações de enfrentamento antecipadas aos desastres climáticos, auxiliando a sociedade a minimizar os impactos da seca, de inundações e dos demais eventos climáticos na região subtropical do Brasil”, finaliza o professor e pesquisador. 

➕ Leia detalhes na tese ” Interações Oceano-atmosfera e Efeitos na Variabilidade Pluvial do Clima Subtropical Brasileiro“, defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPR


Esta reportagem faz parte de uma série baseada nas teses de doutorado defendidas na Universidade Federal do Paraná que foram destacadas no Prêmio Capes de Tese 2024. Acompanhe neste link


Fonte: Ciência UFPR

Uenf sofre com chuvas torrenciais, apesar de obras milionárias

uenf

Chuvas estão levando caos ao interior do campus da Uenf em Campos dos Goytacazes

Apesar de um pacote de obras milionárias em curso há pelo menos dois anos, as chuvas torrenciais que caem na cidade de Campos dos Goytacazes estão deixando muitos grupos de pesquisa da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) com o coração na boca. É que cenas sendo circuladas em grupos de Whatsapp estão mostrando situações muito problemáticas que colocam equipamentos científicos sob risco de perda total (ver imagem abaixo).

Como não se faz pesquisa sem equipamentos ou com laboratórios inundados, a pergunta que muitos professores da Uenf estão se fazendo neste sábado é de porque obras relativamente simples como a troca de telhados se arrastam por tanto tempo, em que pese as placas de obras que mostram gastos milionários. É simplesmente um descompasso que precisa ser explicado. Nesse caso, a palavra está com a reitoria da Uenf.

Ah, sim, talvez essa situação no campus Leonel Brizola explique aos vereadores e ao prefeito Wladimir Garotinho o porquê de tanta demora em se iniciar as obras no prédio do Solar do Colégio.  É a velha história, se até em casa o espeto é de pau, imaginem como pode ser no churrasco na casa dos outros.

Aprendendo com um desastre climático: as inundações catastróficas no sul do Brasil

Rio Guaíba, após forte chuva em Porto Alegre

Porto Alegre, 03/05/2024, Rio Guaíba, usina do gasômetro, em Porto Alegre após chuva intensa. Foto: Gilvan Rocha/Agência Brasil

Por Valério D. Pillar  e Gerhard E. Overbeck para a “Science”

As inundações catastróficas que afetaram o sul do Brasil em maio passado devem servir como um aviso às sociedades humanas de que, apesar do ceticismo ou negação ainda generalizado sobre as mudanças climáticas , a mitigação e a adaptação para lidar com a crise climática em curso são urgentemente necessárias. O número de mortos ou desaparecidos foi de 213 pessoas; 2,4 milhões de pessoas afetadas , incluindo 600.000 deslocadas; e perdas sem precedentes em infraestrutura urbana e rural, incluindo gado . Essas perdas poderiam ter sido menores se medidas de adaptação tivessem sido implementadas, como tem sidrepetidamente recomendado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Tendo testemunhado a catástrofe em primeira mão, aqui destacamos medidas de adaptação baseadas na natureza que poderiam efetivamente fornecer resistência e resiliência contra eventos climáticos extremos.

Chuvas extremamente pesadas resultaram em precipitação acumulada de 652 mm (até 900 mm em algumas áreas) ao longo de 35 dias, com 444 mm caindo apenas nos 8 dias anteriores ao pico da enchente, quantidades normalmente esperadas ao longo de cerca de meio ano, nas bacias hidrográficas de 8,4 milhões de hectares que formam o delta do Rio Jacuí e o Lago Guaíba, onde fica a área metropolitana de Porto Alegre. Essa precipitação extrema, ligada a frentes frias bloqueadas no sul do Brasil, seguiu um clima anormalmente úmido nos 6 meses anteriores devido a um forte evento de Oscilação Sul do El Niño. Como consequência, a forte erosão do solo afetou as regiões de agricultura intensiva estabelecidas nos solos vermelhos e profundos que caracterizam as nascentes do norte das bacias hidrográficas. Imagens de satélite do início de maio mostraram uma forte cor laranja nas águas da enchente antes de descerem para os vales da Serra Geral, onde sedimentos adicionais atingiram os rios devido a vários deslizamentos de terra nas encostas íngremes e solos varridos de terras agrícolas ao longo dos vales mais baixos.

No pico da enchente, as áreas baixas da região metropolitana de Porto Alegre foram inundadas. A cidade de Porto Alegre em si era supostamente protegida por um sistema de proteção contra enchentes que consistia em diques, muros, comportas e bombas construídos na década de 1970, o que dava à população da cidade uma sensação de segurança. Esse sistema falhou principalmente devido à negligência da manutenção de rotina das comportas e bombas pela administração da cidade. Como consequência, as partes mais baixas da cidade, uma capital estadual com uma população de 1,3 milhão, foram inundadas pelo sistema de drenagem. Isso causou uma reação em cadeia que levou ao colapso do fornecimento de eletricidade em partes da cidade e estações de abastecimento de água potável na maior parte da cidade, incluindo áreas não inundadas. Um dos maiores hospitais da cidade teve que ser evacuado, o terminal de ônibus regional foi inundado e todas as rotas de acesso terrestre à cidade, exceto uma, foram interrompidas. Essa situação durou cerca de 3 semanas. O principal aeroporto que atende Porto Alegre e o estado ficou alagado por um mês e deve retornar à funcionalidade total somente perto do fim do ano. Recuperar essas perdas custará muito mais do que se medidas de adaptação tivessem sido implementadas.

Modelos climáticos previram um aumento na frequência e intensidade de eventos extremos de chuva para esta região, causando inundações e secas. Medidas de adaptação para lidar com esses eventos extremos são urgentes. Aqui, focamos na adaptação baseada na natureza envolvendo restrições de uso da terra em todas as bacias hidrográficas. Destacamos que a adaptação é necessária em todas as escalas espaciais e deve incluir toda a bacia hidrográfica, não apenas ao longo dos rios. Soluções baseadas na natureza , como proteger a vegetação nativa remanescente de florestas e não florestas e adotar práticas agrícolas que conservem o solo e a biodiversidade em áreas cultivadas, podem reduzir o impacto de eventos extremos, apesar das dificuldades na avaliação de sua eficácia. Menos erosão do solo reduz a quantidade de sedimentos suspensos nas águas das enchentes. Além disso, reter água a montante por um período mais longo pode evitar que estruturas de proteção a jusante, como os diques que deveriam proteger Porto Alegre, sejam sobrecarregadas quando a precipitação estiver mais alta do que nunca. Restaurar a vegetação nativa é um processo lento, mas é crucial para proteger o solo e as margens dos rios. Felizmente, grande parte das encostas íngremes da Serra Geral, que eram áreas agrícolas até cerca de quatro décadas atrás, agora têm florestas em regeneração (Mata Atlântica). No entanto, também é essencial restaurar a vegetação campestre que originalmente cobria os solos vermelhos do alto Rio Jacuí e do alto Rio Taquari. Notavelmente, a manutenção ou restauração de ecossistemas de várzea também reduz a vulnerabilidade dos humanos, já que decisões inadequadas de uso da terra no passado contribuíram muito para a gravidade desta catástrofe.

Conforme demonstrado pela iniciativa de mapeamento de uso e cobertura do solo MapBiomas , entre 1985 e 2022, 1,36 milhões de ha de vegetação nativa, incluindo 1,1 milhões de ha de pastagens nativas, foram perdidos para a agricultura e outros tipos mais intensivos de uso da terra nas nove bacias hidrográficas que formam o Lago Guaíba. A vegetação nativa florestal e não florestal (pastagens e áreas úmidas) protege o solo da erosão contribui para a atenuação de enchentes ao retardar o escoamento superficial da água da chuva. A Lei de Proteção à Vegetação Nativa (12.651/2012), a principal lei brasileira de conservação da natureza, obriga proprietários privados a destinar 20% de suas propriedades para manutenção da vegetação nativa na chamada Reserva Legal. Além disso, as Áreas de Proteção Permanente, também com vegetação nativa, são obrigatórias nas margens dos rios, em encostas íngremes e no topo de morros e montanhas. No entanto, ambos os instrumentos sofrem com problemas de implementação, o que reduz a proteção e leva a maior vulnerabilidade e impactos. Se essas áreas tivessem sido protegidas ou restauradas, elas teriam retido as águas a montante e a transbordamento nas planícies de inundação por um período mais longo, reduzindo os impactos catastróficos a jusante.

No entanto, sucessivos governos do estado do Rio Grande do Sul vêm promovendo o enfraquecimento da legislação que protege a vegetação nativa. Um decreto estadual de 2015 permitiu que proprietários de terras considerassem remanescentes de campos nativos sob pastagem como se fossem equivalentes a terras convertidas usadas para cultivos ou pastagens, enfraquecendo assim sua proteção sob a legislação federal. Esta disposição do decreto estadual é ilegal e foi bloqueada em 2016 por uma Ação Civil Pública. No entanto, em uma versão modificada, foi incorporada ao Código Ambiental Estadual (Lei 11.520/2020) contra a qual outra Ação Civil Pública ainda está pendente de decisão. No nível federal, tentativas de reduzir a proteção da vegetação nativa também estão em andamento, como o Projeto de Lei 364/2019 , atualmente em análise no Congresso Nacional, que remove a proteção de campos nativos sob pastagem em todo o país. Este projeto de lei foi proposto e apoiado por congressistas do Rio Grande do Sul, aparentemente cegos às potenciais consequências da proteção reduzida.

Claramente, os tomadores de decisão da região não consideram a urgência de lidar com as mudanças climáticas, sua mitigação e adaptação ao seu impacto. Se as mudanças climáticas não se tornarem uma prioridade nas políticas públicas, então a população da região que foi tão duramente atingida agora sofrerá eventos mais frequentes e potencialmente ainda mais catastróficos no futuro. No primeiro semestre de 2024 , chuvas fortes e inundações também afetaram o Quênia e os Emirados Árabes Unidos. O sul e o sudeste da Ásia viram uma onda de calor recorde, e a América do Norte está atualmente afetada por incêndios florestais graves. Esses são apenas exemplos de eventos extremos relacionados ao clima em 2024. O resultado são múltiplas ameaças às populações humanas, economias e produção de alimentos, que podem ter efeitos de longo alcance em todos os aspectos da segurança humana. Eventos como os do sul do Brasil nos alertam claramente: os esforços para conter as mudanças climáticas precisam ser globais e rápidos, e medidas de adaptação devem ser adotadas em todo o mundo.


Fonte: Science

O Homem, esse bicho da terra tão pequeno

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Enchente do Rio Taquari na cidade de Lajeado (RS). Foto: marcelocaumors/Instagram

Francisco Mateus Conceição*

O antigo Continente de São Pedro, depois chamado de Rio Grande do Sul, é um espaço geográfico com enorme quantidade de águas, através de sangas, rios e lagoas. E também lençóis freáticos. Chegou a ser chamado, por navegadores, velejadores ou viajantes, como nos lembra Tau Golin, de Rio Grande das Alagoas. Região de repetidas inundações e enchentes. Em importante texto da literatura sul-riograndense, versão local da Lenda da Boitatá, narrada por Simões Lopes Neto, há uma inundação sem precedentes, assim descrita:

… foi uma manga d’água que levou um tempão a cair, e durou… e durou…

Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num: os passos cresceram e todos aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. (aqui)

Os registros históricos também informam sobre enchentes de grandes proporções. Parece, porém, que os mandatários locais dos últimos tempos haviam esquecido ou nunca souberam disso. O último evento, de dimensões comparáveis ao deste ano, havia sido em 1941. Querer lembrança disso a líderes tão sedentos de se afeiçoarem ao futuro e à modernidade, seria exigir demais. Muitas vozes tentaram lembrá-los, mas de nada adiantou. Eles se sentiam ungidos pelo moderno empresarial. Por fim, a própria natureza também tentou, mas sua voz foi logo despistada. A falta de memória era completa, digna das páginas de um Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão), ou, para ficar entre nós, de um Erico Verissimo (Incidente em Antares). De tanta desmemória deliberada, acabaram, como diria Eduardo Bueno, por não conhecerem o solo onde pisam.

Em setembro de 2023, chuvas torrenciais provocaram inundações, destruições e dezenas de mortes no interior do estado, especialmente no Vale do Taquari.  No dia 18 desse mesmo mês, o Governador do Estado anunciava lançamento de Edital para conceder o Cais Mauá, em Porto Alegre, à iniciativa privada. Em vídeo, atua entusiasticamente como garoto propaganda do projeto, que, conforme diz, conectaria o Rio Grande com o futuro. O muro da Mauá, essencial para a contenção das águas do Guaíba, seria modificado e transferido de lugar. Ao enumerar as supostas maravilhas desse futuro, antecipado em imagens digitais, o Governador destaca: “sem aquele muro que dividia o antigo porto da cidade” (aqui). O tom é de indisfarçável mal-estar e menosprezo com o tal muro. Logo após o anúncio, porém, como desdobramento das inundações que vinham ocorrendo, o Guaíba elevou-se e passou da cota de três metros. No dia 27 de setembro, o muro da Mauá mostrou que não era um trambolho entre a cidade e o rio, e ajudou a impedir que as águas invadissem a capital. Isso apesar de o sistema de contenção, com 68 km de diques, comportas e bombas de recalques, ter acusado falhas nesse ano, devido à falta de manutenção. O Governador sentiu o baque e gravou novo vídeo, no dia 29 de setembro, explicando que o muro não seria extinto. Deveria ser substituído por outro modelo e transferido de lugar. Feita a explicação, considerou tudo resolvido e o Edital de Concessão foi a leilão em fevereiro/2024, após mais uma inundação em novembro/2023.

E não parou por aí. Ele já havia, em 2020,  conforme informações da imprensa, suprimido ou modificado 480 artigos do Código Estadual do Meio Ambiente, flexibilizando e abrandando-o. Além disso, em 2021, extinguira a Lei dos agrotóxicos do Estado, que proibia o uso de produtos vetados em seus países de origem. Mas, qual um Fausto dos pagos, em seu pacto pela modernidade, entendeu que precisava fazer mais do mesmo. Em que pese as inundações de 2023, a bancada governista na Assembleia Legislativa aprovou, em março de 2024, Projeto de Lei para permitir construção de barragens em Áreas de Preservação Permanente (APPs), projeto este sancionado pelo Executivo em 09/04/2024. Possivelmente ainda estivessem comemorando a vitória, portanto, quando as leis da natureza, as mesmas de sempre, se manifestaram, de maneira mais inclemente e avassaladora. O mundo desabou num tempo feio a partir do final de abril, e os efeitos imediatos da calamidade se estendem até hoje,  sem que tenhamos perspectiva clara, de tempo e modelo, para a reconstrução de tudo. O Rio Grande do Sul que, conforme as palavras do Governador, olhava para o futuro, acabou se deparando com ele em sua face distópica.

Frente a essa calamidade, necessitávamos de iniciativas e ações rápidas e no rumo certo. Remontando aos saberes e à cultura local, há um provérbio segundo o qual “é no estouro da tropa que se vê se o índio é bueno”. Ou seja, diante de um caos generalizado, a pessoa é, inexoravelmente, testada quanto à capacidade e ao valor que dela se espera. Em um clássico de nossa literatura, Antônio Chimango, escrito por Ramiro Barcelos, sob o pseudônimo de Amaro Juvenal (por sinal uma sátira política), há uma longa descrição de alguns dons diante de uma cena dessas. Selecionamos a passagem a seguir:

Nisto é que está o busílis

Que não depende de ensino:   

Saber tomar um destino

E  não se apertar no apuro

Poder guiar-se no escuro

E nunca perder o tino. (aqui)

Depois que passar o estouro, cada um buscará contar sua história. Por isso, esse momento crucial é revelador, do antes e do depois, e é importante observá-lo. Vejamos, no que diz respeito a Porto Alegre, como agiram o Prefeito e o Governador do Estado quando a calamidade explodiu sobre o estado.

O estrago no interior foi como ativar uma bomba-relógio para Porto Alegre. Nos últimos dias de abril, a destruição provocada pelas águas já atingia dimensões catastróficas, derrubando pontes e rodovias, gerando vítimas fatais e grande número de desabrigados. Tudo amplamente divulgado pela imprensa. Tanto que, no dia 30 de abril, quebrando todos os protocolos, o Governador do Estado cobrava, pela Plataforma X (Twitter), ajuda imediata do Governo Federal, em razão das “chuvas intensas já ocorridas e que vão continuar nos próximos dias” (aqui). Grande parte desse problema se localizava na bacia do Guaíba e era questão de tempo para que esse volume excessivo de águas chegasse à capital do Estado. Porém, o Prefeito de Porto Alegre somente ordenou que os portões dos diques de proteção fossem fechados na quinta-feira, dia 02 de maio, após o alerta emitido, no final do dia anterior, pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (aqui). Enquanto as águas desciam e se aproximavam, era para ele estar preocupado, procurando e implementando, juntamente com sua equipe, soluções emergenciais. O sistema de contenção  continuava deteriorado e por isso as águas invadiram a Capital. O prefeito anterior, Nelson Marchezan Júnior, deixara de investir verba captada para essa finalidade específica e, ainda, extinguira o DEP (Departamento de Esgoto Pluvial), órgão responsável por cuidar do referido sistema. Ainda assim, muita coisa podia e devia ser feita pela atual gestão, que era sabedora desses problemas. Especialmente, após as inundações de 2023, em cuja sequência os técnicos apontaram onde havia problemas e como corrigi-los, sem que nada fosse feito e, consequentemente, tais problemas se repetissem. Além disso, por que não se preparar com maior antecedência neste momento? Se era para colocar os sacos de areia na frente dos portões, como se viu, que pelo menos colocassem os três metros de altura (a altura do muro). Ou usassem os bags, que parece terem descoberto somente depois – e até serviram para substituir um portão, desastradamente retirado. Nesse curto espaço de tempo, restava o improviso, a gambiarra, mas mesmo nisso agiu-se no último instante e mal. Não se tomaram as rédeas e o comando da situação. Em tudo a mesma constância: o que não se fez anteriormente também não se fez em 2024.

E quanto ao Governador? Ele foi rápido para cobrar, pelas redes sociais, ação do Governo Federal, mostrando um desejo de protagonismo. Explicou, posteriormente, que não poderia perder tempo frente à catástrofe. Pois bem, por este viés, era recomendável, também, ter quebrado protocolo e perguntado, pela mesma plataforma, ao Prefeito de Porto Alegre, se estavam perfeitamente resolvidos os problemas, evidenciados em 2023, no sistema de contenção. Neste caso, estaria agindo de maneira providencial, frente a um perigo imediato. Mas, convenhamos, ficaria estranho usar as redes sociais, se ambos estão na mesma cidade. Poderia, então, ter telefonado, mandado um bizu pelas rádios ou TVs locais, onde tem acesso amplo. Ou, então, poderia mesmo visitar a Prefeitura. Dialogar com o Prefeito, colocar-se à disposição… O Piratini fica a poucos metros da Prefeitura, e ambos distam pouquíssimos quadras do Cais Mauá, por onde as águas do Guaíba também estouraram.  Além disso, parece lógico que, sendo o Governo do Estado responsável pelo Edital de Concessão do Cais Mauá, pondo e dispondo livremente sobre o futuro do muro de contenção, também deveria assumir responsabilidade quanto à manutenção e segurança do que hoje existe, principalmente diante de uma tragédia anunciada. Ou será que o Governador não teria compreendido que as inundações, sem trégua, se dirigiam ameaçadoramente para Porto Alegre?

O problema ambiental possui tentáculos maiores, no espaço e no tempo, que nossos atuais gestores do Estado e da Capital. Mas eles atuam como líderes de uma ideologia liberal radicalizada, que sucateia e privatiza o bem público, intensifica os problemas sociais e devasta a natureza. Colaboraram para o surgimento da catástrofe. A dor ensina a gemer, mas não a pensar e a fazer autocrítica. A tragédia de 2023 nada ensinou a nossos gestores. E aí cabe a pergunta: o que serão capazes de fazer neste processo de reconstrução? O Prefeito já se moveu rapidamente para contratar a Alvarez & Marsal, multinacional de currículo duvidoso. O Governador, por sua vez, chegou a demonstrar preocupação com o grande número de doações, que, segundo ele, poderia agravar as  dificuldades da economia local. Sempre a mesma linha de pensamento, que vê no desempenho empresarial a única saída. Com essa concepção ideológica, a reconstrução tornará o serviço público ainda mais refém da iniciativa privada, que gosta de repetir o mantra segundo o qual não se deve falar em crise, mas em oportunidade.

A natureza cobrou seu preço e, frente a tanta água, o gaúcho se viu, como diria Drummond, retomando Camões, “homem, bicho da terra tão pequeno”. As águas camonianas são outras, mas alguns versos parecem ter nascido hoje.

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno? (aqui)

É momento de solidariedade e de trabalho de reconstrução, mas também de repensar concepções que trouxeram nosso Estado a este estado. Hora de reforçar nossa identidade cultural, mas também de repensá-la. Certas coisas não podem mais ter lugar. No mundo da cultura, a música é uma das primeiras e mais fortes expressões de uma população. Neste sentido, já vivemos, em nossos festivais nativistas, momentos bem melhores, quando brotaram músicas comprometidas socialmente, como “Canto do Renegado” , “Retirante” ou “Sabe Moço”. E também belíssimas músicas de temática ambiental, como “Rumos Perdidos”, “Súplica do Rio” “Queimada” ou “Cria Enjeitada”. Porém,  como tudo está interconectado, o retrocesso que verificamos no mundo político e econômico também se expressa e é produzido na cultura (que não é mero elemento decorativo). É culturalmente trágico, por isso, que uma música campeã de festival nativista reclame cegamente da “tal reserva legal”. A música se chama, paradoxalmente, “Embretados”, mas o brete em que nos encontramos resulta também desse negacionismo desenfreado.  Do estouro da boiada, hoje restam registros culturais, mas o estouro negacionista, que adora os campos digitais, é furioso e aonde chega leva tudo por diante, seja no Rio Grande do Sul, no Brasil ou no mundo.

Sem ode nostálgica ao passado. Sem ode evasiva ao futuro também. E sem o narcisismo cego da exaltação ao presente. Relembremos, de 1983, a denúncia e a reflexão nas estrofes do historiador e poeta Humberto Gabbi Zanatta, musicadas por João Chagas Leite:

Hoje a ambição fez pousada à minha volta
Plantou desertos em sementes traiçoeiras
Cria enjeitada de um progresso que importamos
Batendo palmas a ganâncias estrangeiras

Só temos pressa, e mais pressa pra ter pressa
Receita louca que inventamos pra morrer
De neuroses, de calmantes, pesticidas
Matando a vida que está doida pra viver

(“Cria Enjeitada”, João Chagas Leite /

 Humberto Gabbi Zanatta, 1983, aqui ou aqui)

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*Francisco Matheus Conceição é servidor público federal, ex-professor universitário e doutor em Literatura

Esperança

abrigo rs

Por Carlos Silveira, de Ijuí (RS)

Sempre nova. Sempre a mesma. Esperança. Bebendo-se sem ter sede. Agora vivendo há um mês num abrigo depois da crescente que destruiu sua casa. Vinda de uma ilha cercada de soja por todos os lados, sempre soube que um dia a natureza cobraria reintegração de posse. Testemunhou toda a destruição das matas ciliares, a derrubada pioneira e heroica das matas, o aterro das vertentes e banhados, a impermeabilização das rodovias e o assoreamento dos cursos d’água pela erosão, pelo esgoto sanitário não tratado, por todo tipo de detrito depositado nos leitos dos rios.

Viveu todo o ciclo do gaúcho a pé desde menina. Na pequena propriedade de sua infância e adolescência, nunca houve um cavalo. Apenas o cavalo da razão e da persistência, alimentado apenas pro gasto por uma religiãozinha tão somente legitimadora da vidinha cotidiana – solidamente medíocre e feita de inércia e esquecimento. Inviável. Assim como quase tudo em sua vida: a propriedade familiar, a permanência no interior do estado, a fuga para as grandes cidades, o tudo sempre igual de todos os dias na passagem das semanas, meses e anos. A mão invisível do destino guiou-a a esmo num interminável êxodo.

Do subúrbio superpovoado ao trabalho de diarista, sempre se soube inviável. Por isso, sempre repudiou a determinação de se casar e construir um biongo (pequena moradia) no bairro, com marido e filhos. Envelheceu resistindo. Incompreendida. Vista como alguém que muito escolhe até ser o escolhido. Até ser vencida pela velhice e pelo fim. Uma que outra hóstia de sol em namoros fortuitos. Pura ilusão repudiada pela certeza de amores impossíveis. Não era direito apenas repetir(se) no cortiço. Um cadáver a parir novos cadáveres. Daí seu não definitivo a João Romão. Ninguém pode servir a dois senhores.

Assim a vida foi envelhecendo e a confiança em si e num tempo mais justo foi mermando. O mesmo já não era sempre novo. Foi branquejando atrevido até ir diminuindo e, por fim, desaparecendo. Agora o sentimento já vê como impossível a realização do desejo. A expectativa, o aguardo, a confiança foram dando lugar à desconfiança e enfraquecendo o coração. O entardecer chegou cedo e o dia deu em chuvoso. O Senhor mandou chuva para regar a terra e o solo assim ficar mais rico e produzir muito. As águas foram colhendo as lavouras, os animais, as casas, até agora há desaparecidos e soterrados. E não choveu pão dos céus e o povo saiu – e ela também – sem colher sua porção para cada dia nem provar se andava ou não nas leis divinas. Ah, como às vezes Deus se esquece de como sofre a gente pobre!

Dona Esperança saiu com seu cão (que já descobriu estar abrigado com mais 12 mil bichos de estimação), a roupa do corpo e alguns documentos. É a terceira vez, a terceira lâmina, a terceira estocada no coração. Desta vez, talvez não sobre nem o alicerce. A arca veio lotada de cães, gatos e pássaros, mas a maioria foi esquecida. Na hora do salve-se quem puder, poucos lembraram que os bichos são sempre crianças. Um barco foi sua tábua de salvação. Para outros, botes, jet-skis e até helicópteros. As ações, desde os salvamentos às doações, foram, predominantemente, do povo em geral, do povo pelo povo, daqui e de tantas outras querências do país e do mundo, mais alguns administradores a posteriori, na tarefa de reconstrução propriamente dita.

As ações públicas, oficiais, salvo as atuações de algumas forças estaduais, foram bem precárias. Da Presidência da República ao Paço Municipal, passando pelo Governo Estadual, mostraram todos um certo descaso, ineficiência, negligência, salvo nas boas horas dos holofotes. Muita propaganda oficial, inclusive da justiça eleitoral, muito grito e pouca lã. O terreno não era favorável, o clima não era favorável, as aeronaves eram tantas e causavam confusão quase como se fossem inimigas. Fora isso, houve também muitos oportunistas atacando de papagaios de pirata. Gente fingida pra cachorro. É o que é e foi o que foi, salvo raras e honrosas exceções ou salvo melhor juízo.

A única coisa que devemos temer é o próprio medo, era um ditado que repetia. Agora só aguardava o sol e as águas baixarem. Engoliu muito choro e, também, viu a morte sem chorar. Já não sonha nem tem desespero ou esperança. Nem ama por não ser poeta. Nem almeja sucesso sem a superação de práticas carcomidas que seguem dissimulando a história. Por ora, não confia em nada e nem ninguém. Menos ainda em si. Não espera a hora, a onda salvadora, a ocasião. É inviável e não espera mais nada. O exército derrotado de uma mulher só. Mas sem viver o medo nem ao meio. Segue a dizer não. Em caixa e em voz altas. Cabeça, tronco e membros plenamente vazios. Inviável. Pensa sem palavras sobre si mesma. Inviável.

A grandeza e a pequenez humanas vêm de braços e abraços. Entre imaginações de visões da noite, quando cai sobre os homens o sono profundo, sobrevieram-lhe o espanto e o tremor, e todos os seus ossos estremeceram. Então um espírito passou por diante dela e fez-lhe arrepiar os cabelos da sua carne. Inviável. Vem Deus deslizando entre brumas de mil megatons. Esperança é a última que morre. Ou nunca morre. Quem observa o vento nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca ceifará. O obscuro do instante se eterniza. Não há rastreadores para os desvios de rotas nem de recursos ou doações. Inviável. Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim tu também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas. O Senhor fez o mundo e tudo o que nele há nos céus e na terra, e derrama sobre nossas casas todos os seus mananciais. Esperança inviável. A luz dos olhos alegra o coração e a boa nova fortalece os ossos, mas o Senhor não habita em santuários feitos por mãos humanas.