Humor, racismo e algumas histórias que vocês deveriam conhecer

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POR LUCIANE SOARES DA SILVA*

Sou professora em uma Universidade Pública no Brasil. Moro no Estado do Rio de Janeiro. Aqui, sob o governo de Cláudio Castro, o Estado pratica chacinas e não estamos em uma guerra civil. Não há como achar nada de engraçado nisto, embora a favela seja um dos temas prediletos dos humoristas brasileiros. Estudo racismo em delegacias, em Tribunais de Justiça e escuto muitos operadores do direito expondo seu carinho por seus amigos negros. Amigos do futebol, os porteiros dos prédios de Copacabana, os camaradas de roda de samba ou mesmo de baile funk. Os “negros do coração” não são os genéricos que morrem diariamente.

Eu vivi muitos anos olhando o mar como quem olha uma novela do Manoel Carlos. Eu vivi sob uma ilusão de ótica, um processo de formação cognitiva com  Vera Fischer e Regina Duarte estampando as novelas. Eu cresci vendo as mamis negras do sítio do Pica Pau Amarelo ou fazendo o povo rir de suas “formas de falar” em um país de analfabetos. Nunca vi graça nisto. Nunca achei homens negros fazendo o papel de bêbados algo engraçado. Qual era a graça? Mas eram os maiores bordões da televisão.

Eu soube da Cabana do Pai Tomás, com um ator branco, pintado de preto escalado para fazer o papel de um escravo de bom coração. E quem não sabe de Lucélia Santos fazendo a escrava Isaura em um dos maiores sucessos nacionais? Uma escrava de pele alva. Pois é, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta são atrizes estupendas. Nunca tiveram o tratamento devido. Existe neste país o Teatro Experimental do Negro sob a batuta de Abdias do Nascimento. Mas isto nunca interessou ao mainstream. Nunca interessou uma linguagem na qual os negros fossem livres, autônomos e escrevessem suas próprias piadas. Sempre fomos a escada do humor nacional. Por mais de um século. Porque qualquer escritor mediano sabe a capacidade corrosiva de uma piada anti sistema.  Daquelas que desafiam a burguesia, que riem do medo cotidiano da família tradicional, que mostram o alto custo da manutenção das aparências, das formas repressivas de poder.

Eu nasci em 75. Assisti Mussum nos Trapalhões. Vi Triller do Michael Jackson sob o medo das bombas , da Guerra Fria. E admirava as atletas cubanas. E não gostava da seleção canarinho, mas gostava de sair mais cedo da escola no caminhão do meu pai e ver a televisão colorida. Cresci com a televisão e com os discos do Gilberto Gil e de Alcione. Mas também do Pink Floyd. Eu vi todos os programas de humor. Vi o genial Chico Anysio e seus patriarcas baianos, vi os corruptos urbanos de Jô Soares, vi as tentativas inovadoras da TV Pirata e uma infinidade  de Bobagens das Organizações Tabajara. Vi Sai de Baixo e os pobres rindo de um branco destilando ódio aos pobres. E no mesmo programa, as piadas que rendiam aplausos ao mostrar uma mulher “gostosa e burra” em horário nobre. Vi um país rindo de um personagem alcoólatra e uma praça que sendo “nossa” era cheia de ofensas ao povo, ofensas ao “simplório” ao “caipira”.  Sem falar na infinidade de representações sobre as bichas e sapatões, a humilhação de quem não tinha o corpo perfeito enquanto uma empregada semi nua subia uma cadeira para pegar um livro e era apalpada pelo patrão. Vi as gerações mais jovens da classe média da PUC fazendo algo engraçado, uma paródia do que já era velho, uma perseguição sobre a vida de um estilista querido e talentoso como Clodovil. Nunca irritaram os patrocinadores. Porque os negros sempre estiveram lá para fazer rir, sem que o contrário fosse possível. Nunca rimos dos que acreditam em meritocracia mas sempre aplaudimos os jovens do sudeste com suas piadas sobre morar com os pais aos 40 anos e ter uma empregada para lavar suas cuecas.

O pessoal acha engraçado imitar o Mano Brown como se estivesse passeando em um zoológico. Um homem negro tem de ser engraçado (para que não seja ameaçador, tem de ser domesticado, para que não seja um alvo). Acham que é uma homenagem construir um personagem para Grande Otelo que tem problemas com álcool. E acreditam que no Brasil, a Juliana Paes tem competência dramática para interpretar a negra Gabriela de Jorge Amado. Eu vi tudo que passou na televisão, todos os formatos, todos os personagens, todas as invenções. Elas sempre foram a cópia do mesmo, do domesticado, da graça que te faz dormir sem angústia porque a gente tinha de saber que as piadas sobre negro e capim (ambos deviam morrer ao nascer, para não crescer) eram só um momento de descontração na aula de veterinária da UFRGS. Afinal, o Brasil é o paraíso racial da mulata seminua com a qual a moçada do humor não casaria. Mas “pegaria com prazer”. Sempre tem aquela cota Noêmia , Pimenta, para que se saiba, “olha o pessoal é descolado mesmo”. Vamos continuar deixando que eles operem nosso imaginário e até cantem nosso samba. Que recreativo! Vidas negras importam, mas a gente pode até fazer esquete dizendo que somos racistas. Assim, eles não vão reparar nesta farsa sobre nosso humor progressista. Que genial. Quem fica com os milhões em propaganda? O Porchat.

Nós negros temos …

Nós temos a Motown Records, temos a diáspora, temos John Coltrane . Temos Garrincha e Ruth de Souza. Temos familiares presos, comida de menos e problemas demais. Temos uma relação com a morte de difícil tradução. Pois o Estado atualiza diariamente os padrões de sofrimento e racismo. Temos Carnavais em disputa e Orfeus. Temos Baden Powel, construção de si como fato, como ato, contra a violência da cultura de batata frita.

Temos Clara Nunes.

Vocês não são engraçados. Vocês são um clube de privilégio fechado que se ressente quando perde o biscoito e não suporta a nossa velocidade. Quando soltamos o murro, vocês gritam censura. O roteiro não saiu como esperado. Vocês passaram. Tipo fruta murcha.

E precisamos todos, enegrecer.


*Luciane Soares da Silva é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense  (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce).