Nova lei de agrotóxicos: como funciona? Ninguém sabe

Ainda sem normatização, lei centraliza a gestão de registros de agrotóxicos no Ministério da Agricultura

pacote do venenoAgricultura se reuniu pelo menos sete vezes com indústrias de agrotóxicos para discutir regulamentação – O Joio e o Trigo

Por Flávia Schiochet O Joio e o Trigo, em parceria com Fiquem Sabendo

nova lei de agrotóxicos, sancionada em dezembro, tem múltiplos problemas. Começando pela modificação estrutural preocupante que ela introduz: a centralidade do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) na coordenação das análises de registro de agrotóxicos. Isso significa que a prioridade de substâncias e produtos a serem analisados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) será definida pela Agricultura, agora o único órgão responsável por conceder o registro.

Só que a lei ainda está sem regulamentação, o que deixa Ibama e Anvisa em um limbo de competências. Os órgãos ainda operam conforme definido por um decreto de 2002, mas há brechas para que as atuações se tornem acessórias com a normatização de uma lei que, de largada, já enfraquece seus papéis.

Além disso, o novo arranjo foi feito de forma atropelada. O Senado votou o texto em regime de urgência a pedido da senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro e integrante da bancada ruralista.

O decreto de 2002 prevê, por exemplo, que as empresas apresentem todos os anos junto a Ibama, Anvisa e Mapa relatórios sobre quantidade produzida, importada, exportada e comercializada de agrotóxicos. Precisam também enviar detalhes, como o percentual de componente químico que há nos produtos. Com esses dados em mãos, o governo federal pode divulgar análises de interesse público.

É assim que o Ibama consegue publicar desde 2009 o Relatório Anual de Comercialização de Agrotóxicos, indicando quais produtos tiveram maior comercialização no ano e manter um registro público das substâncias mais usadas e para quais culturas. O nível de detalhamento é superior ao dos Estados Unidos – que publica estimativas de mercado – e reúne mais recortes que o da União Europeia – cuja apresentação de dados por país é do volume total.

O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), da Anvisa, é outro monitoramento importante que o Brasil faz. Desde 2001, o programa coleta duas vezes por ano amostras de alimentos vegetais mais consumidos pelo brasileiro e verifica se há resíduo de mais de 200 agrotóxicos. Em 2022, por exemplo, a agência testou 1.772 amostras de 13 vegetais coletados em 25 estados para verificar se havia algum resíduo de 311 agrotóxicos diferentes. Foram encontrados resíduos além do parâmetro considerado seguro em 25% das amostras.

Não há garantia que a captação de informações e a publicação dessas análises continuem previstas na regulamentação da nova lei. Ter os órgãos responsáveis por essas análises com o poder de vetar o registro de um agrotóxico faz sentido em qualquer país. E, mais ainda, no Brasil, que comercializou mais de 800 mil toneladas de agrotóxicos em 2022 – e que, desde 2011, é o país do mundo em que mais se usa esses produtos.

“É imprescindível que continuemos a análise de riscos à saúde humana no país em que mais se usam esses produtos”, defendeu Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, em entrevista ao Joio.

A nova lei não prevê mais a figura do Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos (CTA). O CTA era composto por Mapa, Anvisa e Ibama, e os três aprovavam ou reprovavam os pedidos de registro de acordo com suas análises. Se um dos órgãos não concedia o registro, o agrotóxico não era aprovado para comercialização.

Os órgãos seguem recebendo cadastros distintos com documentos específicos anexados pelo fabricante: ao Mapa cabe analisar as questões de eficiência agronômica; à Anvisa, os riscos à saúde humana; e, ao Ibama, os riscos ao meio ambiente. Na nova legislação, os três órgãos continuam com as análises de estudos e dossiês, mas a estrutura tripartite para concessão do registro foi extinta. Apenas o Mapa mantém essa prerrogativa.

Isso foi feito na nova lei retirando a expressão “conceder registro” das competências do Ibama e da Anvisa, e incluindo definições como “apoiar tecnicamente os órgãos competentes” e “priorizar as análises dos pleitos de registro dos agrotóxicos conforme estabelecido pelo órgão registrante”. Na prática, Ibama e Anvisa enviam seu parecer ao Mapa, funcionando como conselheiros. Se as advertências serão levadas em conta pela Agricultura na hora de decidir se aprova ou não um novo agrotóxico, não se sabe.

“Não existe mais a figura do indeferimento dos órgãos de saúde e meio ambiente e isso coloca as agências em uma situação delicada. Tomar decisão sobre liberação de agrotóxicos não é papel de quem tem olhar apenas sobre economia e aumento de produção, porque aí não se fala do risco ambiental e à saúde do trabalhador. Os órgãos que não têm interferência direta começam a perder o poder e acabam abandonando a atividade, porque há falta pessoal”, alerta Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Para ele, que durante muitos anos esteve à frente do setor de análise de agrotóxicos da Anvisa, os riscos são concretos. “Um perigo é que se voltem ideias como contratar um escritório terceirizado para fazer as avaliações toxicológicas, tirando essa competência da Anvisa.”


A nova lei concentrou poderes nas mãos do Mapa, mas esses poderes podem se tornar ainda maiores / Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Limbo de competências

A coordenação de registros se dará pelo Sistema Integrado de Agrotóxicos (SIA), uma plataforma em que servirá como “guichê único” para o pedido de registro. A previsão é que o sistema comece a ser testado neste mês de agosto. Mas, por enquanto, o caminho para registrar um agrotóxico continua o mesmo: Mapa, Anvisa e Ibama recebem os pedidos de registro em seus respectivos sites, gerando uma fila de espera para cada um. Com o SIA, a fila de espera de análise de registro será a mesma para os três órgãos, e a decisão será do Mapa.

“A gestão do Mapa se dará a partir dessa ferramenta”, afirma Edilene Cambraia, diretora de Sanidade Vegetal e Insumos Agrícolas do ministério. “Enquanto não tem o SIA, tudo continua como está”, garante. “O registro continua tripartite igual, precisa da manifestação dos três [órgãos], cada um faz sua análise. Com a nova lei, o Mapa passa a coordenar a distribuição, que não é diferente do que fazemos hoje, só que isso fica transparente de forma que os três órgãos acompanhem o registro um do outro”.

Uma fonte ouvida pelo Joio esteve em uma reunião com representantes da Anvisa em maio e disse que o clima na agência é de incerteza e falta de direcionamento para suas futuras competências institucionais.

Em nota, a agência afirmou que “mesmo que se verifique a necessidade de ajustes normativos e de processos de trabalho, considerando a expertise da Anvisa e suas atribuições relacionadas a avaliações toxicológicas relacionadas à saúde humana, não se vislumbra que as conclusões da reavaliação, por exemplo, sejam consideradas meras recomendações para o órgão registrante [Mapa]”. A agência pontua que tem um ano para adequar as normativas infralegais e fluxos de trabalho após a publicação da lei. Foram feitas duas solicitações para entrevistar um representante da Anvisa durante a primeira quinzena de julho. A agência não retornou até o fechamento desta reportagem.

Por enquanto, a nova lei não paralisou as atividades em andamento, como o relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos 2023/2024, que será lançado em 2025, informou a agência via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Fontes ouvidas pelo Joio apontam para tentativas do Mapa ao longo das últimas duas décadas de instituir programas e análises próprias que seriam similares às competências de Anvisa e Ibama. Uma delas é o Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes em Produtos de Origem Vegetal (PNCRC/Vegetal), que é similar ao Para da Anvisa, mas que investiga uma gama menor de substâncias químicas e gera resultados mais positivos para o agronegócio. “Como são menos substâncias testadas, muitos alimentos recebem o resultado de estarem livres de agrotóxicos. São falsos negativos, pode haver resíduos de outros produtos, mas que não foram testados”, alerta Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz.

No Ibama, as análises de registro de agrotóxico também seguem. Atualmente, são mais de 2,2 mil pedidos na fila de espera do instituto. Segundo o presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, a equipe responsável pelas avaliações é de 22 pessoas. Ele garante que a nova lei não interrompe os processos internos do instituto. “Nosso entendimento é que a lei não muda a prerrogativa do Ibama. Enquanto persistirem essas substâncias, o Ibama tem seu papel mantido, sem hierarquia”, diz.

Questionado pelo Joio se é possível que os órgãos esvaziem seus setores de agrotóxicos e, com isso, haja um apagão de dados, Agostinho respondeu que a análise e controle de substâncias químicas é uma atribuição institucional prevista na lei de criação do órgão, em 1989, e que o quadro técnico será reposto por um concurso que deve ocorrer em 2025. A autorização do concurso com 260 vagas foi feita em junho, e o edital pode ser publicado até dezembro.

“A regulamentação vai estabelecer como vai se dar a operacionalização de ritos, sistemas, comandos normativos e normas infralegais, bem como modelos de requerimento, certificado de registro, parâmetros para bulas, rótulos, todos esses pontos que entendemos necessários”, declarou Agostinho, sem confirmar se já há algo definido em algum desses pontos. 

Questões indefinidas e brechas da lei

Algumas questões seguem indefinidas. É uma incógnita, por exemplo, se a regulamentação trará alguma mudança nos documentos enviados à Anvisa e ao Ibama, e se estes terão prerrogativa para agir de forma autônoma solicitando novos dados e aprofundamento de estudos à indústria.

Este é um dos desmontes possíveis diante das brechas da nova lei que, durante a tramitação, ficou conhecida como “Pacote do Veneno“. Passados sete meses da aprovação, a Câmara votou apenas metade dos vetos presidenciais, e derrubou todos. Não há previsão para votar o restante dos vetos, mas isso não impede a regulamentação da parte já sancionada e publicada.

Questionado pelo Joio sobre como estuda fazer a regulamentação, o Ministério da Agricultura deu duas respostas diferentes em menos de um mês.

Em 17 de julho, a Coordenação-Geral de Fertilizantes, Inoculantes e Corretivos respondeu via LAI que não há intenção de fazer uma portaria para definir as competências específicas da pasta. “Destaca-se que já está bem claro na supracitada legislação quais são as competências do Mapa e dos outros órgãos que participam do processo de registro”, diz a nota. A coordenação é subordinada à Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA).

O posicionamento mudou em 29 de julho. Em entrevista, Edilene Cambraia, da SDA, afirmou que Mapa, Ibama e Anvisa têm debatido internamente a regulamentação da lei desde o início do ano. “Não é uma regulamentação feita do dia para noite. Quando tivermos uma proposta concluída, seguiremos os trâmites para consulta pública. Pretendemos fazer isso até o final do ano”, declarou.

A informação das reuniões foi confirmada pelo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, mas o Joio não encontrou registros públicos dos encontros interministeriais sobre o assunto. O Ibama também parece participar menos das discussões sobre regulamentação quando o assunto é agrotóxico.

Mapa e Anvisa discutem assuntos regulatórios com indústria

Segundo dados apurados pelo projeto Lobby na Comida, produzido pela Fiquem Sabendo (FS) em parceria com o Joio, as agendas do Mapa e Anvisa estiveram bastante ocupadas para discutir “regulamentação” entre abril de 2023 e junho de 2024. O levantamento foi feito por meio da ferramenta Agenda Transparente, desenvolvida pela FS, e o relatório com o estudo completo foi lançado hoje.

Associações, empresas e lobistas ligados a agrotóxicos e agronegócio estiveram reunidos com Anvisa ou Mapa em 20 ocasiões para discutir algum tipo de regulamentação. Em pelo menos seis delas, o tema era a nova lei de agrotóxicos. Na maior parte das agendas públicas, a pauta é deixada em branco, o que dificulta ter o número real de encontros em que o assunto foi tratado. Não foi encontrada nenhuma presença de representantes do Ibama nos resultados dessa pesquisa.

Só o titular da Secretaria de Defesa Agropecuária, Carlos Goulart, se encontrou quatro vezes com representantes da CropLife, associação que reúne empresas de biotecnologia, agrotóxicos e bioinsumos, para tratar de “regulamentação”. A Ourofino, fabricante brasileira de agrotóxicos, foi recebida duas vezes e o Sindiveg, também duas, pelo secretário.

Já a Anvisa teve diferentes diretores e gerentes encontrando representantes da CropLife, Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina (Abifina), Ourofino, Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), Associação Brasileira de Defensivos Pós-Patente (Aenda) e da União dos Produtores e Fabricantes Nacionais de Fitossanitários (Unifito) ao longo desse período para discutir o mesmo tema.

Com o filtro de regulamentação, o Joio não encontrou nenhum membro de entidades da sociedade civil presente nas reuniões. A situação sugere que o Executivo esteja mais interessado em ouvir o pleito da iniciativa privada que organizações ligadas aos temas de saúde e meio ambiente.

Ao analisar as agendas considerando apenas os visitantes registrados como diretores, gerentes, consultores ou analistas de assuntos regulatórios ligados a fabricantes de agrotóxicos e associações, o número é de 26 pessoas. A Sumitomo foi a indústria com a maior comitiva, com cinco pessoas, seguida pela BASF, com quatro.

A presença dessas figuras em reuniões – muitas vezes feitas a portas fechadas, sem divulgação de atas – chama a atenção para o risco de ministros e servidores públicos estarem sendo influenciados por interesses corporativos na construção da regulamentação. Um risco é uma redação menos rigorosa de uma portaria ou decreto, beneficiando a agenda dessas indústrias e associações.

Uma lei, múltiplos problemas

Alertas sobre as falhas do Pacote do Veneno não faltaram durante a tramitação do projeto de lei e após sua aprovação. Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Direitos Humanos e até relatores das Nações Unidas chamaram atenção para os problemas, especialmente a centralização do registro de agrotóxicos no Ministério da Agricultura. Os conselhos ligados à Presidência, inclusive, recomendaram que Lula vetasse integralmente o projeto de lei.

“Tudo isso foi ignorado. Retrocedemos a um tipo regulatório de 1934, quando eram decretos que regulavam inseticidas dentro do Mapa e do Instituto de Química Agrícola, e só saberemos o cenário regulatório no final de 2024, quando o prazo para a regulamentação termina”, diz Leonardo Pillon, advogado do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec.

Críticas à nova legislação vão além da centralização do pedido de registro no Mapa e abarcam também as diretrizes frouxas e interpretações abertas que a falta de parâmetro permite.

Uma delas é o uso da expressão “risco inaceitável” para falar da proibição de agrotóxicos. Na lei anterior, era citado que produtos que apresentassem “características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas” ou com potencial de provocar “distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor”, segundo estudos científicos, deveriam ser proibidos. Com a nova redação, o entendimento pode ser o de que o produto químico não apresenta riscos ambientais e à saúde se aplicado corretamente.

Mesmo com a regulamentação, a sociedade civil organizada não acredita que haverá soluções dos vácuos na nova lei de agrotóxicos. Por isso, as organizações do terceiro setor preparam em conjunto uma ação direta inconstitucional (ADI) para ajuizar no Supremo Tribunal Federal e tentar derrubar a lei integralmente ou pelo menos parte dela.

“Esses quase 30 anos que os projetos de lei foram sendo alterados e viraram o Pacote do Veneno foram um período longo de disputa. Mesmo que tivéssemos uma legislação que limitava os usos de agrotóxicos, o Brasil já era campeão no uso, à frente dos Estados Unidos”, diz Jaqueline Andrade, advogada da ONG Terra de Direitos, uma das organizações que assinará a ADI. A expectativa é que, pelo menos, Anvisa e Ibama tenham seus poderes restituídos.

“Com uma aprovação tão ampla na Câmara e Senado, talvez o Supremo avalie retirar alguns dos dispositivos. Se houver algum vazio legislativo, pode ser que se entenda necessária uma nova lei. Se for considerado tudo inconstitucional, volta para a legislação de 1989 e seus decretos e portarias”, explica Emiliano Maldonado, professor da Faculdade de Direito do Rio Grande do Sul e advogado da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que também prepara a ação, que deve ser ajuizada no Supremo ainda em 2024.


Ignoradas pela bancada ruralista, as organizações da sociedade preparam uma ação a ser apresentada ao Supremo / Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida


Fonte: ContraosAgrotóxicos

Governo federal se reuniu com lobistas e empresas de agrotóxicos ao menos uma vez a cada 5 horas entre 2022 e 2024

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Por Fiquem Sabendo

Durante as tramitações de novas regras de uso, fiscalização, tributação e liberação dos agrotóxicos, o governo federal teve ao menos 752 compromissos registrados com participação de lobistas e representantes de empresas relacionadas a agrotóxicos. Isso significa que ocorreu pelo menos 1 reunião de autoridades do governo com o lobby dos agrotóxicos a cada 4 horas e 48 minutos entre outubro de 2022 e agosto de 2024 – considerando horas úteis da jornada de trabalho e excluindo fins de semana, feriados e pontos facultativos nacionais. 

A maioria dos compromissos ocorreu no gabinete da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), local que sediou 56 encontros com lobistas ou representantes de empresas do setor. Já no gabinete do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, foram ao menos 12 reuniões. A maior parte dos encontros foi realizada por videoconferência (232 registros, cerca de 30% do total).

Os meses que tiveram maior frequência de registros de reuniões foram maio e abril de 2024 – 1 a cada 5 compromissos levantados no período aconteceram nesses meses. Em maio foram 70 agendas e em abril foram 67. Nessa época, o Ministério da Fazenda enviou o projeto de regulamentação da Reforma Tributária sem incluir os agrotóxicos no Imposto Seletivo. Também foi nesse período que o Congresso Nacional derrubou metade dos vetos do presidente Lula (PT) à Nova Lei dos Agrotóxicos, tirando Ibama e Anvisa do processo de aprovação de novos produtos. 

Em 2023, os meses com maior ocorrência de encontros do governo federal com lobistas dos agrotóxicos foram agosto (52 registros) e setembro (48 registros), época em que tramitava no Senado a Reforma Tributária, em que se discutia justamente o “Imposto Seletivo” para sobretaxar produtos nocivos à saúde. 

Levantados utilizando a Agenda Transparente, ferramenta gratuita desenvolvida pela Fiquem Sabendo (FS) que permite monitorar as agendas oficiais do Executivo federal, os dados fazem parte do terceiro relatório do projeto Lobby na Comida, produzido pela FS em parceria com o site O Joio e O Trigo, com apoio dos institutos Ibirapitanga e Serrapilheira. Na publicação, analisamos o trânsito dos lobistas que atuam em prol dos agrotóxicos no Executivo federal ao longo das discussões sobre o Imposto Seletivo da Reforma Tributária e o PL do Veneno, que se tornou a Nova Lei dos Agrotóxicos (Lei 14.785 de 2023). 

Leia o relatório na íntegra 

Acesse a planilha completa com as agendas analisadas

Confira no gráfico os meses com mais compromissos registrados

Saiba o que estava em discussão enquanto lobby dos agrotóxicos se reunia com o governo

As 752 agendas do governo federal com lobistas dos agrotóxicos aconteceram durante mudanças regulatórias relevantes para o setor, como a Nova Lei dos Agrotóxicos – decorrente do PL do Veneno – e a Reforma Tributária. Em uma série de reportagens do site O Joio e O Trigo, produzida em parceria com a Fiquem Sabendo, mostramos o papel do lobby nos rumos dessas decisões.

Em “Agrotóxico, o assunto ignorado pela reforma tributária”, foi revelado que o governo federal ignorou as recomendações da sociedade civil e de órgãos orientados para a saúde coletiva ao não incluir os produtos químicos no Imposto Seletivo da Reforma Tributária. Enquanto isso, durante o período de discussão da Reforma, o governo federal realizou dezenas de reuniões com o lobby dos agrotóxicos. 

A reportagem “Ministério da Agricultura boicota programa de redução de agrotóxicos há dez anos” expõe como o órgão tem atuado para impedir o avanço do programa que propõe maior controle sobre o uso dos agrotóxicos. E por fim, a reportagem “Nova Lei de Agrotóxicos: Como funciona? Ninguém sabe” traz os bastidores da regulamentação das novas regras, mostrando as reuniões do Mapa com entidades representantes dos agrotóxicos para tratar do assunto.

Como adiantamos na Don’t LAI to Me #129, 2022 foi o ano em que o Brasil bateu recorde no registro de agrotóxicos, com 652 produtos liberados pelo Mapa. Syngenta, Bayer, Adama e Basf estão entre as empresas que mais pediram liberação de agrotóxicos em toda a série histórica disponibilizada, e também estão entre as que mais conseguiram registros por ação judicial no período de 2019 a 2023, segundo os dados do Ibama. Essas empresas também se destacam nos encontros mapeados no estudo.

Esses destaques estão no relatório “Regulamentação de agrotóxicos: o trânsito de lobistas no Executivo federal em meio à definição de novas regras”, o terceiro que compõe o projeto Lobby na Comida, realizado pela Fiquem Sabendo, com apoio dos institutos  Ibirapitanga e Serrapilheira. 


🟦 Reforma Tributária, Consea, agrotóxicos: relatórios analisam encontros do governo federal com lobistas em pautas ligadas à alimentação

Iniciado em agosto de 2023, o projeto Lobby na Comida teve como propósito demonstrar como os registros oficiais dos compromissos de autoridades públicas podem ser uma fonte de estudo científico e investigação jornalística sobre a atuação de lobistas frente a importantes momentos decisórios. 

No primeiro relatório, lançado em novembro de 2023, monitoramos 1.810 compromissos das autoridades do governo federal com o tema da Reforma Tributária e analisamos como a indústria de ultraprocessados se mobilizou ao longo da tramitação da PEC da Reforma no Legislativo. 

Já no segundo relatório, lançado em maio de 2024, mostramos as principais políticas de combate à fome adotadas pelo governo federal a partir das recomendações do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), além dos compromissos das autoridades do Executivo federal com representantes da indústria alimentícia para tratar da agenda de insegurança alimentar.

Fechando a trilogia do projeto, lançamos em primeira mão nesta edição da Don’t LAI to Me um relatório feito em parceria com O Joio e O Trigo, com a análise dos mais de 700 compromissos que indicam como o lobby atua para influenciar a regulação, fiscalização e tributação dos agrotóxicos no país. 

Acesse aqui a íntegra dos relatórios do Lobby na Comida

O projeto Lobby na Comida conta com o apoio dos institutos Ibirapitanga e Serrapilheira para mapear eventuais conflitos de interesse em políticas públicas de alimentação.


Fonte: Fiquem Sabendo

O lobby mortal da indústria de agrotóxicos

Um novo estudo descobriu que a quantidade de agrotóxicos utilizada em propriedades rurais estava fortemente associada à incidência de câncer. Isso vem logo após um forte lobby da indústria de pesticidas para limitar sua responsabilidade nos processos judiciais relacionados aos impactos na saúde de seus produtos

danger pesticides

Um aviso colocado na borda de um campo de aipo para indicar que o campo não era seguro para entrada pouco depois da aplicação de pesticidas no Vale de Salinas, Califórnia, no dia 7 de julho de 2023. (Jack Clark / Design Pics Editorial / Universal Images Group via Getty Images)

Por Lois Parshley, Tradução Sofia Schurig, para a “Jacobina” 

Um novo estudo descobriu que a quantidade de agrotóxicos utilizada nas fazendas estava fortemente associada à incidência de muitos tipos de câncer — não apenas para os agricultores e suas famílias, mas para comunidades inteiras. Isso vem logo após lobby significativo da indústria de agrotóxicos na primavera para limitar sua responsabilidade por processos judiciais relacionados aos impactos na saúde de seus produtos.

A análise recém-lançada mostrou que “os agrotóxicos agrícolas podem aumentar seu risco para alguns tipos de câncer tanto quanto o tabagismo”, diz o coautor Isain Zapata, professor associado de pesquisa e estatísticas na Rocky Vista University, no Colorado. Por exemplo, viver em lugares com alto uso de pesticidas aumentou o risco de câncer de cólon e pâncreas em mais de 80%, resultados que surpreenderam até mesmo os pesquisadores.

“Na minha opinião, isso é loucura”, disse Zapata, acrescentando que eles não esperavam encontrar uma associação tão significativa.

A ideia para a pesquisa surgiu de um dos alunos de Zapata, um estudante de medicina que cresceu em uma fazenda. Os cientistas obtiveram dados sobre o uso de sessenta e nove pesticidas diferentes a partir de pesquisas conduzidas pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Eles então compararam esses dados com as taxas de incidência de câncer por condado em todo o país, utilizando bases de dados do Instituto Nacional de Saúde e dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças de 2015 a 2019.

Finalmente, ajustaram a análise para outros fatores que poderiam ter contribuído, incluindo disparidades socioeconômicas. Os resultados foram publicados na quinta-feira no jornal acadêmico Frontiers in Cancer Control and Society (Fronteiras no Controle do Câncer e na Sociedade).

Os pesquisadores afirmam que este estudo é a primeira avaliação abrangente do risco de câncer associado aos agrotóxicos em nível populacional. Zapata explicou que eles foram cuidadosos para não atribuir danos a compostos ou empresas específicas, pois na realidade as pessoas frequentemente estão expostas a múltiplos agrotóxicos, complexos “coquetéis” que podem ter impacto muito além do local onde foram aplicados originalmente. O vento pode levar resíduos dos campos ou a água da chuva pode carregar substâncias químicas para o lençol freático, ele explica.

“Pense nisso como o escapamento em uma cidade”, diz ele. “Você pode ser exposto a ele mesmo sem estar dirigindo.”

Os pesticidas são atualmente parte integrante do sistema agrícola industrializado do país: de acordo com o USDA, cerca de um bilhão de libras de agrotóxicos são usados a cada ano, em quase todos os estados do país.

A indústria argumenta que as regulamentações atuais de pesticidas são rigorosas e que o governo deveria “controlar as ervas daninhas, não a agricultura”. No entanto, trabalhadores rurais relataram lesões após serem pulverizados por aviões agrícolas ou hospitalizações após colherem produtos recém-tratados. Enquanto isso, produtos químicos associados à infertilidade são amplamente encontrados em alimentos como Cheerios.

“Trabalhadores rurais relataram lesões após serem pulverizados por aviões agrícolas ou hospitalizações após colherem produtos recém-tratados.” 

O novo estudo contribui para um longo debate científico sobre quão prejudiciais os pesticidas podem ser, um corpo de pesquisa que alguns cientistas afirmam ter sido prejudicado pela indústria, retardando a regulamentação. Leland Glenna, um professor que estuda os impactos sociais e ambientais da ciência e tecnologias agrícolas na Penn State, e que não esteve envolvido no estudo da Frontiers, disse que esse tipo de análise epidemiológica é crucial porque é “difícil contestar tendências populacionais amplas”.

Frequentemente, a toxicidade dos pesticidas é determinada em estudos controlados com animais, já que existem preocupações éticas com testes de produtos químicos em pessoas. Mas expor ratos de laboratório a pesticidas não necessariamente demonstra o que essas substâncias podem fazer com seres humanos que vivem e trabalham regularmente com elas.

Para complicar ainda mais, a Agência de Proteção Ambiental (Environmental Protection Agency – EPA), que monitora e aprova pesticidas, estuda apenas ingredientes ativos isoladamente. Eles ignoram outros ingredientes inertes que podem ainda conter substâncias nocivas como PFAS (conhecidos como “produtos químicos eternos”) e não examinam as formulações finais do produto — apesar de evidências substanciais de que a combinação de ingredientes pode torná-los mais tóxicos.

Veneno sob medida

Um dos pesticidas mais controversos em uso hoje é o glifosato, também conhecido pelo nome comercial Roundup. Sua fabricante original, a Monsanto, sediada no Missouri, foi adquirida pela empresa multinacional de biotecnologia Bayer em 2018, desenvolvendo interesse por herbicidas durante os anos 1960.

Eles foram um dos principais fabricantes do Agente Laranja, um desfolhante amplamente utilizado durante a Guerra do Vietnã para eliminar a cobertura vegetal para o Viet Cong, que o Exército dos EUA estava combatendo. (Cientistas levantaram preocupações sobre o Agente Laranja já em 1965; mais tarde foi comprovado que causava impactos severos à saúde, incluindo defeitos de nascimento e câncer. Um dos ingredientes do Agente Laranja, o 2,4-D, ainda é amplamente usado como herbicida nos Estados Unidos, incluindo em produtos comuns de cuidado com o gramado.)

Após a guerra, a Monsanto desenvolveu o Roundup, que foi promovido como uma alternativa mais segura a outros herbicidas. O glifosato mata as plantas inibindo uma enzima que as plantas usam para produzir energia. Embora os humanos não possuam essa enzima, algumas pesquisas descobriram que ela compartilha caminhos com as bactérias intestinais, perturbando nosso microbioma. Isso pode levar à inflamação e estresse oxidativo, danificando o DNA celular.

Com o tempo, esses danos podem se acumular, desencadeando mutações que causam câncer. Mesmo em níveis muito baixos de exposição, o glifosato pode perturbar o sistema endócrino, acelerando o crescimento de tumores.

Nos anos 1990, a Monsanto começou a vender sementes geneticamente modificadas para que os agricultores pudessem pulverizar o Roundup sobre as colheitas, e apenas as ervas daninhas morressem. Quanto à toxicidade de pesticidas, diz Lori Ann Burd, diretora do programa de saúde ambiental da organização sem fins lucrativos Center for Biological Diversity, o glifosato está longe de ser o pior. Mas ela acrescenta que o veneno está na quantidade da dose. “Desenvolvemos todo um sistema agrícola em torno das culturas resistentes ao Roundup”, diz Burd, “e por causa disso, usamos uma quantidade tão absurdamente grande que está causando danos enormes”.

O glifosato é agora o  agrotóxico mais usado nos EUA, com um mercado global de 10 bilhões de dólares. Ele foi detectado em níveis inseguros em águas pluviais e em mulheres grávidas sem exposição conhecida. E assim como o Agente Laranja, a Monsanto negou publicamente os riscos associados por muitos anos — mesmo que documentos internos da empresa mostrem que tinha razões para acreditar que o glifosato era perigoso desde pelo menos 1983.

Em um estudo de 2021, Glenna da Penn State descobriu que a Monsanto, agora de propriedade da Bayer, anteriormente tentou manipular o processo de revisão por pares científicos. Ele documentou os esforços da empresa usando e-mails internos divulgados durante um processo judicial, mostrando que a Monsanto usou autores fantasmas e conduziu campanhas para influenciar decisões editoriais em revistas acadêmicas, com o objetivo aparente de “manipular o processo regulatório para poder continuar vendendo um produto que a pesquisa da própria empresa indicava ser perigoso”.

“A Monsanto utilizou autores fantasmas e conduziu campanhas para influenciar decisões editoriais em revistas acadêmicas.” 

Em resposta a um pedido de comentário, Jessica Christiansen, chefe de comunicações de ciência da colheita da Bayer, escreveu em uma declaração por e-mail: “Nós apoiamos um sistema regulatório previsível e baseado na ciência e a certeza e disponibilidade que ele proporciona aos agricultores americanos”.

Glenna explicou que tanto o público quanto os reguladores tendem a confiar em estudos revisados por pares e desconfiar de pesquisas patrocinadas por empresas. Por isso, em um e-mail, um funcionário da Monsanto explicitamente diz que o objetivo de não listar pessoas da empresa como autores é “ajudar a aumentar a credibilidade”. Outros e-mails mostram interpretações seletivas de resultados de toxicidade e mais preocupação em evitar estudos de acompanhamento do que com a segurança pública.

A EPA baseou-se nesses tipos de estudos quando concluiu em 2016 que o glifosato “provavelmente não é carcinogênico para os humanos” e emitiu uma decisão de reaprovação do agrotóxico em 2020. Isso contradiz diretamente a pesquisa das principais autoridades globais na Organização Mundial da Saúde (OMS), que encontraram o glifosato como um provável carcinógeno em 2015. A EPA dependeu muito de estudos regulatórios não publicados, enquanto a organização de saúde internacional baseou-se principalmente em trabalhos revisados por pares.

Em 2022, o Tribunal de Apelações do Nono Circuito determinou que a decisão da EPA foi baseada em procedimentos defeituosos, observando que o próprio painel consultivo científico da agência havia criticado os critérios que ela utilizou. Eles exigiram que a EPA reavaliasse o pesticida; dois anos depois, isso ainda não foi feito.

Liberdade sem fiscalização

Essas revisões de registro de agrotóxico são rotineiramente atrasadas. Parte do problema, segundo Glenna, é que os reguladores precisam depender das indústrias para liberar informações toxicológicas porque estas são consideradas informações proprietárias. “[É] propriedade intelectual”, diz ele, “então cientistas de universidades ou financiados pelo público simplesmente não têm a capacidade de realizar essa pesquisa”.

Quando um agrotóxico é registrado pela primeira vez com os reguladores federais, a grande maioria das informações disponíveis sobre ele é científica e conduzida pela empresa que o fabricou. “A presunção nos EUA é a favor da segurança do produto químico”, diz Burd. Em outros lugares, como na União Europeia, “os produtos químicos não são considerados seguros por padrão; adotam uma abordagem muito mais precaucionária”.

Na verdade, dacordo com a legislação federal, a EPA só pode recusar o registro de um pesticida se seus riscos forem maiores do que os benefícios que ele proporciona, medidos pela produtividade ou qualidade das colheitas. Como resultado, cerca de um terço do uso de agrotóxicos nos EUA envolve produtos químicos proibidos na China, Brasil e União Europeia.

Há também uma porta giratória entre a agência e a indústria que regula. Alexandra Dunn, ex-administradora assistente do Escritório de Segurança Química e Prevenção da Poluição, por exemplo, agora lidera a CropLife America, o principal grupo de lobby da indústria de pesticidas. Ela é apenas a mais recente; desde 1974, todos os diretores do escritório passaram a trabalhar para empresas de agrotóxicos.

Esta influência da indústria dentro da agência é exacerbada pelo fato de que cerca de 40% do financiamento do Escritório de Segurança Química e Prevenção da Poluição da EPA vem de taxas de registro — pagas pelas próprias empresas.

“O Projeto 2025 deseja garantir que as regulamentações químicas dos EUA permaneçam ‘baseadas em risco, em vez de adotar abordagens precaucionárias baseadas em perigos’.”

Monsanto descreveu a maneira como aproveitou esse ambiente regulatório como “Liberdade para Operar”, um princípio operacional que definiu em e-mails internos da empresa como “as ações regulatórias, técnicas, de marketing e comunicação para estabelecer um ambiente mais favorável para garantir as autorizações de nossos produtos e tecnologias”.

Essas ações incluíram premiar funcionários por defender a empresa após a designação do Roundup como cancerígenos pela OMS, e manipular relatórios de exposição no local de trabalho de funcionários doentes.

Os reguladores podem em breve estar dando um passo adicional para trás. O Projeto 2025, um relatório de políticas conservadoras desenvolvido por interesses corporativos para moldar uma futura administração de Donald Trump, afirma que os programas da EPA “são constantemente pressionados para banir o uso de certos produtos químicos, geralmente baseados no medo como resultado de ciência mal caracterizada ou incompleta”. Ele deseja garantir que as regulamentações químicas dos EUA permaneçam “baseadas em risco, em vez de adotar abordagens precaucionárias baseadas em perigos”.

Em última análise, ele advoga que “[os] agricultores e o sistema alimentar devem estar livres de qualquer intervenção governamental desnecessária” e que os reguladores agrícolas deveriam priorizar “a liberdade pessoal, a propriedade privada e o Estado de Direito”.

Ameaça existencial

Embora a Bayer insista que o produto que herdou de sua fusão de 2018 com a Monsanto é seguro, enfrenta mais de 170.000 processos judiciais relacionados ao glifosato, mesmo após um acordo de $10 bilhões em 2020 com milhares de vítimas que afirmam que o pesticida causou suas doenças. Nesta primavera, a gigante de biotecnologia tem feito lobby no Congresso para restringir sua responsabilidade por processos judiciais relacionados à exposição ao glifosato, incluindo o trabalho para redigir uma linguagem sobre o assunto no próximo projeto de lei agrícola.

Segundo o Washington Post, os deputados Dusty Johnson (R-SD) e Jim Costa (D-CA) trabalharam em estreita colaboração com a empresa para redigir a medida que impede futuros pagamentos por processos judiciais relacionados ao glifosato, que foi posteriormente adicionada ao projeto de lei agrícola, responsável por definir a política agrícola do país a cada cinco anos e previsto para votação neste outono. O comitê de ação política da empresa também contribuiu para as campanhas de Johnson e Costa por várias eleições.

Durante um discurso em uma conferência nesta primavera, o CEO da Bayer, Bill Anderson, chamou a potencial responsabilidade legal pelos impactos à saúde de seus pesticidas de uma “ameaça existencial”. Agora, está considerando usar uma estratégia chamada Texas two-step“. Nesse movimento legal, uma empresa se divide em duas, sendo que uma metade mantém os ativos e a outra os passivos. Esta última então entra com pedido de falência, forçando as pessoas que buscam compensação a entrar na justiça de falências, o que frequentemente resulta em acordos adiados ou menores.

Além de seu lobby federal, a Bayer intensificou seus esforços de lobby estado por estado. Ela forneceu linguagem semelhante para projetos de lei apresentados este ano eMissouriFlóridaIdaho e Iowa, que protegeriam as empresas de pesticidas de futuros processos judiciais relacionados ao glifosato, em parte excluindo essas empresas dos requisitos estaduais de informação sobre seus potenciais perigos ou riscos.

Em sua declaração ao Lever, Christiansen da Bayer escreveu que o “apoio da empresa a legislações como essa, tanto em nível federal quanto estadual, ajuda a proteger a integridade do processo regulatório e garante que as conclusões minuciosas e baseadas cientificamente da EPA sejam a base para os rótulos de proteção de cultivos”.

Em Idaho, o vice-presidente de assuntos governamentais estaduais e locais da Bayer apresentou pessoalmente o projeto de lei que a empresa esperava aprovar em um comitê do Senado. Para angariar apoio ao projeto de lei, a empresa aumentou seus gastos no estado, gastando mais de US$8.000 e empregando pelo menos três pessoas. Ela veiculou anúncios em jornais locais proclamando: “Apoie os Agricultores de Idaho, Não Advogados de Julgamento”. A Bayer também criou uma coalizão multiestadual chamada Modern Ag Alliance, afirmando que oitocentos empregos em Idaho estão ligados à produção de glifosato, juntamente com quinhentos em Iowa.

As iniciativas legislativas foram derrotadas em Idaho e Flórida, mas passaram pelo Senado estadual em Iowa e ainda estão tramitando na casa legislativa de Missouri.

Essas táticas fazem parte do plano de cinco partes da empresa para lidar com sua responsabilidade, o qual está sendo usado para tranquilizar acionistas preocupados. Segundo documentos da empresa, o primeiro passo é “buscar uma decisão positiva da Suprema Corte dos EUA”.

Assim como em seus projetos de lei estaduais propostos, a empresa argumenta que, como a EPA até agora concluiu que o glifosato não causa câncer e não exige um rótulo de aviso, as leis estaduais de falha em avisar devem ser preteridas. Eles entraram com duas ações judiciais federais com esse objetivo, que atualmente estão em tramitação nos tribunais.

Burd diz que não está surpresa com as manobras da Bayer, mas “o que é decepcionante é que há tantos legisladores dispostos a apoiá-las”.

Embora o glifosato tenha um perfil alto, Zapata, da Rocky Vista University, diz que o problema final é muito mais complexo do que apenas um pesticida, ou mesmo uma empresa tão influente como a Bayer.

“O fato de não ouvirmos sobre outras coisas não significa que não seja um problema”, ele diz. É por isso que seu estudo recente tentou capturar o quadro geral de como, coletivamente, esses compostos estão de fato influenciando a saúde das pessoas.

Ele afirma que suas motivações são apolíticas — e que há muita responsabilidade a ser compartilhada. “Se queremos ir ao supermercado e comprar tomates baratos, provavelmente eles serão produzidos usando um sistema muito industrializado”, ele diz.

Ao mesmo tempo, ele reconhece que divulgar esse tipo de risco tem um valor econômico e ético. “Se você compra terra em uma área com alta capacidade agrícola, está assumindo também parte desse risco”, ele explica. E as pessoas que têm a capacidade de escolher viver em outro lugar, ou que têm recursos suficientes para não precisar trabalhar em empregos mal remunerados com maior exposição, estão simplesmente terceirizando esse perigo.

“Se você não mora naquele lugar, outra pessoa terá que morar”, diz Zapata.


Você pode se inscrever no projeto de jornalismo investigativo de David Sirota, o Leveraqui.

Sobre a autora:  Lois Parshley é uma jornalista investigativa premiada. Seu trabalho já foi publicado na New Yorker, no New York Times, na Harper’sNational Geographic e mais.


Fonte: Jacobina

Destino da Bayer: tudo depende do glifosato

Dados trimestrais da Bayer: os preços dos herbicidas caíram. Menos, apesar da destruição de empregos. Iniciativa legislativa da multinacional alemã visa acabar com processos judiciais nos EUA

194915O grupo sediado em Leverkusen ainda enfrenta 57 mil ações judiciais de vítimas do glifosato (aplicação de glifosato no Brasil), Foto: Adriano Machado/Reuters

Por Jan Pehrke para o “JungeWelt”

Na terça-feira, o Grupo Bayer apresentou o seu balanço financeiro do primeiro trimestre de 2024. As vendas caíram 0,6%, para 13,7bilhões de euros, e os lucros caíram de 2,17 bilhõess de euros para apenas dois bilhões de euros. O CEO Bill Anderson viu isso como uma prova de sucesso. “Só em março abordei a necessidade de ação em quatro áreas. Dois meses depois fizemos progressos em todos os lados”, explicou o norte-americano. Ele havia implementado um programa de destruição de empregos na Bayer, “o novo modelo organizacional Dynamic Shared Ownership (DSO)”, e orgulhosamente apresentou números concretos pela primeira vez. “Só no primeiro trimestre cortamos 1.500 empregos, cerca de dois terços deles em níveis gerenciais”, disse o presidente da Bayer.

O declínio nas vendas se deve em grande parte aos preços mais baixos do glifosato. O lucro foi afetado principalmente pelo aumento das taxas de juro – as dívidas da empresa ascendem a 37,5 mil milhões de euros – e “em particular pelos efeitos da hiperinflação” na Argentina”. Como houve menos pagamentos de responsabilidade de produto por danos causados ​​pelos produtos químicos “Glifosato”, “PCB”, “Dicamba” e “Essure” no primeiro trimestre de 2024,  a corporação global tem novamente mais dinheiro.

De acordo com o relatório trimestral, a Bayer ainda enfrenta 57 mil ações judiciais movidas por vítimas do glifosato. No entanto, introduziu medidas para minimizar os encargos financeiros. A Bayer nomeou Lori Schechter, uma advogada, para o conselho de supervisão que limitou com sucesso os danos da crise dos opiáceos para a empresa farmacêutica McKesson. Além disso, de acordo com relatos da mídia, a multinacional sediada em Leverkusen está examinando a proposta do novo colega do conselho de supervisão de Schechter, Jeffrey Ubben, para evitar elevados custos legais através do pedido de falência parcial no estado do Texas. A legislação societária permite tal operação; nos círculos corporativos, ela é conhecida como “Texas Two-Step”.

Como se não bastasse, o gigante agrícola também desenvolve atividades legislativas.  A Bayer quer introduzir uma lei nos EUA que tornaria a classificação do glifosato como não cancerígeno pela agência ambiental estatal EPA vinculativa para os tribunais de cada estado e, desta forma, evitar futuras decisões contra ele. A Anderson & Co. já conseguiu conquistar mais de 80 associações agrícolas como organizações preliminares. “Queremos que os legisladores ouçam a voz dos agricultores americanos”, observou hipocritamente o CEO no seu discurso de terça-feira. Trata-se de “que a agricultura dos EUA é regulada por leis baseadas na ciência – e não pela indústria dos processos judiciais”.

O trabalho na Lex Bayer consumiu a maior parte do orçamento de lobby de US$ 7,35 milhões para os EUA em 2023, como disse o CFO Wolfgang Nickl à Coordenação Contra os Perigos da Bayer em 26 de abril, na assembleia geral anual da empresa. Nickl não teve problemas com tais investimentos. “A legislação e a política moldam as condições estruturais do nosso negócio. Como empresa global, temos a responsabilidade perante a sociedade como um todo de disponibilizar ativamente as nossas competências e conhecimentos e de apoiar os processos de tomada de decisão política com os nossos especialistas”, afirmou.


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Fonte: JungeWelt

Como identificar cinco das maiores táticas de desinformação da indústria de combustíveis fósseis

mosaico‘Basicamente é uma campanha de propaganda.’ Composição: Getty Images, Guardian Design

Por Amy Westervelt e Kyle Pope para o “The Guardian” 

A desinformação cada vez mais sofisticada e mais bem financiada está a tornar a cobertura climática mais difícil tanto para os jornalistas produzirem como para o público compreender e confiar plenamente.

Mas contar a história, e compreendê-la, nunca foi tão urgente, com metade da população da Terra elegível para votar em eleições que poderão ter um impacto decisivo na capacidade do mundo de agir a tempo de evitar o pior da crise climática.

Influenciados durante 30 anos pela propaganda da indústria dos combustíveis fósseis, os meios de comunicação têm tanta probabilidade de amplificar inadvertidamente as falsidades como de as reprimir. Só nos últimos anos é que mais jornalistas começaram a evitar “ambos os lados” da crise climática – décadas depois de os cientistas terem alcançado um consenso esmagador sobre a dimensão do problema e as suas causas.

A boa notícia é que, embora as táticas de relações públicas da indústria dos combustíveis fósseis tenham mudado, as histórias que contam não mudam muito de ano para ano, apenas são adaptadas dependendo do que está acontecendo no mundo.

Quando os políticos falam sobre quanto custará agir sobre as alterações climáticas, por exemplo, quase sempre se referem a modelos econômicos encomendados pela indústria dos combustíveis fósseis, que deixam de fora o custo da inacção, que aumenta a cada ano que passa. Quando os políticos dizem que as políticas climáticas aumentarão o custo do gás ou da energia, contam com o facto de os repórteres não terem ideia de como funciona o preço do gás ou da energia, ou até que ponto as decisões de produção das empresas de combustíveis fósseis, para não mencionar o lobby a favor de subsídios específicos aos combustíveis fósseis ou contra políticas que apoiam as energias renováveis ​​têm impacto nesses preços.


1 Seguranca energetica

Desde alimentar guerras até preservar a segurança nacional, a indústria dos combustíveis fósseis adora alardear o seu papel em manter o mundo seguro, mesmo quando se envolve em atitudes geopolíticas que fazem com que todos se sintam decididamente menos seguros. No contexto da segurança nacional, vale a pena notar que os militares dos EUA começaram a financiar programas de emissões líquidas zero em 2012 e a listar as alterações climáticas como um multiplicador de ameaças na sua Revisão Quadrienal da Defesa, há uma década. Mas as empresas petrolíferas e os seus grupos comerciais ignoram essa realidade e, em vez disso, insistem que a ameaça reside na redução da dependência dos combustíveis fósseis.

Uma chama de gás em uma refinaria de petróleo

Uma queima de gás em uma refinaria de petróleo em Catlettsburg, Kentucky, em 28 de julho de 2020. Fotografia: Luke Sharrett/Bloomberg via Getty Images

Vimos isto recentemente nas mensagens da indústria em torno da guerra Rússia-Ucrânia, quando esta se mobilizou mesmo antes de Putin para promover a ideia de que um boom global de gás natural liquefeito (GNL) seria uma solução para a escassez de energia a curto prazo na Europa. A indústria tem estado visivelmente quieta em relação à guerra Israel-Palestina, mas está a promover mensagens gerais de “ nós te mantemos seguro” que enfatizam a instabilidade global. Nos EUA, as narrativas de segurança energética têm muitas vezes conotações nacionalistas, com mensagens que promovem os benefícios ambientais e de segurança globais dos combustíveis fósseis dos EUA em detrimento dos de países como o Qatar ou a Rússia.

É verdade que a auto-suficiência energética contribui para a estabilidade de qualquer nação, mas não existe nenhuma regra que diga que a energia tem de provir de hidrocarbonetos. Na verdade, está bem documentado que depender de uma fonte de energia vulnerável aos caprichos dos mercados mundiais de matérias-primas e aos conflitos globais é uma receita para a volatilidade.


A economia versus o meio ambiente

Em 1944, quando parecia que a Segunda Guerra Mundial terminaria em breve, o guru de relações públicas Earl Newsom reuniu seus clientes corporativos – incluindo a Standard Oil of New Jersey (hoje ExxonMobil), Ford, GM e Procter & Gamble – e elaborou uma postagem ultrassecreta estratégia de guerra para manter o público dos EUA convencido do “valor do sistema de livre iniciativa”.

Dos currículos escolares às curtas de animação criadas por Hollywood, às apresentações da indústria e às entrevistas aos meios de comunicação social, a indústria dos combustíveis fósseis tem insistido repetidamente nestes temas durante décadas. E, num movimento clássico, os porta-vozes da indústria apontam para estudos que grupos industriais, como o American Petroleum Institute, encomendam como prova de que cuidar do ambiente é mau para a economia.

uma refinaria de petróleo
Uma refinaria de petróleo em Carson, Califórnia, em 22 de abril de 2020. Fotografia: David McNew/Getty Images

Estas tácticas também aparecem em anúncios que nos lembram de equilibrar o desejo de redução de emissões com a necessidade de manter a economia a funcionar.Um anúncio da BP publicado recentemente nos podcasts da NPR, do New York Times e do Washington Post afirma que o petróleo e o gás equivalem a empregos e defende a adição de energias renováveis, em vez da substituição dos combustíveis fósseis.


3 ‘Nós fazemos sua vida funcionar’

A indústria dos combustíveis fósseis adora argumentar que faz o mundo funcionar – desde manter as luzes acesas até nos manter fascinados por smartphones e TV, e vestidos com moda rápida. É genial: criar um produto, criar procura para o produto e depois transferir a culpa para os consumidores, não apenas pela compra, mas também pelos impactos associados.

Equipes de limpeza ambiental limpam mandris de petróleo
Equipes de limpeza ambiental limpam depósitos de óleo na praia de um grande derramamento de óleo em Huntington Beach, Califórnia, em 5 de outubro de 2021. Fotografia: Allen J Schaben/Los Angeles Times/Getty Images

“Basicamente é uma campanha de propaganda”, disse o sociólogo ambiental da Universidade Brown, Robert Brulle. “E não é preciso usar as palavras ‘mudanças climáticas’. O que eles estão fazendo é semear no inconsciente coletivo a ideia de que combustíveis fósseis significam progresso e vida boa.”


4 ‘Somos parte da solução’

Nada afasta mais a regulamentação do que as promessas de soluções voluntárias que fazem parecer que a indústria dos combustíveis fósseis está realmente a tentar. Numa denúncia de 2020, a redação investigativa do Greenpeace, Unearthed, capturou um lobista da Exxon diante das câmeras explicando que essa tática funcionou com um imposto sobre carbono para evitar regulamentações de emissões e como a empresa estava seguindo a mesma estratégia com o plástico. Trabalhando com o Conselho Americano de Química para implementar medidas voluntárias como a “reciclagem avançada”, o lobista Keith McCoy disse que o objetivo era “estar à frente da intervenção governamental ”.

Tal como acontece com as alterações climáticas, explicou McCoy, se a indústria conseguir fazer parecer que está a trabalhar em soluções, poderá manter afastadas as proibições definitivas de plásticos descartáveis. Hoje, esta narrativa aparece no impulso da indústria para a captura de carbono, biocombustíveis e soluções de hidrogénio à base de metano, como o hidrogénio azul, roxo e turquesa. Vemos isso também na adopção pela indústria do termo “baixo carbono” para descrever não só soluções que permitem combustíveis fósseis, como a captura de carbono, mas também “gás natural”, que os lobistas da indústria estão a vender com sucesso aos políticos como uma solução climática.


5 ‘O maior vizinho do mundo’

Caso as pessoas ainda não aceitem o ar sujo, a água suja e as alterações climáticas, a indústria dos combustíveis fósseis financia museus, desportos, aquários e escolas, servindo o duplo propósito de limpar a sua imagem e fazer com que as comunidades se sintam dependentes da indústria. e, portanto, menos propensos a criticá-lo.

Tanto os jornalistas como o seu público têm mais poder para combater a desinformação climática do que poderiam sentir quando estão inundados por ela. Compreender as narrativas clássicas da indústria é um bom ponto de partida.

Desmascarar alegações falsas é o próximo passo crítico.

  • Amy Westervelt é uma premiada jornalista investigativa sobre clima, fundadora da Critical Frequency e editora executiva da Drilled Media

  • Kyle Pope é diretor executivo de iniciativas estratégicas e cofundador da Covering Climate Now, e ex-editor e editor da Columbia Journalism Review


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Fonte: The Guardian

Triunfa a sabotagem do “lobby” dos agrotóxicos contra a redução do uso de venenos agrícolas na União Europeia

O Parlamento Europeu, com o voto do Partido Popular, rejeitou a proposta de redução do uso de agrotóxicos na União Europeia (UE). O motivo: a grande pressão que o lobby dos agrotóxicos tem feito para minar os esforços para reduzir o uso de venenos agrícolas

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Agur, redução de agrotóxicos

Nem objetivos não vinculativos, nem redução dos objetivos de redução do uso de agrotóxicos. O Parlamento Europeu rejeitou toda a proposta da Comissão Europeia sobre o regulamento da UE para a redução de agrotóxicos. No final, não “diluíram” o Regulamento de Utilização Sustentável: mataram-no.

E isto depois de ter sido aprovado na votação da Comissão do Meio Ambiente e da Agricultura nas últimas semanas.

A pressão orquestrada de todo o lobby dos agrotóxicos tem funcionado muito bem.

Sabotagem do lobby dos agrotóxicos para redução de agrotóxicos

Um novo estudo da organização Corporate Europe traz à luz centenas de documentos que mostram como o lobby da indústria de pesticidas sabotou repetidamente a redução de pesticidas na União Europeia, sabotando o desenvolvimento do regulamento para o uso sustentável de pesticidas, que estabelece metas vinculativas de redução.

Como o lobby dos agrotóxicos conseguiu atrair representantes políticos para o seu movimento?

Passo 1 (um clássico): atrasar os estudos de impacto

O lobby iniciou sua campanha com um clássico: atrasar todo o processo de desenvolvimento da norma solicitando estudos de impacto , em prol da “segurança alimentar”. Para dar força aos seus argumentos, usaram também a crise da Covid e a guerra na Ucrânia.

Em 2021 e 2022, o Observatório Empresarial Europeu publicou documentos internos que vazaram, mostrando como o lobby agrícola Copa-Cogeca e a CropLife Europe coordenaram estudos de impacto tendenciosos financiados pela indústria agrícola.

Por exemplo, um dos estudos, preparado pela Wageningen Economic Research, concluiu que o regulamento de redução de pesticidas “ provavelmente levaria a rendimentos mais baixos ”. No entanto, o próprio autor do estudo, Johan Bremmer, admitiu que a estratégia do prado ao prato “visa obter benefícios em termos de clima e biodiversidade” e que “estes benefícios não fazem parte do âmbito deste estudo”. Ao ocultar as limitações de seus estudos, o lobby dos agrotóxicos enganou os representantes políticos. Além disso, nenhum dos estudos levou em consideração o valor dos benefícios ambientais relacionados às metas do prado ao prato.

Passo 2: enfraquecer ou “diluir” a regulamentação

Os pontos-chave dos ataques do lobby foram evitar metas ambiciosas e obrigatórias de redução de agrotóxicos; evitar a proibição da utilização de  agrotóxicos em zonas sensíveis; trazer de volta ao debate a obrigatoriedade do Manejo Integrado de Pragas (que já é obrigatório desde 2014); e apoio financeiro aos agricultores na transição para uma produção com baixo teor de agrotóxicos.

Uma forma comum de pressão são as numerosas e pouco transparentes reuniões de lobby com representantes da UE (apenas 5 dos 27 estados forneceram informações à Europa Corporativa a este respeito). Outro exemplo clássico do funcionamento do lobby dos agrotóxicos: após a publicação da proposta da Comissão, a indústria e a Copa-Cogeca se reuniram. Após esta reunião, 60 integrantes da Copa-Cogeca enviaram perguntas à área de Saúde da Comissão. Na semana seguinte, a indústria organizou um “café da manhã SUR” com a Comissão, nos escritórios da empresa de lobby Rud Pedersen. Esta reunião contou com a participação da Syngenta, Corteva e Bayer, da Organização Europeia de Proprietários de Terras, da Pepsi e da Novozymes.

Evitar a redução de agrotóxicos na agricultura europeia

Como o núcleo do regulamento proposto para a utilização sustentável de agrotóxicos são metas vinculativas de redução, estas metas são o foco do seu lobby.

Existem dois objetivos: o primeiro é reduzir a utilização e o risco de agrotóxicos em 50% até 2030. O segundo é reduzir a utilização dos pesticidas mais perigosos, também em 50% até 2030 (aumentado para 65% pela ENVI Comissão do Parlamento Europeu) .

A Presidência espanhola da UE ouviu a indústria e, em setembro de 2023, perguntou aos Estados-Membros se as metas de redução deveriam permanecer juridicamente vinculativas a nível nacional e da UE. Onze estados (Bulgária, República Checa, Estónia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Malta, Polônia, Roménia e Eslováquia) exigiram que as metas nacionais vinculativas fossem eliminadas.

A indústria também conseguiu manter uma metodologia para medir a redução real de agrotóxicos que é tão falha que pode resultar numa redução quando na verdade não houve nenhuma.

Outro sucesso, desta vez graças à Comissão de Agricultura do PE, chefiada por Clara Aguilera, do grupo S&D, foi bloquear a utilização de fundos públicos da PAC para apoiar os agricultores na redução de agrotóxicos em suas lavouras. 

Os números do lobby

Os agrotóxicos são um negócio lucrativo. Especificamente, 12 mil milhões de euros por ano na UE. Este mercado está concentrado nas mãos de quatro grandes produtores (Bayer, BASF, Syngenta e Corteva) que investem em agrotóxicos e também em relações públicas e lobby .

Este grupo central de intervenientes empresariais que fazem lobby contra a lei de redução de agrotóxicos reportou coletivamente uma despesa total de lobby de 15 milhões de euros .

Estes números, declarados pela própria indústria, estão muito subestimados. Por exemplo, um único contrato entre a consultora FleishmanHillard e a Monsanto valia 14,5 milhões de euros .

Além disso, não inclui despesas de associações como a CropLife Europe  e  a Euroseeds , que contratam empresas de consultoria e escritórios de advogados para atividades de lobby especializadas.

E claro, não podemos esquecer o lobby agrícola da Copa-Cogeca , que declara um gasto anual em lobby de 1,5 milhões de euros . (Aliás, uma investigação do Lighthouse Reports  revelou como a Copa-Cogeca exagera o número de agricultores que realmente representa e como promove os interesses das explorações agrícolas industriais em detrimento dos interesses das pequenas empresas e dos jovens agricultores.

No total, se somarmos os valores de gastos com lobby reportados para o conjunto de organizações durante os três anos em que o SUR foi debatido (2020, 2021, 2022), eles tiveram um valor total declarado de gastos com lobby de 40,4 milhões de euros.

Se for considerado que os níveis de despesas em 2023 provavelmente estarão no mesmo nível, as despesas autodeclaradas por estes intervenientes para os quatro anos-chave do desenvolvimento do SUR (2020-2023) certamente excederão os 50 milhões de euros .

Muitos mais exemplos de lobby no relatório Corporate Europe “ Sabotage of the EU Pesticide Reduction Law (SUR) ”.


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Este texto escrito originalmente em espanhol foi publicado pelo “libresdecontaminanteshormonales.org” [Aqui!].

Revelado: Os consultores pecuários por trás da Declaração de Dublin

O documento, que descreve os esforços para reduzir o consumo de carne como “fanatismo”, está a ser usado para reagir contra o acordo verde da UE e para vencer o plano contra o câncer

Pig Farmers Fear Losses As Slaughterhouses Remain Closed Following Covid-19 Outbreaks

Leitões em uma baia em uma fazenda de suínos perto de Kempen, Alemanha. Foto: Lukas Schulze, Getty Images 

Por Zach Boren para a “Unearthed”

Os principais grupos do agronegócio europeu estão a utilizar um manifesto pró-carne chamado Declaração de Dublin para pressionar altos funcionários da UE contra recomendações para a redução do consumo de carne na estratégia do bloco contra o câncer e nas políticas de sustentabilidade. 

Mas o documento, que se apresenta como uma “declaração de cientistas”, foi escrito por pessoas com “ligações estreitas” à indústria pecuária, revelam documentos obtidos pela Unearthed .

A Declaração de Dublin dos Cientistas sobre o Papel Social da Pecuária , lançada na agência agrícola do governo irlandês Teagasc em Outubro do ano passado , é um pequeno documento que defende os benefícios nutricionais, ambientais e sociais do consumo de carne.  

Diz que o gado é “demasiado precioso para a sociedade para se tornar vítima de simplificação, reducionismo ou fanatismo”. 

Foi assinado por mais de 1.000 cientistas e foi coberto por jornais, incluindo o Telegraph e o New York Post, que intitulavam o seu artigo: “Cientistas atacam os ‘fanáticos’ que promovem dietas à base de plantas ”.

Mas centenas de páginas de e-mails, atas de reuniões e outros documentos obtidos através de pedidos de liberdade de informação revelam que a Declaração foi escrita, divulgada e promovida por consultores do agronegócio, e tem sido utilizada por grupos comerciais e lobistas para se oporem às políticas verdes na Europa.

O consumo de carne e o papel do gado na condução das alterações climáticas são objeto de debates acirrados. Nos últimos anos, assistimos a um crescente conjunto de evidências sobre as emissões de gases com efeito de estufa provenientes da pecuária, com instituições eminentes, incluindo o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, a destacar os benefícios ambientais de uma mudança para dietas mais baseadas em vegetais .

“Não queremos dizer às pessoas o que comer”, disse o co-presidente do grupo de trabalho de adaptação do IPCC, Professor Hans-Otto Pörtner, em 2019 .

“Mas seria de fato benéfico, tanto para o clima como para a saúde humana, se as pessoas em muitos países ricos consumissem menos carne e se a política criasse incentivos apropriados para esse efeito.”

Estimulada por estas conclusões, a UE tem estado a considerar um conjunto de leis destinadas a reduzir o consumo de carne como parte do seu pacote do Acordo Verde. Mas estas medidas estão encontrando forte resistência e grupos financiados pela indústria da carne têm utilizado a Declaração para fazer lobby junto dos políticos da UE.

No Congresso Mundial da Carne, realizado na Holanda no início deste mês, um dos autores da Declaração de Dublin, o Professor Peer Ederer, disse a uma audiência de líderes da indústria pecuária para usar “agressivamente” “instrumentos científicos” como aqueles associados à Declaração de Dublin para fazer lobby junto aos formuladores de políticas.

Ele disse: “Penso que o setor privado precisa de levantar a sua voz junto dos políticos e dos decisores políticos mais directamente nos seus respectivos círculos eleitorais nacionais”.

O professor Erik Mathijs, que presidiu o grupo de trabalho científico da Comissão Europeia sobre sistemas alimentares sustentáveis, disse ao Unearthed : “Além de um golpe no ‘fanatismo’ anti-carne, o que está na Declaração de Dublin é na verdade bastante incontroverso… Pode-se e deve-se reconhecer as boas qualidades de produtos alimentares de origem animal, incluindo o seu valor social, histórico e cultural. 

“Esse reconhecimento, no entanto, não contradiz o imperativo científico de que o mundo – especialmente aqueles nas economias desenvolvidas como a UE – deve reduzir o seu consumo e produção destes alimentos intensivos em carbono que estão a impulsionar mudanças no uso da terra e representam alguns riscos para a saúde.” 

Ele acrescentou: “É importante enfatizar que menos carne não significa nenhuma carne”. 

O Dr. Matthew Hayek, professor assistente de estudos ambientais na Universidade de Nova Iorque, disse ao Unearthed : “A Declaração é um esforço extremamente enganador. É de autoria de cientistas financiados pela indústria, [e] promove confusão e dúvida quando não deveria haver nenhuma.”

O comitê organizador da Declaração de Dublin disse ao Unearthed em um comunicado: “Negamos categoricamente que as múltiplas relações com organizações privadas ou públicas que mantemos estejam afetando a objetividade de nossa pesquisa científica e as evidências científicas que criamos”

O consultor do agronegócio

A Declaração de Dublin foi lançada na sequência de uma conferência realizada pela agência agrícola irlandesa Teagasc em  , que contou com apresentações para uma audiência de quase 200 pessoas pelos seus principais autores — incluindo Peer Ederer, um economista que dirige uma consultoria para o sector alimentar e do agronegócio. 

Ederer, que é descrito por um membro do comité organizador num e-mail como o “autor principal” da Declaração, é um antigo consultor da McKinsey que trabalha em estreita colaboração com o agronegócio e cujos clientes incluem o McDonalds, o produtor de carne norte-americano Smithfield e o gigante da soja Bunge. Ederer disse ao Unearthed que a Declaração não tem autor principal e que o restante do comitê organizador de seis pessoas são “cocriadores iguais”. 

Em 2020, Ederer deu uma palestra à Global Warming Policy Foundation, o principal grupo de negação da ciência climática do Reino Unido, intitulada ‘Porque é que as vacas não são responsáveis ​​pelas alterações climáticas provocadas pelo homem’. Ele disse ao grupo que embora não seja cientista, é “treinado para ler artigos científicos”.

Ederer disse ao Unearthed que a sua investigação sugere que “precisaremos de aumentar a produção global de carne para fornecer nutrição suficiente a 10 mil milhões de pessoas e sem arruinar o planeta no processo”. No Twitter, ele descreveu o veganismo como um “distúrbio alimentar que requer tratamento psicológico”.

O conteúdo da Declaração dos Cientistas de Dublin é muito menos incendiário do que as declarações pessoais de Ederer. Apela a um debate equilibrado sobre a pecuária, baseado na ciência e reconhecendo os benefícios nutricionais e ambientais, bem como o significado cultural, da carne e dos lacticínios. Isto é o que 1.166 cientistas endossaram.

O “ADN original” da Declaração de Dublin, escreveu ele a um grupo de autores colaboradores antes do lançamento do ano passado, remonta a um documento de posição de duas páginas de uma cimeira alimentar da ONU em 2021. Lá, ele representou a Organização Mundial de Agricultores, um grupo com sede em Roma que representa entidades comerciais agrícolas em todo o mundo, e atuou como “ponto focal” para negociações no grupo que buscavam a produção pecuária sustentável. Ele disse ao Unearthed que não foi pago para representar a Organização Mundial de Agricultores.

A Declaração deve quase 200 das suas 700 palavras a um documento produzido para a cimeira, escrito por uma coligação de grupos, incluindo associações da indústria pecuária, como o Secretariado Internacional da Carne e delegados dos países produtores de carne, Brasil e Argentina, que apelavam ao aumento da produção de carne. . Ederer disse ao Unearthed que o envolvimento da indústria pecuária na criação do jornal foi “completamente insignificante”. 

Mas a Declaração de Dublin não deixa clara esta ligação à indústria. Ederer escreveu em e-mails para seus coautores: “Até agora sempre a chamamos de Declaração dos Cientistas de Dublin porque queríamos destacar que é a voz de um cientista”.

A justificação para a Declaração, explicou ele, era “contrariar uma tendência entre um pequeno mas expressivo grupo de cientistas que acreditam que o gado deve ser drasticamente reduzido tanto na presença como na nutrição, e que fingem estar a falar em nome de todos os cientistas. ”

“A Declaração de Dublin é outro exemplo em que a indústria pecuária retirou uma página do manual dos combustíveis fósseis para lutar contra as alterações climáticas”, disse a professora Jennifer Jacquet, da Universidade de Miami.

Ela acrescentou: “Semelhante à Petição de Oregon na década de 1990 e à mais recente ‘Declaração Climática Mundial’ CLINTEL para desafiar o consenso científico sobre as alterações climáticas provocadas pelo homem, a Declaração de Dublin tenta alavancar a profissão académica e as suas instituições para minimizar o papel da pecuária nas mudanças climáticas.”

‘Laços estreitos’ com a indústria

Outros membros do comité organizador da Declaração também têm “laços estreitos” com a indústria, escreveu um membro do comitê em memorandos internos. 

Declan Troy, diretor assistente de pesquisa da Teagasc, a agência agrícola irlandesa que acolheu o lançamento do projeto, compilou uma lista de possíveis ligações que o comité organizador tinha com a indústria pecuária, em resposta às críticas da política irlandesa Neasa Hourigan.

Ele listou o Dr. Collette Kaster, executivo-chefe da American Meat Science Association (AMSA), que é financiada por grandes produtores de carne como Cargill, Smithfield e Tyson , como tendo “laços estreitos”. Ele também incluiu o Dr. Mohammad Koohmairaie, chefe da divisão de carnes da empresa de pesquisa de alimentos IEH Laboratories, que tem clientes de “várias empresas, incluindo as do setor de carnes”. 

Troy escreveu que Ederer tem “possível financiamento para pesquisa/consultoria da indústria”, enquanto seu colega autor, Professor Frédéric Leroy, recebe “possível financiamento para pesquisa da indústria”.

Leroy é acadêmico de ciências alimentares na Vrije Universiteit Bruxelas, presidente da Associação Belga de Ciência e Tecnologia da Carne e presença regular no circuito de conferências da indústria da carne . Ele também é autor do Aleph 2020, uma iniciativa liderada por acadêmicos de apoio à produção de carne. 

O comité organizador da Declaração também inclui o Dr. Rod Polkinghorne, um autodenominado “pioneiro da indústria australiana de confinamento” que trabalha com intervenientes da indústria da carne – como a Australian Meat Processor Corporation e a Meat & Livestock Australia – através da sua consultora, Birkenwood International 

Numa entrevista ao Unearthed no World Meat Congress, Ederer reconheceu que tem “clientes comerciais” no setor pecuário, mas insistiu que nenhuma empresa lhe disse ou aos membros do comitê organizador para lançar a iniciativa, ou pagou pelo seu trabalho nela. “ Estamos muito, muito atentos à nossa independência intelectual”, acrescentou.

Quando questionado sobre se os seus clientes da indústria da carne representam um potencial conflito de interesses, Ederer argumentou que “tudo é um possível conflito de interesses” e que “não existe investigação ‘livre de conflitos de interesses’”. 

Falando em nome do comitê organizador, Ederer disse ao Unearthed : “Cada um de nós está inflexível em não ultrapassar os limites para nos tornarmos lobistas por qualquer causa específica. Nosso objetivo como cientistas é fornecer evidências científicas ao processo de formulação de políticas e à sociedade em geral.”

Depois que Ederer foi contatado pela Unearthed e pelo Guardian , o site da Declaração de Dublin adicionou uma página divulgando os interesses comerciais dos membros do comitê organizador. Ele disse: “Suas perguntas nos alertaram para o fato de que a autoria da Declaração de Dublin não estava claramente explicitada no site e que não havíamos informado sobre nossos potenciais conflitos de interesse, como seria comum na prática científica”.

Frontiers Animals (2023)

Fronteiras animais

Em abril, a Declaração de Dublin foi a peça central de uma edição da revista Animal Frontiers , com revisão por pares , intitulada The Societal Role of Meat. Isto incluiu artigos de Ederer e de alguns dos coautores e signatários da Declaração sobre tópicos que incluem o valor nutricional da carne, a ética do consumo de carne e a acessibilidade da carne no Sul Global. 

Uma carta dos autores da Declaração também apareceu na prestigiada revista Nature Food Numa resposta publicada à carta , um grupo de dezesseis cientistas da Suécia, Finlândia e Reino Unido queixou-se de que esta “contém generalizações e declarações infundadas que vão além do foco da Declaração, particularmente no que diz respeito à expansão da produção pecuária”.

A edição Animal Frontiers é descrita por Ederer como a base científica da Declaração de Dublin. No Congresso Mundial da Carne, Ederer listou os documentos da Animal Frontiers juntamente com a Declaração de Dublin como “instrumentos científicos” a serem utilizados na defesa de políticas pró-pecuária.

O professor Peter Smith, cientista climático da Universidade de Aberdeen e principal autor do IPCC, disse: “A Declaração de Dublin parece mais propaganda da indústria pecuária do que ciência, por isso não estou surpreso com as descobertas deste artigo e da revista. em que foi publicado, estão promovendo interesses adquiridos.” 

Ele acrescentou: “Não há lugar na ciência para revistas que promovam os interesses das indústrias que as financiam. Isso zomba da publicação científica independente e objetiva…. Não se trata de sufocar o debate – trata-se de proteger a integridade científica”.

Matthew Hayek, da Universidade de Nova Iorque, disse ao Unearthed : “O consenso científico é que precisamos de uma rápida redução da carne nas regiões que podem permitir essa escolha. O consenso pode e deve sempre ser desafiado, mas isso requer evidências fortes, novas e grandes quantidades de evidências de alta qualidade. A questão Animal Frontiers não consegue isso.” 

Ele criticou muitos dos artigos da revista. “Dentro deles, a autocitação é comum”, disse ele, “criando um jogo telefônico distorcido com longas e instáveis ​​caminhadas de volta a qualquer evidência primária real que justifique suas alegações de que o alto consumo de carne é sustentável”. 

O conselho de administração da Animal Frontiers disse à Unearthed : “A Animal Frontiers publica discussões e documentos de posição que apresentam várias perspectivas internacionais sobre a situação de questões globais de alto impacto na pecuária. A Animal Frontiers é financiada pelas sociedades científicas.”

“Visando a bolha de Bruxelas” 

O lançamento da Declaração em Dublin foi organizado pela agência agrícola irlandesa Teagasc. A agência, que recebe 75% do seu financiamento dos governos irlandês e da UE , ajudou a pagar o evento, contribuindo com 39.000 euros do custo de 45.000 euros do evento, principalmente sob a forma de viagens, alojamento e apoio aos oradores, mostram os documentos. 

Um evento de networking na conferência foi patrocinado por dois grupos da indústria: The American Meat Science Association (AMSA) e o North American Meat Institute (NAMI).

A professora Hannah Daly, da University College Cork, disse ao Unearthed : “A Teagasc está a emprestar o seu financiamento e credibilidade a uma campanha que está a minar os esforços para combater as alterações climáticas. A Irlanda tem o segundo maior nível de emissões per capita da Europa, impulsionado em grande parte pelo nosso modelo agrícola orientado para a exportação, baseado na carne bovina e nos produtos lácteos.” 

Um porta-voz da Teagasc disse: “A Teagasc acolhe rotineiramente conferências científicas internacionais para reunir a ciência mais recente disponível sobre um determinado tópico e para facilitar a discussão em torno da ciência foi deixado aos cientistas individuais decidir se queriam assiná-la ou não. ”

Os organizadores da Declaração inicialmente concentraram-se estreitamente em influenciar os políticos europeus. Mairead McGuiness, a comissária de serviços financeiros da UE, discursou no evento de Dublin, enquanto Janusz Wojciechowski, comissário da agricultura da UE, endossou a Declaração no Twitter como uma “contribuição muito valiosa”. 

Ederer escreveu posteriormente aos seus colegas que o apoio dos políticos é vital para o sucesso do projecto: “Precisamos de políticos de alto escalão nestes eventos de lançamento. O que deu início à cobertura na Irlanda não foi o brilhantismo da nossa ciência, mas o facto de termos lá um ministro e um comissário.”

Para um evento em Bruxelas em Abril, programado para coincidir com a edição Animal Frontiers, Leroy enviou um e-mail: “estamos visando especificamente a bolha da UE em Bruxelas”, e o comité organizador discutiu o convite a altos funcionários das direcções agrícola, climática, ambiental e de saúde. Um membro da equipe de Wojciechowski compareceu .

O evento de Bruxelas foi organizado conjuntamente pela Associação Belga de Ciência e Tecnologia da Carne, cujo presidente é o coautor da declaração, Frederic Leroy, e pela Animal Task Force (ATF). Este grupo tem parceria com grandes grupos comerciais europeus do agronegócio, incluindo a Copa Cogeca, o grupo de processadores de carne Clitravi, o Sindicato Europeu da Pecuária e da Carne e a associação avícola AVEC, juntamente com universidades e organismos de investigação. 

O vice-presidente da força-tarefa elogiou Leroy por envolvê-lo, observando que isso daria credibilidade à declaração junto aos formuladores de políticas como uma “iniciativa científica”, acrescentando: “mesmo que o ATF seja também o setor privado ;)”.

O vice-presidente da ATF disse ao Unearthed : “Embora não seja o autor, a ATF apoiou a divulgação da Declaração dos Cientistas de Dublin em Bruxelas, como já fez no passado com outros documentos científicos. A ATF não esteve envolvida em nenhuma outra edição da revista científica Animal Frontiers.”

Unearthed fez repetidos esforços para entrar em contato com Leroy.

Vencendo o câncer

A Declaração tem sido utilizada por grupos do agronegócio para fazer lobby junto de políticos seniores da UE, especialmente Wojciechowski, o comissário da agricultura.

Em Novembro de 2022, os principais grupos agro-alimentares da UE escreveram a Wojciechowski utilizando a Declaração de Dublin para argumentar contra um plano para acabar com o financiamento público para a promoção de carnes vermelhas e processadas. O bloco gastou 252 milhões de euros (220 milhões de libras) ao longo de cinco anos publicitando carne e produtos lácteos, incluindo 3,6 milhões de euros (3,1 milhões de libras) numa campanha que insta o público a Tornar-se um Beefatarian em 2020.  

A proposta de parar de financiar a publicidade à carne vermelha e processada faz parte do Plano de Luta contra o Câncer , um compromisso político para «virar a maré» do câncer, incluindo medidas preventivas, como a mudança para dietas mais baseadas em vegetais. 

As associações comerciais chamaram a atenção do comissário para a Declaração de Dublin, escrevendo: “Esta declaração mostra claramente como é importante ouvir toda a comunidade científica e que as orientações políticas não podem basear-se num único estudo como é o Plano Europeu de Luta contra o Cancro”.

Kurt Straif, que dirigia o órgão de pesquisa do câncer da Organização Mundial da Saúde, o IARC, quando conduziu uma grande avaliação sobre o assunto, disse ao Unearthed que sua equipe concluiu “com confiança” que a carne processada é cancerígena e a carne vermelha é “provavelmente cancerígena”. . 

Ele disse: “Os esforços para obscurecer ou minimizar o risco de cancro dos produtos à base de carne podem ter um efeito deletério na consciência do público sobre tais riscos e podem até prejudicar a saúde pública”.

A associação europeia de processadores de carne, Clitravi, disse ao Unearthed que “não fazia parte do processo e nem financiou, trabalhou ou assinou a própria Declaração”. O vice-secretário do grupo disse que “considera a Declaração como a voz de muitos cientistas em todo o mundo que estão a trabalhar para garantir um espaço operativo seguro à pecuária sustentável e, em geral, a uma agricultura e produção agroalimentar sustentáveis. É sempre fácil culpar um sector e não propor qualquer solução. Muitos dos cientistas que assinaram a declaração estão trabalhando para propor soluções concretas”.

Uma reunião em Varsóvia

Em Janeiro de 2023, uma delegação da Declaração viajou a Varsóvia para apresentar as suas conclusões num evento organizado pela Associação Polaca de Carne Bovina e com a presença de Wojciechowski, o comissário da agricultura. 

Jerzy Wierzbicki, chefe da Associação Polonesa de Carne Bovina, disse à equipe da Declaração de Dublin que o comissário deveria “buscar o máximo de apoio científico para ajudá-lo a reagir contra o acordo verde anti-carne e vários planos da UE para reduzir o número de rebanhos”, de acordo com a ata da reunião. . 

Ederer disse ao Unearthed : “Conversamos com alguns membros da equipe de gabinete do Comissário no intervalo. Não tivemos interação direta com o próprio Comissário.”

Posteriormente, Ederer escreveu aos seus colegas que os quadros superiores de Wojciechowski lhe disseram que “a Cimeira de Dublin e a Declaração de Dublin foram a primeira peça de ciência utilizável que receberam em todos os seus quatro anos de trabalho na Comissão”. 

Ele continuou: “Eles estão mais do que entusiasmados com a clareza e profundidade das evidências científicas e relevância que reunimos. Irão apoiar-nos em qualquer outro evento que queiramos organizar, especialmente se fizermos algo em Bruxelas. É bom receber esse feedback. Estamos no caminho certo.”

Wierzbicki negou que ele ou a Associação Polaca de Carne Bovina tenham desempenhado qualquer papel na Declaração de Dublin e que “visasse apenas fornecer ao Comissário uma compreensão abrangente da situação”. Ele acrescentou: “Apoio a Declaração porque estou convencido de que ela apresenta estudos científicos objetivos sobre o papel dos animais na agricultura sustentável e o papel da carne bovina numa dieta sustentável e responsável”.

A Unearthed também descobriu que grupos industriais, incluindo a Clitravi, usaram a declaração para fazer lobby junto aos consultores científicos da Comissão Europeia para enfraquecer as recomendações no seu próximo relatório sobre alimentação sustentável. 

Um resumo da reunião publicado pela Comissão informou que os participantes “notaram” que a Declaração não havia sido mencionada na apresentação dos consultores científicos. Em resposta, “Os consultores confirmaram que estão cientes da declaração e que as provas disponíveis foram cuidadosamente analisadas por muitos especialistas em diferentes temas, permitindo ao Parecer fornecer uma visão altamente fiável e equilibrada, em linha com a declaração de Dublin. ”

A lei da UE sobre sistemas alimentares sustentáveis, anteriormente considerada uma iniciativa emblemática da estratégia do prado ao prato, foi abandonada pela Comissão Europeia no início deste mês . 

Olga Kikou, chefe do escritório da UE na Compassion in World Farming, disse ao Unearthed : “A Comissão parece ter dado uma reviravolta na sua prometida reforma da política agrícola da UE.”

As propostas para acabar com a promoção da carne “não foram vistas em parte alguma” no trabalho recente da Comissão, apesar das extensas consultas, disse ela.

Kikou acrescentou: “É claro que é necessária mais transparência nas interações entre os políticos, os seus grupos políticos e os grandes intervenientes industriais, e como as ferramentas de lobby, como a Declaração de Dublin, são utilizadas para justificar a influência de interesses instalados”.

Retirado de um folheto Red Flag (2018)

Bandeira vermelha

Após o lançamento da Declaração, ela foi promovida por agências de relações públicas especializadas em trabalhar com a indústria da carne. A Global Meat Alliance (GMA), uma consultoria anglo-australiana que faz parceria com associações comerciais, incluindo a British Meat Processors Association e a Meat and Livestock Australia, bem como a Pilgrims, de propriedade da JBS, ajudou a impulsionar o projeto online. “O trabalho da Declaração de Dublin continuará” na COP28, escreveu a GMA num briefing recente.

Mas o principal papel promocional foi desempenhado pela agência irlandesa Red Flag, cujos clientes incluem o North American Meat Institute (NAMI). Para a Declaração de Dublin, a Red Flag preparou comunicados de imprensa e desenvolveu estratégias promocionais, mostram os e-mails. 

Ederer confirmou o envolvimento da Red Flag, mas disse que nem a equipa da Declaração de Dublin nem a Teagasc pagaram pelos seus serviços. “É possível que alguém nos bastidores tenha feito isso”, disse ele, “não tenho conhecimento sobre isso”.

A Red Flag tem experiência anterior em rejeitar a ciência que ameaça a indústria da carne: materiais de marketing obtidos pela Unearthed detalham como ela agiu em nome da NAMI e da National Cattlemen’s Beef Association no ataque ao braço de câncer da Organização Mundial da Saúde, IARC, depois de concluir a carne vermelha e processada carne eram «provavelmente cancerígenas».

“A indústria da carne estava enfrentando sua maior ameaça em décadas”, começa um folheto divulgando seu trabalho, “A análise da situação, a campanha e as recomendações estratégicas do Red Flag levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a se afastar da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer ( IARC) alegação de que a carne vermelha representava um sério risco de câncer.”

O CEO da Global Meat Alliance disse à Unearthed que embora a empresa comunique informações relevantes sobre a indústria da carne, incluindo relatórios e apoio à Declaração de Dublin, não é um braço de relações públicas dedicado à Declaração de Dublin.

Unearthed fez repetidos esforços para entrar em contato com a Red Flag.

Vindo para a América

Um ano após o seu lançamento, a Declaração desempenhou um papel de destaque este mês no Congresso Mundial da Carne, realizado em Maastricht, na Holanda. Os líderes da indústria pecuária global foram recebidos por um estande promovendo o projeto ao entrarem na sala de conferências, e a apresentação de Ederer contou com a presença de cerca de 200 delegados.

O seu próximo passo, anunciou, seria levar a Declaração para além da Europa, com uma cimeira ao estilo de Dublin, no Colorado, em Outubro próximo. 

“Não estamos vencendo as principais batalhas como indústria”, disse Ederer ao público, “E se não estivermos vencendo essas batalhas, isso significa que elas voltarão para nos assombrar em termos de restrições de oferta ou influências da demanda”. isso esvaziará os alicerces da nossa indústria.”

A Declaração é, disse ele, um “instrumento científico” que a indústria pode usar para envolver os decisores políticos na batalha contra políticas que ele descreveu como baseadas no “vudu”.

“Envolvam ativamente os vossos membros do parlamento, envolvam activamente os ministérios e utilizem agressivamente os instrumentos científicos que vos estamos a fornecer”, apelou ele à audiência. “Continuem a dizer ‘quais são as provas científicas’ e responsabilizem os decisores políticos por basearem as suas políticas em provas científicas. 

“Continue repetindo ‘evidências científicas’.”


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Este texto escrito originalmente em inglês foi publicado pela Unearthed [Aqui!].

Inimigos do alimento saudável: deputados financiados pelo agro seguram projetos que regulam os ultraprocessados no Brasil

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Por Nayara Felizardo para o “The Intercept Brasil”

Ao menos 20 empresários do agronegócio desembolsaram, juntos, R$ 2,1 milhões para financiar as campanhas de nove parlamentares que agora são membros da Comissão de Saúde na Câmara dos Deputados. O levantamento feito pelo Intercept considerou apenas as doações a partir de R$ 50 mil. A quantia e o número de membros favorecidos, portanto, pode ser ainda maior.

Recriada este ano a partir da separação da Comissão de Seguridade Social e Família, a Comissão de Saúde é responsável por analisar projetos de lei e outras propostas legislativas relacionadas ao tema. Os principais financiadores dos parlamentares que discutem  como alimentação e nutrição, SUS e patentes lucram com venda de açúcar, batata frita, ultraprocessados e até cachaça. Não por acaso, propostas como a maior tributação desses alimentos ou a regulamentação de publicidade do setor têm encontrado resistência para serem aprovadas.

Quem mais deu dinheiro para a campanha de titulares da comissão foi o empresário Robert Carlos Lyra, que atua no ramo sucroalcooleiro em Minas Gerais. Foram R$ 400 mil, divididos igualmente entre o atual presidente da comissão, Zé Vitor, do PL, e o deputado Pinheirinho, do PP.

Em 2009, quando ainda era sócio da Usina Caeté, em Alagoas, Lyra foi denunciado pelo Ministério Público Federal, o MPF. A investigação apontou que a empresa teria cometido 16 crimes ambientais desde 2001 e foi autuada seis vezes pelo Ibama entre 2005 e 2007, mas nunca obedeceu às ordens para interromper o desmatamento e recuperar a área degradada. Ao todo, teriam sido devastados 28 hectares para plantar cana-de-açúcar em área de preservação permanente na Unidade de Conservação Federal Reserva Extrativista, no município de Jequiá da Praia, a 61 quilômetros de Maceió. 

Inicialmente Lyra e os outros réus foram absolvidos, mas o MPF recorreu, de acordo com a assessoria de imprensa do órgão. Em 2021, o processo retornou à primeira instância para análise das provas. O MPF reiterou o pedido de condenação de todos eles e o processo está em andamento.

A usina Caeté faz parte do Grupo Carlos Lyra, que até 2012 incluía também as usinas de Minas Gerais. Depois de uma cisão naquele ano, as usinas de Alagoas continuaram como parte do grupo, e Lyra ficou com as do Sudeste, dando origem a uma nova empresa, a Delta Sucroenergia.

Segundo a revista Forbes, 11 anos após seu surgimento, a Delta figura entre as 100 maiores do agronegócio brasileiro. Com a produção de açúcar para exportação e para o mercado interno, além de etanol e bioenergia, a empresa tem uma receita anual de R$ 2,14 bilhões. Em 2022, a Federação das Indústrias de Minas Gerais elegeu Lyra o industrial do ano.

Além dos deputados Zé Vitor e Pinheirinho, Lyra também ajudou financeiramente a campanha de Jair Bolsonaro em 2022, com uma doação de R$ 300 mil, e de mais sete deputados mineiros que não estão na Comissão de Saúde. O empresário ocupa o 22º lugar no ranking de doadores, com mais de R$ 1,8 milhão desembolsados.

O segundo maior doador para campanhas de deputados que agora ocupam a Comissão de Saúde foi Renato Romeu Sorgatto, produtor de tomate e dono de uma fábrica de processamento que fornece polpa para o mercado de molhos, ketchup e pratos congelados. Ele desembolsou R$ 320 mil para Célio Silveira, do MDB de Goiás. A quantia representa mais da metade de todas as doações de pessoas físicas e deixa o deputado em segundo lugar entre os membros que mais receberam financiamento do agronegócio, atrás apenas do presidente da comissão, Zé Vitor, que recebeu mais de R$ 900 mil.

Deputado Zé Vitor, presidente da comissão de Saúde. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Agrados ao presidente da comissão

Em razão do seu posto, cabe ao deputado Zé Vitor indicar os relatores dos projetos de lei que tramitam na Comissão de Saúde, além de definir o que entra na pauta de votação ou fica engavetado. Por isso, é relevante saber quem são seus financiadores e que interesses eles defendem. Considerando apenas as doações a partir de R$ 50 mil, o parlamentar do PL recebeu R$ R$ 925.489,10 mil de 10 empresários, principalmente do ramo sucroalcooleiro. O valor representa 47,7% de todas as doações de pessoas físicas.

Assim como Robert Carlos Lyra, João Emílio Rocheto foi um dos maiores financiadores de campanha do deputado: doou R$ 200 mil. O empresário é fundador da Bem Brasil, uma fabricante de batatas pré-fritas congeladas que tem uma série de redes de fast food entre seus clientes. 

Zé Vitor está no segundo mandato e atualmente faz parte de 10 frentes parlamentares relacionadas à saúde, mas sua trajetória sempre esteve ligada ao agronegócio. Ele também é membro da Frente Parlamentar da Agropecuária e sócio-administrador da empresa Campo Brasil, do ramo de alimentos e fertilizantes. 

Gráfico: Rodrigo Bento/Intercept Brasil

O deputado Zé Vitor não respondeu o e-mail que enviamos. Exceto o Grupo Cerradinho, que não conseguimos contato para enviar os questionamentos, todas as empresas cujos donos financiaram a campanha do parlamentar receberam nossos e-mails, mas não responderam até o fechamento dessa reportagem. 

Projetos contra alimentos nocivos emperram

O dossiê “Big Food: como a indústria interfere em políticas de alimentação”, lançado em 2022 pela ONG ACT Promoção em Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, mostra quais são as estratégias do setor, incluindo as grandes corporações do agronegócio, para alterar, atrasar ou anular políticas públicas que poderiam melhorar a qualidade de vida dos consumidores, mas ameaçam o lucro das empresas. 

A interferência se dá, entre outras formas, por meio de lobby direto ou indireto com os parlamentares, financiamento de políticos e partidos ou mesmo ameaça de retirada de incentivos. As doações de campanha são uma das maneiras de influenciar diretamente os deputados, para que eles votem de acordo com os interesses dos seus financiadores.

Segundo um levantamento da ONG, ao menos 11 projetos de lei que tramitam na Câmara de Deputados contrariam interesses do agronegócio – oito deles passaram, já estão ou ainda vão passar pela Comissão de Saúde. Desses, três dispõem sobre comércio e publicidade de bebidas com baixo teor nutricional e alimentos ultraprocessados ou com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e sódio. Outros três projetos tratam da rotulagem desses produtos e de bebidas industrializadas, para alertar sobre os riscos do consumo em excesso. Por fim, dois projetos propõem aumentar os impostos para bebidas não-alcoólicas, ou produtos com adição de açúcar, edulcorantes e aromatizantes. 

‘O agronegócio influencia diretamente a agenda regulatória da saúde.’

Paula Johns, diretora executiva da ACT e membro do comitê gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, afirma que o agronegócio influencia diretamente a agenda regulatória da saúde, seja por meio das entidades representativas do setor, como o Instituto Pensar Agro, ou de forma institucional, por meio da Frente Parlamentar Agropecuária. 

Segundo ela, está mais difícil aprovar na Comissão de Saúde projetos de lei que antes passariam facilmente, diante de evidências científicas que justificassem a importância de determinada regulação – a exemplo dos alimentos ultraprocessados, cujo consumo está associado ao aumento de problemas de saúde como obesidade, hipertensão e diabetes. 

Gráfico: Rodrigo Bento/Intercept Brasil

“Acompanho o Congresso há 20 anos. Havia uma certa garantia de que a gente conseguia avançar com as propostas regulatórias na Comissão de Saúde. Os projetos normalmente paralisavam na Comissão de Assuntos Econômicos. Agora, aumentou o grupo de resistência”, afirmou Johns. 

Osmar Terra recebeu R$ 300 mil

Cinco empresários do Grupo Alibem, produtor de carne bovina e suína, além de ultraprocessados, doaram para a campanha de outro membro da Comissão de Saúde, o deputado Osmar Terra, do MDB do Rio Grande do Sul. Médico de formação, ele se destacou como um negacionista durante a pandemia. Em 2020, chegou a propor um projeto de lei contra o isolamento de pessoas que já tivessem contraído o vírus da covid-19, como se não fosse possível se contaminar novamente e transmitir o vírus para outras pessoas.

Nada disso foi relevante para os empresários Eduardo Shen Pacheco da Silva, José Roberto Fraga Goulart, Lee Shing Wen, Maximiliano Chang Lee e Michele Shen Lee. Juntos, eles desembolsaram R$ 250 mil para o negacionista de uma pandemia que causaria mais de 700 mil mortes no Brasil. O valor representa 45% de todas as doações feitas ao deputado por pessoas físicas. 

O Grupo Alibem foi alvo de uma operação da Polícia Federal em 2015, que investigou casos de corrupção envolvendo empresas do agronegócio gaúcho e a Superintendência Federal da Agricultura no Rio Grande do Sul. De acordo com a denúncia, a Alibem teria oferecido propina para o então superintendente Francisco Signor, para que ele a favorecesse com fiscalizações menos rígidas em seus frigoríficos. Seis anos após a operação, em 2021, o Ministério da Agricultura multou a Alibem em R$ 159,2 milhões com base na Lei Anticorrupção. O Ministério da Agricultura não respondeu se a multa foi paga. 

Em julho de 2018, quando a investigação ainda estava em andamento, o deputado Osmar Terra acompanhou o empresário Roberto Fraga Goulart em uma reunião com o então secretário executivo do Ministério da Agricultura e Pecuária no governo de Michel Temer, Eumar Roberto Novacki. O órgão também não respondeu qual foi a pauta do encontro, assim como Terra e Goulart. As perguntas foram enviadas por e-mail.

Outro empresário que se interessou em financiar a campanha de um negacionista foi Gilson Lari Trennepohl, dono da Stara Máquinas Agrícolas. Logo após o primeiro turno da eleição de 2022, a empresa enviou uma carta aos fornecedores, comunicando que reduziria sua base orçamentária em 30%, caso Lula ganhasse. Ele doou R$ 50 mil para a campanha de Osmar Terra e a mesma quantia para o deputado Pedro Westphalen, do PP, que é o terceiro vice-presidente da Comissão de Saúde. Já Bolsonaro recebeu R$ 350 mil. 

Assim como Terra, os empresários do agronegócio que financiaram sua campanha não responderam o contato que fizemos por e-mail.

Gráfico: Rodrigo Bento/Intercept Brasil

Apenas o deputado Ruy Carneiro respondeu nosso contato e disse que integra a Comissão de Saúde há muito tempo. Ele acrescentou também que nunca integrou a bancada do agronegócio e até apresentou um projeto que contraria os interesses do setor – o PL do Bem-estar Animal, que disciplina o abate de animais pela indústria agropecuária. “Com relação às doações, todas foram realizadas seguindo rigorosamente o que determina a lei e de forma transparente”, rebateu.

Com exceção da Cachaça Pitu e do Grupo Vale do Verdão, que não conseguimos contato para enviar os questionamentos, todas as empresas receberam nossos e-mails, mas não responderam nossos questionamentos.

Johns defende a necessidade de a sociedade civil formar uma frente ampla que envolva as questões de saúde, de justiça social e ambiental para enfrentar o lobby do agronegócio. “Se a gente não descobrir uma maneira de impedir a escalada dessa influência, vamos ficar patinando. ‌Hoje, não conseguimos avançar com nenhum tema, ou avançamos a passo de cágado”.

Esta reportagem foi produzida com o apoio do Instituto Serrapilheira.


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Este texto foi orginalmente publicado pelo site “The Intercept Brasil” [Aqui!].

Na França de Macron, os lobistas estão dentro do palácio presidencial

macron amazon

Emmanuel Macron com o diretor de operações francesas da Amazon, Ronan Bolé (à direita) durante visita à fábrica da Amazon em Boves, perto de Amiens, em 3 de outubro de 2017. © Photo Yoan Valat / Pool / AFP

Por Raphael Schmeller para o JungeWelt

Os escândalos estão se acumulando: poucos dias após as revelações dos Arquivos Uber” , a próxima alegação de lobby contra o presidente francês Emmanuel Macron já está na sala. Desta vez, trata-se de relacionamentos questionáveis ​​entre o ex-ministro da Economia e várias grandes empresas de tecnologia.

Em um artigo publicado na noite de quarta-feira, a Mediapart informou ter acesso a históricos de conversas entre “assessores do presidente e lobistas e executivos do GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft)” a partir do segundo semestre de 2017. A Mediapart já havia solicitado ao Palácio do Eliseu em 2019 a apresentação dos documentos pertinentes. Com referência ao segredo comercial, o pedido foi indeferido. O jornal online reclamou ao tribunal administrativo, e obteve sucesso para conseguir visualizar os documentos “há poucos dias”.

Entre outras coisas, revela que um lobista da Amazon teria trabalhado para a campanha presidencial de Macron em 2017. Os documentos mostram como o representante do grupo norte-americano, Jean Gonié, interveio ativamente no que estava acontecendo em termos de programação. Ao fazer isso, ele “avançou o assunto da transformação da França em um campeão de comércio e logística online”, disse a Mediapart nos documentos. E ainda: Gonié “durante a campanha presidencial nos grupos de trabalho do En Marche (partido de Macron na época, jW) em que participou”, diz uma nota que o gerente de campanha Fabrice Aubert teria endereçado a Macron. Depois que Macron foi eleito chefe de Estado alguns meses depois, ele nomeou Aubert seu “assessor sobre instituições, ação pública e mudança digital”.

A relação privilegiada com o grupo norte-americano e Emmanuel Macron continuou mesmo depois de ele se mudar para o Palácio do Eliseu em maio de 2017. “Estou ansioso para vê-lo novamente amanhã”, escreveu o lobista da Amazon em um e-mail a um conselheiro de Macron, Aubert, em setembro de 2017. A reunião deles estava marcada para preparar a inauguração do centro logístico de Boves, perto de Amiens, no dia 3 de outubro de 2017, na presença do Presidente da República e de vários chefes da Amazônia. O resultado: Emmanuel Macron então se emocionou na inauguração que a Amazon estava mostrando que “há um futuro na região, incluindo um futuro industrial”. Mas isso foi apenas o começo: 16 locais da Amazon foram abertos na França desde 2017. Em 2020, Macron recebeu o fundador da Amazon, Jeffrey Bezos, com pompa no palácio presidencial. Em fevereiro de 2021, a Amazon assinou um acordo com a agência de empregos francesa Pôle Emploi. Na época, seu chefe, Jean Bassères, disse que sua autoridade queria “apoiar a empresa na contratação de funcionários em todo o país”. Além disso, o Pôle Emploi se comprometeu totalmente “a acompanhar a recente abertura da plataforma logística da Amazon no Plateau de Frescaty”.

A proximidade entre o governo e a Amazon é “problemática”, observa Mediapart . Especialmente porque o grupo estava em uma disputa com as autoridades fiscais sobre evasão fiscal quando Macron assumiu o cargo e o governo de Macron estava trabalhando em um “imposto GAFA”, que não deveria ocorrer durante todo o mandato.

France and Germany plan big crackdown to plug tax loopholes exploited by  Apple, Google, Facebook and Amazon | The Financial Express

A história do Mediapart sobre Jean Gonié é o segundo caso em apenas alguns dias em que uma pesquisa jornalística descobriu como lobistas de grandes corporações ajudaram Macron a ganhar poder. Na segunda-feira passada, o jornal britânico The Guardian informou que Mark MacGann, então um dos lobistas do Uber, havia ajudado pessoalmente o secretário de Negócios Macron a arrecadar dinheiro para seu partido La République en Marche, fundado em 2016.


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Este texto escrito originalmente em alemão foi publicado pelo jornal “JungeWelt” [Aqui!].

Uber quebrou leis, enganou a polícia e pressionou secretamente governos, revela vazamento de documentos

  • Mais de 124.000 documentos confidenciais vazaram para o Guardian
  • Arquivos expõem tentativas de lobby de Joe Biden, Olaf Scholz e George Osborne
  • Emmanuel Macron auxiliou secretamente o lobby do Uber na França, revelam textos
  • Empresa usou ‘kill switch’ durante as incursões para impedir que a polícia visse dados
  • Ex-CEO da Uber disse a executivos que ‘violência garante sucesso’

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Por Harry Davies, Simon Goodley, Felicity Lawrence, Paul Lewis and Lisa O’Carroll para o “The Guardian”

O tesouro vazado de arquivos confidenciais revelou a história interna de como a gigante da tecnologia Uber desrespeitou as leis, enganou a polícia, explorou a violência contra motoristas e pressionou secretamente os governos durante sua expansão global agressiva.

O vazamento sem precedentes para o Guardian de mais de 124.000 documentos – conhecidos como arquivos Uber – expõe as práticas eticamente questionáveis que alimentaram a transformação da empresa em uma das exportações mais famosas do Vale do Silício.

O vazamento abrange um período de cinco anos em que o Uber era administrado por seu cofundador Travis Kalanick , que tentou forçar o serviço de táxi em cidades ao redor do mundo, mesmo que isso significasse violar leis e regulamentos de táxi.

Durante a feroz reação global, os dados mostram como o Uber tentou reforçar o apoio cortejando discretamente primeiros-ministros, presidentes, bilionários, oligarcas e barões da mídia.

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Taxistas franceses protestando contra serviços privados de aluguel como o Uber. Fotografia: Olivier Coret/Rex/Shutterstock

Mensagens vazadas sugerem que os executivos do Uber não tinham ilusões sobre a violação da lei da empresa, com um executivo brincando que eles se tornaram “piratas” e outro admitindo: “Somos apenas ilegais”.

O cache de arquivos, que abrange 2013 a 2017, inclui mais de 83.000 e-mails, iMessages e mensagens do WhatsApp, incluindo comunicações muitas vezes francas e sem verniz entre Kalanick e sua equipe de executivos.

Os arquivos do Uber são uma investigação global baseada em um tesouro de 124.000 documentos que vazaram para o Guardian. Os dados consistem em e-mails, iMessages e trocas de WhatsApp entre os executivos mais seniores da gigante do Vale do Silício, além de memorandos, apresentações, cadernos, documentos informativos e faturas.

Os registros vazados cobrem 40 países e vão de 2013 a 2017, período em que o Uber estava se expandindo agressivamente pelo mundo. Eles revelam como a empresa infringiu a lei, enganou a polícia e os reguladores, explorou a violência contra motoristas e fez lobby secreto contra governos em todo o mundo.

Para facilitar uma investigação global de interesse público, o Guardian compartilhou os dados com 180 jornalistas em 29 países por meio do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ). A investigação foi gerenciada e liderada pelo Guardian com o ICIJ.

Em um comunicado , a Uber disse: “Não temos e não daremos desculpas para comportamentos passados que claramente não estão alinhados com nossos valores atuais. Em vez disso, pedimos ao público que nos julgue pelo que fizemos nos últimos cinco anos. e o que faremos nos próximos anos.”

Em uma troca, Kalanick rejeitou as preocupações de outros executivos de que enviar motoristas do Uber para um protesto na França os coloca em risco de violência de oponentes furiosos no setor de táxi. “Acho que vale a pena,” ele retrucou. “A violência garante o sucesso”.

Em um comunicado , o porta-voz de Kalanick disse que “nunca sugeriu que o Uber deveria tirar vantagem da violência em detrimento da segurança do motorista” e qualquer sugestão de que ele estivesse envolvido em tal atividade seria completamente falsa.

O vazamento também contém textos entre Kalanick e Emmanuel Macron , que secretamente ajudou a empresa na França quando era ministro da Economia, permitindo ao Uber acesso frequente e direto a ele e sua equipe.

Macron, o presidente francês, parece ter feito um esforço extraordinário para ajudar o Uber, chegando a dizer à empresa que havia feito um “acordo” secreto com seus oponentes no gabinete francês.

Em particular, os executivos da Uber expressaram desdém mal disfarçado por outros funcionários eleitos que eram menos receptivos ao modelo de negócios da empresa.

Depois que o chanceler alemão, Olaf Scholz, que era prefeito de Hamburgo na época, se opôs aos lobistas do Uber e insistiu em pagar um salário mínimo aos motoristas, um executivo disse a colegas que ele era “um verdadeiro comediante”.

Quando o então vice-presidente dos EUA, Joe Biden, na época apoiador do Uber, chegou atrasado a uma reunião com a empresa no Fórum Econômico Mundial em Davos, Kalanick mandou uma mensagem para um colega: que cada minuto de atraso que ele está, é um minuto a menos que ele terá comigo.

 Depois de conhecer Kalanick, Biden parece ter alterado seu discurso preparado em Davos para se referir a um CEO cuja empresa daria a milhões de trabalhadores “liberdade para trabalhar quantas horas quiserem, gerenciar suas próprias vidas como quiserem”.

 O The Guardian liderou uma investigação global sobre os arquivos vazados do Uber, compartilhando os dados com organizações de mídia de todo o mundo por meio do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ). Mais de 180 jornalistas de 40 meios de comunicação, incluindo Le Monde, Washington Post e BBC, publicarão nos próximos dias uma série de reportagens investigativas sobre a gigante da tecnologia.

Em comunicado em resposta ao vazamento , a Uber admitiu “erros e equívocos”, mas disse que se transformou desde 2017 sob a liderança de seu atual presidente-executivo, Dara Khosrowshahi.

“Não temos e não vamos dar desculpas para comportamentos passados que claramente não estão alinhados com nossos valores atuais”, afirmou. “Em vez disso, pedimos ao público que nos julgue pelo que fizemos nos últimos cinco anos e pelo que faremos nos próximos anos.”

O porta-voz de Kalanick disse que as iniciativas de expansão da Uber foram “lideradas por mais de uma centena de líderes em dezenas de países ao redor do mundo e em todos os momentos sob supervisão direta e com total aprovação dos robustos grupos jurídicos, políticos e de conformidade da Uber”.

“Abrace o caos”

Os documentos vazados abrem as cortinas sobre os métodos que a Uber usou para lançar as bases de seu império. Uma das maiores plataformas de trabalho do mundo, a Uber é agora uma empresa de US$ 43 bilhões (£ 36 bilhões), fazendo aproximadamente 19 milhões de viagens por dia.

Os arquivos cobrem as operações da Uber em 40 países durante um período em que a empresa se tornou um gigante global, demolindo seu serviço de táxi em muitas das cidades em que ainda opera hoje.

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Um carro Uber em Moscou. Fotografia: Fifg/Alamy

De Moscou a Joanesburgo, financiada com financiamento de capital de risco sem precedentes, a Uber subsidiava viagens pesadamente, seduzindo motoristas e passageiros para o aplicativo com incentivos e modelos de preços que não seriam sustentáveis.

O Uber minou os mercados estabelecidos de táxis e táxis e pressionou os governos a reescrever as leis para ajudar a pavimentar o caminho para um modelo de trabalho baseado em aplicativos e de economia de shows que desde então proliferou em todo o mundo.

Em uma tentativa de reprimir a reação feroz contra a empresa e obter mudanças nas leis trabalhistas e de táxi, a Uber planejou gastar extraordinários US$ 90 milhões em 2016 em lobby e relações públicas, sugere um documento.

Sua estratégia muitas vezes envolvia passar por cima das cabeças dos prefeitos e autoridades de transporte e direto para a sede do poder.

Além de se encontrarem com Biden em Davos, os executivos do Uber se encontraram cara a cara com Macron, o primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e George Osborne, então chanceler do Reino Unido. Uma nota da reunião retratou Osborne como um “forte defensor”.

Em um comunicado, Osborne disse que era política explícita do governo na época se reunir com empresas globais de tecnologia e “convencê-las a investir na Grã-Bretanha e criar empregos aqui”.

Embora a reunião de Davos com Osborne tenha sido declarada, os dados revelam que seis ministros conservadores do Reino Unido tiveram reuniões com o Uber que não foram divulgadas. Não está claro se as reuniões deveriam ter sido declaradas, expondo a confusão sobre como as regras de lobby do Reino Unido são aplicadas.

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Táxis bloqueiam Whitehall durante um protesto contra a decisão de conceder à Uber uma licença para operar em Londres em 2016. Fotografia: Andy Rain/EPA

Os documentos indicam que a Uber era adepta de encontrar caminhos não oficiais para chegar ao poder, aplicando influência por meio de amigos ou intermediários, ou buscando encontros com políticos nos quais assessores e funcionários não estavam presentes.

Conquistou o apoio de figuras poderosas em lugares como Rússia, Itália e Alemanha, oferecendo-lhes participações financeiras premiadas na startup e transformando-as em “investidores estratégicos”.

E em uma tentativa de moldar os debates políticos, pagou a acadêmicos proeminentes centenas de milhares de dólares para produzir pesquisas que apoiassem as alegações da empresa sobre os benefícios de seu modelo econômico.

Apesar de uma operação de lobby bem financiada e obstinada, os esforços da Uber tiveram resultados mistos. Em alguns lugares, o Uber conseguiu persuadir os governos a reescrever as leis, com efeitos duradouros. Mas em outros lugares, a empresa se viu bloqueada por indústrias de táxi entrincheiradas, superadas por rivais locais de táxis ou contestadas por políticos de esquerda que simplesmente se recusavam a ceder.

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Um manifestante segura um sinalizador durante um protesto em Paris contra o Uber. Fotografia: François Mori/AP

Quando confrontado com a oposição, o Uber procurou aproveitá-lo, aproveitando-o para alimentar a narrativa de que sua tecnologia estava interrompendo sistemas de transporte antiquados e instando os governos a reformar suas leis.

Quando o Uber foi lançado em toda a Índia, o principal executivo de Kalanick na Ásia pediu aos gerentes que se concentrassem em impulsionar o crescimento, mesmo quando “os incêndios começarem a queimar”. “Saiba que isso é uma parte normal dos negócios da Uber”, disse ele. “Abrace o caos. Significa que você está fazendo algo significativo.”

Kalanick pareceu colocar esse ethos em prática em janeiro de 2016, quando as tentativas do Uber de derrubar os mercados na Europa levaram a protestos furiosos na Bélgica, Espanha, Itália e França de taxistas que temiam por seus meios de subsistência.

Em meio a greves de táxi e tumultos em Paris, Kalanick ordenou que executivos franceses retaliassem, incentivando os motoristas do Uber a realizar um contra-protesto com desobediência civil em massa.

Alertado de que isso colocaria os motoristas do Uber em risco de ataques de “bandidos de extrema direita” que se infiltraram nos protestos de táxi e estavam “preparando uma briga”, Kalanick pareceu pedir que sua equipe avançasse independentemente. “Acho que vale a pena”, disse ele. “A violência garante o sucesso. E esses caras devem ser resistidos, não? Concordaram que o lugar e a hora certos devem ser pensados.”

A decisão de enviar motoristas do Uber para protestos potencialmente voláteis, apesar dos riscos, foi consistente com o que um ex-executivo sênior disse ao Guardian ser uma estratégia de “armar” os motoristas e explorar a violência contra eles para “manter a controvérsia acesa”.

Foi uma cartilha que, sugerem os e-mails vazados, foi repetida na Itália, Bélgica, Espanha, Suíça e Holanda.

Quando homens mascarados, supostamente motoristas de táxi furiosos, atacaram os motoristas do Uber com soqueiras e um martelo em Amsterdã em março de 2015, os funcionários do Uber procuraram tirar vantagem disso para ganhar concessões do governo holandês.

As vítimas dos motoristas foram encorajadas a registrar relatórios policiais, que foram compartilhados com o De Telegraaf, o principal jornal diário holandês. Eles “serão publicados sem nossa impressão digital na primeira página amanhã”, escreveu um gerente. “Mantemos a narrativa da violência por alguns dias, antes de oferecer a solução.”

O porta-voz de Kalanick questionou a autenticidade de alguns documentos. Ela disse que Kalanick “nunca sugeriu que o Uber deveria tirar vantagem da violência em detrimento da segurança do motorista” e qualquer sugestão de que ele estivesse envolvido em tal atividade seria “completamente falsa”.

O porta-voz do Uber também reconheceu erros passados ​​no tratamento dos motoristas da empresa, mas disse que ninguém, incluindo Kalanick, queria violência contra os motoristas do Uber. “Há muito que nosso ex-CEO disse há quase uma década que certamente não toleraríamos hoje”, disse ela. “Mas uma coisa que sabemos e sentimos fortemente é que ninguém no Uber jamais ficou feliz com a violência contra um motorista.”

O ‘interruptor de matar’

Os motoristas do Uber foram, sem dúvida, alvo de ataques violentos e às vezes assassinatos por taxistas furiosos. E o aplicativo de táxi, em alguns países, se viu lutando contra frotas de táxis entrincheiradas e monopolizadas com relações acolhedoras com as autoridades municipais. A Uber frequentemente caracterizou seus oponentes nos mercados regulamentados de táxi como operando um “cartel”.

No entanto, em particular, os executivos e funcionários do Uber parecem ter poucas dúvidas sobre a natureza muitas vezes desonesta de sua própria operação.

Em e-mails internos, a equipe se referiu ao “status diferente do legal” da Uber ou outras formas de não conformidade ativa com os regulamentos, em países como Turquia, África do Sul, Espanha, República Tcheca, Suécia, França, Alemanha e Rússia.

Um executivo sênior escreveu em um e-mail: “Não somos legais em muitos países, devemos evitar fazer declarações antagônicas”. Comentando sobre as táticas que a empresa estava preparada para implantar para “evitar a fiscalização”, outro executivo escreveu: “Nós nos tornamos oficialmente piratas”.

Nairi Hourdajian, chefe de comunicações globais da Uber, foi ainda mais direto em uma mensagem para um colega em 2014, em meio aos esforços para fechar a empresa na Tailândia e na Índia: “Às vezes temos problemas porque, bem, somos apenas ilegais. .” Contatado pelo Guardian, Hourdajian se recusou a comentar.

O porta-voz de Kalanick acusou os repórteres de “pressionar sua agenda falsa” de que ele havia “dirigido conduta ilegal ou imprópria”.

O porta-voz da Uber disse que, quando começou, “não existiam regulamentações de transporte compartilhado em nenhum lugar do mundo” e as leis de transporte estavam desatualizadas para a era dos smartphones.

Em todo o mundo, a polícia, autoridades de transporte e agências reguladoras tentaram reprimir o Uber. Em algumas cidades, as autoridades baixaram o aplicativo e aclamaram as corridas para que pudessem reprimir as viagens de táxi sem licença, encontrar motoristas do Uber e apreender seus carros. Os escritórios da Uber em dezenas de países foram repetidamente invadidos pelas autoridades.

Nesse cenário, a Uber desenvolveu métodos sofisticados para impedir a aplicação da lei. Um era conhecido internamente na Uber como “kill switch”. Quando um escritório da Uber foi invadido, os executivos da empresa enviaram freneticamente instruções à equipe de TI para cortar o acesso aos principais sistemas de dados da empresa, impedindo as autoridades de coletar evidências.

Os arquivos vazados sugerem que a técnica, assinada pelos advogados do Uber, foi implantada pelo menos 12 vezes durante batidas na França, Holanda, Bélgica, Índia, Hungria e Romênia.

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Travis Kalanick falando para estudantes em Mumbai em 2016. Foto: dinamarquês Siddiqui/Reuters

O porta-voz de Kalanick disse que tais protocolos de “kill switch” são uma prática comercial comum e não foram projetados para obstruir a justiça. Ela disse que os protocolos, que não excluem dados, foram examinados e aprovados pelo departamento jurídico da Uber, e o ex-CEO da Uber nunca foi acusado de obstrução de justiça ou delito relacionado.

O porta-voz da Uber disse que seu software kill switch “nunca deveria ter sido usado para impedir uma ação regulatória legítima” e parou de usar o sistema em 2017, quando Khosrowshahi substituiu Kalanick como CEO.

Outro executivo que os arquivos vazados sugerem estar envolvido em protocolos de kill switch foi Pierre-Dimitri Gore-Coty, que dirigia as operações do Uber na Europa Ocidental. Ele agora dirige o Uber Eats e faz parte da equipe executiva de 11 pessoas da empresa.

A Gore-Coty disse em um comunicado que lamentava “algumas das táticas usadas para obter uma reforma regulatória para o compartilhamento de caronas nos primeiros dias”. Olhando para trás, ele disse: “Eu era jovem e inexperiente e muitas vezes recebia orientações de superiores com ética questionável”.

Os políticos agora também enfrentam dúvidas sobre se eles seguiram a direção dos executivos do Uber.

Quando um oficial da polícia francesa em 2015 pareceu proibir um dos serviços do Uber em Marselha, Mark MacGann, o principal lobista do Uber na Europa, Oriente Médio e África, recorreu ao aliado do Uber no gabinete francês.

“Vou analisar isso pessoalmente”, respondeu Macron. “Neste momento, vamos manter a calma.”

Relatório de arquivos Uber: Harry Davies, Simon Goodley, Felicity Lawrence, Paul Lewis, Lisa O’Carroll, John Collingridge, Johana Bhuiyan, Sam Cutler, Rob Davies, Stephanie Kirchgaessner, Jennifer Rankin, Jon Henley, Rowena Mason, Andrew Roth, Pamela Duncan , Dan Milmo, Mike Safi, David Pegg e Ben Butler.


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Este texto foi originalmente escrito em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].