Garimpo ilegal nas terras indígenas Munduruku e Yanomami colaborou para aumento de 108% nos casos de malária entre 2018 e 2021
A malária avança na região Amazônica principalmente devido ao garimpo ilegal associado ao desmatamento. Um estudo da Universidade de Brasília (UnB) reúne constatações científicas anteriores e aponta que a área de garimpo em terras indígenas aumentou 102% entre 2018 e 2021. Esse fato impactou, possivelmente, no aumento de casos de malária nas terras indígenas Yanomami, em Roraima, e Munduruku, e no Pará, de acordo com a análise publicada na segunda (24) na “Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical”.
O trabalho traça o cenário epidemiológico da malária em áreas de garimpo no Norte do país em um período maior de tempo, de 2011 a 2023, e propõe estratégias para o controle da incidência da doença na região, a partir da revisão da literatura dos principais estudos sobre o tema. Foram usados dados de casos da doença registrados nestes 13 anos no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica (Sivep-Malária) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
Segundo o pesquisador Pablo Sebastian Tavares Amaral, de 2018 a 2021, foi registrado um aumento de 108% nos casos de malária em pacientes das áreas de garimpo da região Amazônica. “Esses números podem ser subestimados, uma vez que, devido à atividade do garimpo ser ilegal, muitos omitem a informação de que são garimpeiros”, salienta Amaral, que é coautor do estudo e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da UnB.
Em 13 anos, mais de 253 mil casos de malária foram registrados em áreas de garimpo. Os registros começam a subir, principalmente, a partir de 2020. Dentre as regiões mais afetadas, estão os estados do Mato Grosso e de Roraima, com aumento de casos entre 2017 e 2022, principalmente em áreas de garimpo ilegal. Em 2020, 59% dos garimpos brasileiros eram ilegais, segundo dados da pesquisa.
Ao mapear as áreas de garimpoimpactadas pela malária, a pesquisa traz resultados que podem orientar ações de vigilância e de controle da doença na Amazônia. “Conhecer as áreas prioritárias e a dinâmica da doença é essencial para direcionar melhor as ações”, explica Amaral. Ele ressalta que, por serem ilegais, as áreas de garimpo têm pouca estrutura de saúde, o que dificulta o tratamento para a doença.
O grande número de garimpos ilegais impõe desafios para o seu monitoramento, segundo o trabalho. Essas áreas acabam virando criadouros de mosquitos que transmitem a malária. Por isso, como estratégia, o estudo identifica a necessidade de revisar a legislação para aumentar o controle sobre o desmatamento e as atividades de garimpo, principalmente em terras indígenas.
Além dela, outras estratégias citadas são expandir a vigilância da malária, por meio da ação de agentes comunitários, e de ações multissetoriais para fornecer assistência imediata às populações indígenas. Outra proposição do estudo é de conectar dados de desmatamento e malária, inserindo alertas sobre desmatamento no Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária. Essas ações podem ter impacto na melhoria do diagnóstico e do tratamento da malária nas terras indígenas e outras regiões mais afetadas pela doença.
O grupo de pesquisa continua a fazer estudos sobre malária na Amazônia, procurando entender o impacto das grandes obras hidrelétricas na dispersão da doença. “Esses empreendimentos passam por um processo de licenciamento ambiental que insere a malária em um plano específico, diferente dos garimpos ilegais”, explica Amaral. O pesquisador procura entender se essas ações direcionadas podem ter efeito no controle da doença na região.
Um estudo no Brasil constatou que perto de rios de águas escuras há maior incidência de malária que em zonas que lindan com rios de águas claras. Crédito da imagem: Alexandre Amorim/Panoramio , sob licença Creative Commons CC BY-SA 3.0 Deed
Por Pablo Corso para a SciDev
As populações que vivem próximas de rios de águas escuras têm maior incidência de malária do querios de águas claras, é o que mostra um estudo pesquisadores brasileiros no Malaria Journal .
Esta informação deveria facilitar a identificação de zonas com alto risco de transmissão de doenças e contribuir para o planejamento de ações preventivas.
A malária é transmitida pelo mosquito Anopheles , com casos sendo impulsionados pela combinação de más instalações sanitárias, degradação ambiental , mudanças de temperatura e condições hidrológicas.
No Brasil, a doença se concentra nos estados da Amazônia, e em alguns rios se reproduzem os mosquitos que atuam como vetores.
Na Amazônia, que abriga uma das maiores bacias hidrográficas do mundo, sedimentos como areia, silte e argila afetam a coloração dos rios, o que deriva em pistas confiáveis sobre a presença —ou não— do mosquito que transmite a malaria. Os rios classificados como brancos, segundo dados do estudo, transportam grande quantidade de sedimentos. Os “negros” levam grandes quantidades de nutrientes orgânicos.
Os casos de malária são mais frequentes nestes últimos, concluiu o estudo que se estendeu durante 17 anos (2003-2019) em 50 municípios do estado do Amazonas.
“É possível que estes achados ajudem a melhorar as estratégias de controle, ampliando o conhecimento sobre a identificação de zonas com maior risco de transmissão (…) e que ser extrapoladas para regiões com características semelhantes”.
Jesem Yamall Orellana, coautor do estudo
Os sedimentos em suspensão, em mudança, baixam a temperatura e aumentam a velocidade das águas, um obstáculo para a reprodução do vetor.
Para realizar essas observações, o pesquisador recorreu a imagens de satélite, informações de estações pluviométricas e bases de dados oficiais sobre a doença.
“Ao comparar os valores mais altos de incidência de malária, a probabilidade de que fosse menor nos rios de água branca era cerca de 96%”, precisou SciDev.Net Jesem Yamall Orellana, um dos autores do trabalho.
“É possível que esses achados ajudem a melhorar as estratégias de controle, ampliando o conhecimento sobre a identificação de zonas com maior risco de transmissão”, acrescenta. “Pode-se extrapolar para regiões com características semelhantes”.
Gabriel Zorello Laporta, autor de outro trabalho sobre a incidência da Malária no Brasil, sinalizou que a pesquisa “estabelece em termos formais uma relação empírica muito conhecida pelos entomólogos que trabalham na região amazônica”. Coincide que os resultados poderiam extrapolar para países como o Peru, onde vive o mesmo vetor ( Nyssorhynchus darlingi ), mas não poderia acontecer o mesmo em países com vetores diferentes.
O caminho da prevenção
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o planeta registrou 247 milhões de casos de malária em 2021. Isso representa dois milhões a mais que em 2020, embora se atribua a suba à interrupção dosserviços sanitários durante a pandemia.
Em países onde a doença é endêmica, a incidência foi reduzida de 82 casos por cada 1.000 habitantes em 2000 para 57 em 2019, destaca o Relatório Mundial sobre Maláriade 2022.
Enquanto a África relatava 95 % dos casos de malária no mundo, nas Américas o número baixou de 1,5 milhão em 2000 para 600.000 em 2021. Países como Argentina, Paraguai e El Salvador conseguiram eliminar a doença.
O Brasil também mostra uma tendência decrescente, com ações de prevenção, controle e vigilância. Entre eles, Yamall Orellana destaca o “apoio técnico, maior acesso a mosquitos e inseticidas de longa duração, testes de diagnóstico rápido, melhorias em redes de laboratórios, educação sanitária e formação de profissionais”.
Então, fique muito por fazer. “Dos 29 municípios classificados como de alto risco pelo Ministério da Saúde do Brasil em 2021, 14 foram estabelecidos no Amazonas”, precisa. “Esses estados são muito grandes e heterogêneos e —em geral— compreendem territórios de difícil acesso, o que torna muito desafiador o controle da doença”, disse Zorello Laporta.
Isso dificultou zonas de abarca como Roraima, o estado onde habitam os indígenas yanomami, vítimas deuma catástrofe social e sanitáriaque complica ainda mais a abordagem.
Junto ao Pará, neste estado também avançou o garimpo ilegal. “Os portadores assintomáticos perpetuam a transmissão, especialmente se eles fizerem parte de uma atividade econômica ilícita, que implica uma dinâmica de mobilidade entre diversas localidades”, explica.
O contexto nacional, de Zorello Laporta, motiva um grande otimismo, porque o governo de Lula da Silva respalda “a conservação das florestas, dos direitos indígenas e das disparidades na saúde”, elogia. “O compromisso político e económico é fundamental para sustentar a luta contra a malária”.
Esta luta, advertiu Yamall Orellana, deve se estender a países como Venezuela e Colômbia, que junto com o Brasil concentram cerca de 80% dos casos na América do Sul
“A situação epidemiológica ainda é preocupante” nessas nações, alerta, porque se enfrenta desafios persistentes em torno da disposição de dados confiáveis e estratégias para melhorar o diagnóstico e o acesso ao tratamento.
Este artigo escrito originalmente em espanhol foi produzido pela edição da América Latina e Caribe do SciDev.Net e publicado Aqui!
O Brasil é o primeiro país com malária endêmica nas Américas a registrar um medicamento para crianças
A malária é encontrada principalmente em países tropicais e pode causar sintomas leves, como febre e calafrios, ou mais graves, causando a morte. Crédito da imagem: Nathalie Brasil/MMV/PATH
Por Renata Fontanetto para a SciDev
[Rio de Janeiro] O Brasil é o primeiro país da região a aprovar o uso de um medicamento antimalária formulado para crianças de dois anos ou mais, um dos grupos mais afetados por infecções graves e em risco de morte devido a quem ainda não desenvolveu imunidade.
O medicamento tafenoquina (Kozenis) é produzido pela GlaxoSmithKline (GSK) e coproduzido pela Medicines for Malaria Venture (MMV), e foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 21 de agosto. É indicado no combate às recidivas da malária.
A nova formulação é vista com bons olhos porque só deve ser diluída em água em dose única, o que facilita a adesão ao tratamento; e por ser uma opção de cura radical ou prevenção de recaídas, quando o microrganismo permanece adormecido no fígado e, se reativado, pode causar novas doenças.
““A pesquisa mostrou que o medicamento é seguro e eficaz em crianças, assim como a formulação para adultos. A maior vantagem é que uma dose única garantiu 94,7% de não recorrência da doença após quatro meses de acompanhamento”.
Elodie Jambert, Diretora de Acesso e Gestão de Produtos da Medicines for Malaria Venture (MMV)
Segundo oestudoque apoiou a aprovação do medicamento no Brasil, as recaídas em crianças podem causar anemia, aumentar o aparecimento de outras doenças e atrasar o pleno desenvolvimento físico e cognitivo.
Na América Latina, o parasita Plasmodium vivax ( P. vivax ) causa 75% dos casos naregião. Venezuela, Brasil e Colômbia são responsáveis por quase 80% dos casos na região, de acordo com o Relatório Mundial sobre Malária de 2022 .
“A pesquisa mostrou que o medicamento é seguro e eficaz em crianças, assim como a formulação para adultos. A maior vantagem é que uma dose única garantiu 94,7% de não recorrência da doença após quatro meses de acompanhamento”, disse Elodie Jambert, diretora de Acesso e Gestão de Produtos da MMV, ao SciDev.Net .
Até agora, para P. vivax , o tratamento mais convencional para crianças de seis meses a 15 anos com malária recidivante é a primaquina após administração de cloroquina. Contudo, os comprimidos devem ser cortados ou esmagados, o que pode causar erros de dosagem.
Além disso, o tratamento leva sete ou 14 dias, o que prejudica a adesão e, portanto, a cura radical da doença.
De acordo com estudo publicado em 2021 no The Lancet Child & Adolescent Health que avaliou eficácia, segurança e dosagem adequada em crianças, o medicamento é seguro e eficaz na faixa de dois a 15 anos. Alguns efeitos adversos detectados foram vômitos e regurgitações após a administração da primeira dose. No grupo de 60 participantes, sete tiveram que tomar novamente o medicamento.
“É muito importante que a tafenoquina seja tomada com alimentos para evitar distúrbios gastrointestinais”, alerta Jambert. Além disso, assim como a primaquina, a tafenoquina só pode ser usada se o paciente não apresentar deficiência da enzima G6PD (glicose-6-fosfato desidrogenase), condição que pode causar complicações sanguíneas.
Um porta-voz da Anvisa disse ao SciDev.Net que a nova formulação pediátrica deve ser diluída apenas em água, e é indicada para pacientes com idade igual ou superior a dois anos e peso superior a 10 kg e até 35 kg.
A aprovação ocorre após aincorporação da tafenoquina 300 mg (para maiores de 16 anos) no Sistema Único de Saúde (SUS), em junho. Jambert afirma que o próximo passo é buscar a incorporação da tafenoquina pediátrica também no SUS.
O infectologista Marcus de Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, participou de outra investigação que avaliou a viabilidade da incorporação da tafenoquina para adultos no SUS. No entanto, ele alerta para um possível obstáculo que exige logística e preparação do sistema:
“O maior problema é a necessidade de testar a deficiência da enzima G6PD antes de administrar o medicamento, o que também está se tornando uma demanda cada vez mais necessária para a primaquina”.
Na região, Jambert afirma que os relatórios de avaliação já foram submetidos às agências reguladoras do Peru e da Colômbia, países onde a MMV aguarda as próximas aprovações. Consultada pelo SciDev.Net , a GSK preferiu não comentar.
Este artigo escrito originalmente em espanhol foi produzido pela edição América Latina e Caribe do SciDev.Net e publicado [Aqui!].
A ‘Estrada para o Caos’ atravessa o território Yanomami na Amazônia. Fotografia: Valentina Ricardo / Greenpeace
Tom Phillips, sobre o território indígena Yanomami, para o “The Guardian”
O avião de vigilância saiu da pista e virou para o oeste em direção à linha de frente de uma das crises ambientais e humanitárias mais dramáticas do Brasil.
Seu objetivo: uma estrada clandestina de 120 km (75 milhas) que máfias de garimpeiros ilegais abriram nas selvas do maior território indígena do Brasil nos últimos meses, em uma tentativa audaciosa de introduzir escavadeiras nessas terras supostamente protegidas.
“Eu chamo de Estrada para o Caos”, disse Danicley de Aguiar, o ambientalistado Greenpeaceque lidera a missão de reconhecimento do imenso santuário indígena perto da fronteira do Brasil com a Venezuela.
Ativistas acreditam que milhares de escavadeiras estão operando dentro de um enorme santuário indígena no norte do Brasil.
Aguiar disse que esse maquinário pesado nunca havia sido detectado no território Yanomami – uma extensão de montanhas, rios e florestas do tamanho de Portugal no extremo norte da Amazônia brasileira.
“Acreditamos que há pelo menos quatro escavadeiras lá – e isso leva a mineração no território Yanomami para o próximo nível, para um nível colossal de destruição”, disse o ativista florestal sênior, enquanto sua equipe se preparava para subir aos céus para confirmar a existência da estrada.
A cabine do avião encheu-se de conversas animadas uma hora após o início do vôo, quando os primeiros vislumbres da artéria clandestina surgiram.
Foto de uma missão de reconhecimento sobre um imenso santuário indígena próximo à fronteira do Brasil com a Venezuela. Fotografia: Valentina Ricardo / Greenpeace
“Encontramos, pessoal!” comemorou o navegador, enquanto o piloto realizava uma série de manobras de revirar o estômago sobre o velame para ter uma visão mais clara da pista de terra.
“Essa é a Estrada para o Caos”, anunciou Aguiar pelo sistema de comunicação interna do avião.
“E este é o caos”, acrescentou, apontando para um buraco na floresta tropical onde três escavadores amarelos haviam escavado uma mina de ouro nas margens do rio Catrimani, cor de café.
Em uma clareira próxima, um quarto escavador foi visto destruindo um território onde vivem cerca de 27 mil membros dos povos Yanomami e Ye’kwana, incluindo várias comunidades que não têm contato com o mundo exterior. É preocupante que uma dessas aldeias isoladas esteja a apenas 16 quilômetros da estrada ilegal, disse Aguiar.
Sônia Guajajara, uma importante líder indígena que também estava no avião, suspeitava que os criminosos haviam se beneficiado das recentes eleições presidenciais do Brasil para infiltrar seus equipamentos nas terras Yanomami. “Todo mundo estava focado em outras coisas e eles aproveitaram”, disse Guajajara.
A chegada de escavadeiras – testemunhada pela primeira vez por jornalistas do Guardian e da emissora brasileira TV Globo – é o capítulo mais recente de um ataque de meio século por gangues de mineradores poderosas e politicamente conectadas.
Os garimpeiros estão devastando o território Yanomami na Amazônia. Fotografia: Valentina Ricardo / Greenpeace
Garimpeiros selvagens conhecidos como garimpeiros começaram a migrar para a terra Yanomami em busca de minério de estanho e ouro nas décadas de 1970 e 1980, depois que a ditadura militar exortou os brasileiros pobres a ocupar uma região que chamou de “uma terra sem homens para homens sem terra”.
Enormes fortunas foram feitas – e muitas vezes perdidas. Mas para os Yanomami foi uma catástrofe. Vidas e tradições foram derrubadas. Aldeias foram dizimadas por epidemias de gripe e sarampo. Cerca de 20% da tribo morreu em apenas sete anos, de acordo com o grupo de direitos humanos Survival International.
Um clamor global viu dezenas de milhares de mineiros despejados no início dos anos 1990 como parte de uma operação de segurança chamada Selva Livre (Libertação da Selva). Sob pressão internacional, o então presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, criou uma reserva de 9,6 milhões de hectares. “Temos que garantir um espaço aos Yanomami para que eles não percam sua identidade cultural ou seu habitat”, disseMello .
Esses esforços inicialmente tiveram sucesso, mas na década seguinte os garimpeiros estavam de volta devido ao aumento dos preços do ouro, fiscalização negligente e pobreza opressiva que garantiu aos chefes de mineração um suprimento constante de trabalhadores exploráveis.
O ataque se intensificou depois que Jair Bolsonaro – um populista de extrema-direita que quer que as terras indígenas sejam abertas ao desenvolvimento comercial – foi eleito presidente em 2018, com o número estimado de 25.000 garimpeiros selvagens nas terras Yanomami.
“Foi um governo de sangue”, disse Júnior Hekurari Yanomami, um líder Yanomami que culpou Bolsonaro por encorajar os invasores com sua retórica anti-indígena e por paralisar as agências ambientais e de proteção indígena do Brasil.
Quando o jornalista do Guardian Dom Phillips, que foi assassinado na Amazônia em junho passado, visitou uma mina no território Yanomami no final de 2019, ele encontrou “uminferno industrial operado manualmente em meio à beleza tropical selvagem” : mineiros cobertos de lama usando andaimes de madeira e mangueiras de alta pressão para abrir caminho através da terra.
“É surpreendente. Você está no colo dessa grande floresta e é quase como se estivesse em um daqueles filmes antigos sobre o antigo Egito… Todas aquelas máquinas monstruosas destruindo a terra para ganhar dinheiro”, disse o fotógrafo João Laet que viajou para lá com os britânicos repórter.
Três anos depois, a situação piorou ainda mais com a chegada das escavadeiras hidráulicas e da estrada ilegal.
A mineração ilegal de ouro foi retomada durante o mandato do presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro. Fotografia: Valentina Ricardo / Greenpeace
Alisson Marugal, promotor federal encarregado de proteger as terras Yanomami, disse que a introdução de tal maquinário foi um desenvolvimento preocupante para as comunidades que já enfrentam uma “tragédia humanitária” aguda.
Mineiros, alguns com ligações suspeitas com facções do tráfico, provocaram violência sexual, surtos de malária e forçaram o fechamento de postos de saúde, expondo crianças a níveis “escandalosos” de doenças e desnutrição. Os rios estavam sendo envenenados com mercúrio por uma frota ilegal de cerca de 150 embarcações de mineração.
Marugal disse que o Ibama, órgão ambiental do Brasil com poucos recursos, lançou operações esporádicas, explodindo e incendiando pistas de pouso ilegais, helicópteros e aviões usados para chegar ao território. Mas a intermitência de tais missões – e as enormes recompensas econômicas envolvidas – significavam que eram apenas uma inconveniência temporária.
Os pilotos de Bush poderiam receber até 1.000.000 reais (£ 160.000) por alguns meses perigosos transportando garimpeiros, suprimentos e profissionais do sexo para acampamentos remotos na selva. Para seus patrões, os lucros eram ainda maiores.
O novo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu tirar os garimpeiros do mercadoe reduzir o desmatamento, que disparou sob o governo de Bolsonaro.
“Tanto o Brasil quanto o planeta precisam da Amazônia viva”, disse Lula em seu primeiro discurso após derrotar seu rival por pouco nas eleições de outubro.
Marugal acreditava que acabar com o garimpo ilegal em terras Yanomami era perfeitamente possível se houvesse vontade política, algo que faltava totalmente no governo Bolsonaro. Na verdade, o Ibama já tinha um plano envolvendo uma ofensiva implacável de seis meses que cortaria as linhas de abastecimento dos garimpeiros e os forçaria a fugir da floresta, deixando-os sem combustível e comida.
Aguiar argumentou que uma repressão militarizada não teria sucesso a longo prazo, a menos que fosse acompanhada por políticas que atacassem as dificuldades sobre as quais o crime ambiental foi construído.
“Isso não vai ser resolvido apenas com fuzis”, disse o ativista. “Superar a pobreza é uma parte essencial da superação desta economia de destruição.”
Hekurari Yanomami também espera uma intervenção federal em larga escala quando o novo governo tomar posse em janeiro, mas alerta que derrotar os garimpeiros não será fácil.
“Esses garimpeiros não carregam apenas pás e machados… Eles têm fuzis e metralhadoras… Eles estão armados e todas as [suas] bases têm seguranças fortemente armados com o mesmo tipo de armas que o exército, a polícia federal e os militares uso da polícia”, disse.
O preço da inação seria a destruição de um povo que habita a floresta tropical há milhares de anos.
“Se nada for feito, vamos perder esta terra indígena”, disse Marugal. “Para os Yanomami, o panorama é sombrio.”
Este texto escrito originalment em inglês foi publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].
Estudo envolvendo pesquisadores de oito instituições mostra que doenças tropicais se espalham por áreas agrícolas e agroextrativistas da região
Agentes sanitários em ação contra a malária no interior do Pará: estudo mostra que desmatamento facilita disseminação de doenças na Amazônia (Foto: Agência Pará – 18/04/2021)
Por Agência Fiocruz de Notícias
A dispersão de doenças na Amazônia está diretamente relacionada à trajetória de desenvolvimento agrícola dos municípios e à perda de biodiversidade. Malária prevalece em municípios com perfil agroextrativista e com cobertura florestal, ou seja, metade do território amazônico. A dengue e chikungunya ocorrem com mais frequência em municípios de expansão urbana recente, como no limite sul da Amazônia em transição para o Cerrado. A leishmaniose cutânea prevalece em municípios com grandes rebanhos onde há maiores taxas de desmatamento e perda de biodiversidade. Já a COVID-19 se espalhou com facilidade em todos municípios, pois relaciona-se com o tráfego de pessoas. É o que aponta o estudo Epidemiology, Biodiversity, and Technological Trajectories in the Brazilian Amazon: From Malaria to COVID-19, publicado na revista Frontiers in Public Health, de autoria dos pesquisadores do projeto Trajetórias, do Centro de Síntese em Biodiversidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Os municípios da Amazônia convivem atualmente com elevadas taxas de desmatamento, perda de biodiversidade e alta carga de doenças tropicais negligenciadas. Aproximadamente dois terços desse bioma estão localizados em território brasileiro. Lá, as transformações socioeconômicas e ambientais da paisagem estão ligadas à dinâmica da economia agrária regional. Buscando integrar abordagens da economia, epidemiologia e de biodiversidade, os autores do estudo identificaram duas perspectivas principais de se relacionar com a terra e que se subdividem.
O primeiro conjunto de práticas (chamadas pelos pesquisadores de “trajetórias tecnoprodutivas”) se enquadram no modelo agropecuário, associado à intensa mudança da paisagem, homogeneizador e promotor de grande perda da cobertura florestal. A lógica envolvida nessas trajetórias tem como foco a eficiência do capital, orientada pelo lucro. “Existem algumas ideias de que o desenvolvimento econômico melhora a saúde e a qualidade de vida. Mas nem sempre isso é verdade, às vezes é o contrário”, afirma a epidemiologista Cláudia Codeço, professora e pesquisadora da Fiocruz e uma das autoras do estudo.
O segundo conjunto de trajetórias é relacionado ao modelo agroextrativista que se apoia no acúmulo de conhecimento local e na histórica adaptação ao bioma, descrevendo sua realidade rural a partir de referências históricas e de ocupação da terra. As trajetórias agroextrativistas são dominantes em metade do território Amazônico e estão concentradas em áreas cobertas por floresta contínua, nas quais amalária é uma doença importante e causa de grande mortalidade.
Essas trajetórias agropecuárias estão associadas com grande perda de biodiversidade e o aumento das doenças tropicais negligenciadas, como a leishmaniose, doença de Chagase aquelas relacionadas à transmissão pelo mosquito Aedes. “A criação de gado e plantio de grãos têm associação com altas taxas de desmatamento e têm se tornado trajetórias dominantes nos últimos anos”, comenta a pesquisadora da Fiocruz.
A trajetória da COVID-19 iniciou nas cidades, porém se espalhou rapidamente pelas comunidades rurais, ribeirinhas e que vivem nas florestas. “Esse fluxo se deu pela cadeia de contatos que envolveu os profissionais de saúde e assistentes sociais que transitam entre as regiões, assim como pelos moradores que saíram das grandes cidades rumo às áreas mais remotas”, explica a epidemiologista Claudia Codeço.
A COVID-19 foi agravada pela desigualdade de acesso a serviços básicos de saúde e de bens e serviços que assola a região. Além de abrir horizontes para monitorar o potencial avanço de doenças nos municípios amazônicos, o estudo inova com uma abordagem sistêmica na qual as perspectivas epidemiológicas, econômicas e ambientais são consideradas em conjunto.
O estudo foi elaborado pela equipe do projeto Trajetórias, vinculado ao Centro de Síntese em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (SinBiose) do CNPq e conta com pesquisadores cientistas sociais, naturais, da computação, da saúde e economia. Neste estudo colaboraram pesquisadores da Fiocruz, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Universidade do Acre (Ufac), Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Este texto foi produzido pela Agêncio Fiocruz de Notícias e publicado pelo Projeto Colabora [Aqui!].
Povos indígenas estão submersos em uma crise humanitária enquanto Bolsonaro incentiva mineiros selvagens com projetos em seus territórios na floresta tropical
Os Yanomami usam máscara facial enquanto participam de uma brigada de saúde do exército brasileiro no município de Alto Alegre, estado de Roraima, em junho passado. Fotografia: Joédson Alves / EPA
Por Flávia Milhorance para o “The Guardian”
Uma fotografia de uma garota Yanomami emaciada, aninhada apática em uma rede ao lado de uma panela vazia sobre o fogo apagado. Imagens trêmulas de indígenas gritando enquanto fogem em pânico ao som de tiros.
Imagens chocantes compartilhadas nas redes sociais brasileiras nesta semana destacaram uma espiral de violência, desnutrição e doenças que ameaçam devastar o povo Yanomami e seu território ancestral no estado amazônico de Roraima.
“Os Yanomami estão enfrentando uma crise humanitária, tão crítica quanto no final dos anos 1980, quando o território foi invadido por 40 mil garimpeiros ilegais”, disse a antropóloga Ana Maria Machado, integrante da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana .
Cerca de 27.000 Yanomami vivem na reserva, que tem o tamanho de Portugal. Mas, nos últimos anos, o território sofreu uma nova invasão por cerca de 20.000 garimpeiros – conhecidos como garimpeiros. No ano passado, o afluxo causou um aumento de 30% na mineração ilegal dentro do território, além de trazer doenças infecciosas.
Nos últimos cinco anos, houve um aumento de quase 500%nos casos de malária na reserva, enquanto nos primeiros oito meses de 2020, quase 14.000 novos casos e nove mortes pela doença foram relatados .
Uma menina Yanomami emaciada na aldeia Maimasi, estado de Roraima, libertada por um missionário católico. Fotografia: Folhapress
A pandemia de coronavírus só piorou a situação: dados do governodizem que mais de 1.640 Yanomami contraíram COVID-19 e 13 pessoas morreram, embora os líderes indígenas digam que o número real é maior. Até o momento, 60% dos Yanomami já foram vacinados, segundo um conselho indígena.
“A mineração ilegal descontrolada, o descaso com a saúde indígena e as epidemias de malária e coronavírus criaram tensões que crescem como uma panela de pressão prestes a explodir”, disse Machado.
“Estamos enfrentando muitas dificuldades: faltam profissionais, medicamentos como a cloroquina para tratar a malária e equipamentos”, disse Júnior Hekurari Yanomami, chefe do Condisi-YY, conselho indígena de saúde.
Hekurari disse que os líderes tribais apelaram repetidamente às autoridades federais sobre as invasões de terras e a crise de saúde.
“Não temos apoio do governo federal”, disse ele. “Mas o governo tem feito de tudo para atrapalhar a saúde indígena desde 2019.”
Foi nesse ano que Jair Bolsonaro assumiu o cargo e as tensões entre grileiros, garimpeiros e indígenas aumentaram constantemente desde o início de seu governo.
Bolsonaro apoiou a legislação para abrir áreas indígenas protegidas à mineração e isso transferiria a propriedade de grandes extensões de terra para posseiros ilegais. Ele também encorajou mineiros, madeireiros e grileiros ao enfraquecer a Funai, o órgão federal encarregado de proteger a população indígena do Brasil, e alegar repetidamente que os territórios indígenas são “grandes demais”.
“O Bolsonaro dá luz verde a todos os tipos de ilegalidade nas reservas”, disse Machado.
O recente surto de violência aconteceu depois que indígenas impediram que mineiros usassem o rio Uraricoera para chegar a um de seus acampamentos. Em retaliação, os garimpeiros realizaram uma série de ataques a aldeias isoladas, onde trocaram tiros com os Yanomami.
Três garimpeiros morreram e cinco pessoas, incluindo um indígena, ficaram feridas no ataque de 24 de abril à aldeia de Palimiú, disse Hekurari, que visitou o território logo em seguida.
Em uma segunda visita à aldeia, Hekurari foi acompanhado pela Polícia Federal, que também trocou tiros com homens fortemente armados vestidos de preto. Não houve vítimas dessa vez, mas os sinais de violência estavam por toda parte, disse ele. “Vimos buracos de bala em todos os lugares, na escola, nas casas. Foi muito sério. ”
Integrantes da etnia Yanomami aguardam testes do Covid-19 na terra indígena Surucucu, em Alto Alegre, no estado de Roraima, em julho passado. Fotografia: Nelson Almeida / AFP / Getty Images
A Polícia Federal de Roraima não respondeu a um pedido de comentários e a Funai disse que ainda está investigando os incidentes.
Na quinta-feira, tropas e policiais foram enviados a Palimiú para evitar novos confrontos, mas a violência já obrigou uma equipe do ministério da saúde a deixar a aldeia.
A pandemia agravoua insegurança alimentar em todo o Brasil, mas principalmente nas comunidades indígenas, onde a desnutrição já era um problema sério. Oito em cada 10 crianças Yanomami estão desnutridas, de acordo com umestudo do Unicef .
Depois que a imagem da garota Yanomami faminta se tornou viral, ela foi internada em um hospital público em Boa Vista, onde foi tratada de malária e desnutrição.
Mas, Carlo Zacquini, um missionário católico que divulgou a foto, disse que a região onde mora carece de cuidados básicos de saúde. “Existem aldeias longe das unidades de saúde que estão sem cuidados há meses, às vezes anos”, disse ele.
Zacquini, que trabalha com os Yanomami desde os anos 1960, não revelou o autor da foto, por temer represálias das autoridades.
“Liberar a foto traz riscos, mas era mais do que hora de fazer algo”, disse o homem de 84 anos.
Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].