Após censura, cientista faz levantamento inédito de pesquisas brasileiras que expõem impacto dos agrotóxicos na saúde

Pesquisadora foi perseguida após experimento que contestou dose segura de agrotóxicos. Levantamento reúne 51 estudos brasileiros dos últimos seis anos que trazem evidências sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde humana

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Por Schirlei Alves, especial para O Joio e O Trigo e De Olho nos Ruralistas

Quando foi convidada, em 2019, a colaborar em uma pesquisa de um colega da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a imunologista e pesquisadora científica do Instituto Butantan Mônica Lopes Ferreira não fazia ideia das barreiras que seriam impostas à divulgação da descoberta feita em seu experimento: a de que não há dose segura de agrotóxicos

Conhecida pela sua expertise em trabalhar com zebrafish – espécie de peixe cujo DNA é 70% similar ao material genético do ser humano –, ela foi contatada por um pesquisador da Fiocruz para submeter embriões de peixes à exposição de 10 tipos de agrotóxicos. “Quando ele me procurou, encarei, naquele momento, como sendo mais uma amostra que eu ia testar”.

Porém, o resultado não foi exatamente o esperado pelo colega. Segundo Ferreira, ele não quis dar publicidade ao achado, e também não autorizou a submissão dos dados para publicação. O que aconteceu foi que a dose considerada “segura” pelos órgãos de controle, causou mortalidade nos embriões de peixes. Quando diluída até mil vezes em água, os embriões apresentaram anomalias.

As substâncias submetidas ao teste foram glifosato, malationa, abamectina, acefato, alfacipermetrina, bendiocarb, carbofurano, diazinon, etofenprox e piriproxifem. Por serem usadas em larga escala no país, o resultado do experimento causou alvoroço.

Essa história coincidiu com o momento em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estava fazendo alterações na classificação dos agrotóxicos, também em 2019. Muitos dos produtos antes considerados como “extremamente tóxicos” pela agência foram rebaixados para categorias menos rigorosas. O então diretor da Anvisa, Renato Porto, e a então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, chegaram a dar entrevistas contestando o experimento da imunologista.   

O herbicida glifosato foi um dos agrotóxicos que teve a classificação de toxicidade reduzida pela Anvisa, embora àquela altura fosse um dos produtos classificados pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) como substância provavelmente carcinogênica para humanos; ou seja, capaz de provocar câncer. O Glifosato 480 Agripec, por exemplo, que até então era considerado pela Anvisa “extremamente tóxico” foi reclassificado para “produto improvável de causar dano”. Outra resolução, de 2020, reforçou a manutenção do uso de glifosato em agrotóxicos no país. 

De acordo com o painel de monografias de agrotóxicos da Anvisa – ferramenta que permite acesso a informações atualizadas sobre os ingredientes ativos de agrotóxicos em uso no Brasil –,  a aplicação de produtos à base de glifosato é permitida em 67 culturas, entre elas arroz, feijão, batata doce e mandioca. A mesma situação ocorre com o inseticida malationa e outros produtos.    

A própria Anvisa havia publicado, em 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff, uma nota alertando sobre a classificação carcinogênica de cinco substâncias, entre elas a malationa, a diaziona e o glifosato. Na época, a agência havia se comprometido a verificar os resultados dos estudos e a fazer novas avaliações sobre o uso desses ingredientes. 

A Bayer, gigante alemã responsável pela produção do Roundup, principal herbicida fabricado à base de glifosato, é alvo de uma ação movida por um casal em São Francisco, na Califórnia, que afirma ter desenvolvido câncer do sistema linfático depois de ter usado o produto por anos. A Monsanto, que criou a formulação do herbicida e o lançou mundialmente em 1974, foi condenada a pagar R$ 289 milhões ao zelador de uma escola, também na Califórnia. O homem desenvolveu câncer após entrar em contato com a substância. O veredito saiu em 2018 – ano em que a Monsanto foi comprada pela Bayer.   

Censura é respondida com ciência

Menos de um mês após divulgar o resultado do seu experimento, Mônica Lopes Ferreira recebeu um comunicado do Comitê de Ética Animal do Butantan dando conta de que ela estaria suspensa por seis meses sem direito de defesa – o que implicaria em não tocar mais os seus projetos. A justificativa foi a de que a cientista não teria submetido o experimento ao comitê, o que seria proibido. 

Segundo Ferreira, porém, não havia necessidade de submissão naquele caso porque o trabalho não havia envolvido animais, mas, sim, embriões com até 96 horas após a fertilização. “Só pode ser considerado animal a partir de 120 horas após a fertilização”, explica. 

A cientista conseguiu reverter a decisão do comitê por meio de uma liminar na Justiça. Mas outros fatos ocorreram na sequência, como o cancelamento de convites para determinados eventos, a perda do cargo de diretora do Laboratório Especial de Toxicologia Aplicada do Butantan e a abertura de um procedimento administrativo pelo instituto,  vinculado à secretaria estadual da Saúde de São Paulo.

Trecho da liminar.

A pesquisadora afirma que “a única forma que conhece de se manifestar é produzindo ciência”. Por isso, decidiu fazer, com a colaboração de oito colegas do Butantan, uma revisão sistemática de dezenas de estudos publicados por cientistas e produzidos a partir de 27 instituições públicas brasileiras que revelam os impactos dos agrotóxicos na saúde humana. O trabalho, intitulado “Os impactos dos agrotóxicos na saúde humana nos últimos seis anos no Brasil” foi publicado em março deste ano no International Journal of Environmental Research and Public Health – uma revista científica de pesquisa ambiental e saúde pública, de acesso aberto e revisada por pares. O artigo se debruça sobre 51 estudos que foram publicados em revistas científicas.

“A revisão é para dizer que é possível trabalhar com agrotóxicos dentro das instituições brasileiras, não há problema nisso. Nós não podemos ser perseguidos, precisamos ter liberdade para trabalhar com temas tão importantes para o Brasil”, explica Ferreira.

A cientista e seus colegas identificaram inicialmente 4.141 artigos produzidos no Brasil. Mas alguns critérios de corte foram estabelecidos para reduzir o número de pesquisas que seriam revisadas. Um deles foi o tempo de publicação, de 2015 a 2021. “Escolhi publicações dos últimos seis anos, quando houve uma avalanche de agrotóxicos sendo liberados.” 

Os artigos foram coletados das bases de dados PubMed, Scopus, Scielo e Web of Science. As buscas foram feitas por meio de palavras-chave como “pesticidas”, “humanos” e “Brasil”. No primeiro filtro, 381 artigos duplicados foram excluídos. Na sequência, dois revisores fizeram um estudo duplo-cego (quando os autores não sabem quem são os revisores) e selecionaram, de forma independente, títulos, termos de indexação e resumos para identificar artigos relevantes para possível inclusão. As discrepâncias foram resolvidas por um terceiro revisor. 

Em uma segunda rodada de seleção, os artigos foram lidos de forma independente por dois revisores que usaram como critérios de inclusão pesquisas desenvolvidas no Brasil envolvendo agrotóxicos, artigos em inglês ou português e pesquisas envolvendo estudos diretos em humanos ou células humanas expostas a pesticidas, incluindo relatos de casos. Os artigos que não se enquadraram nesses critérios foram excluídos.

A partir daí, foram revisados estudos de caso e dados transversais e experimentais de relatos de intoxicação em humanos em decorrência de causas ocupacionais, ambientais e acidentais. Os estudos experimentais correspondem a 76,5% dos trabalhos revisados. Além de Ferreira, assinam a revisão Adolfo Luis Almeida Maleski, Leticia Balan Lima, Jefferson Thiago Gonçalves Bernardo, Lucas Marques Hipolito, Ana Carolina Seni-Silva, João Batista-Filho, Maria Alice Pimentel Falcão e Carla Lima.

A maior parte dos estudos selecionados pela revisão são de áreas que concentram a produção de commodities agrícolas, sendo quase metade deles do Sul (46%) e 28% do Sudeste. 

Um dos apontamentos feitos pela revisão é de que os agrotóxicos não são usados apenas em culturas como a soja, o milho e o tabaco, mas estão presentes em várias outras como laranja, café, flores, banana, uva, ameixa, tomate, caqui, maçã, pêssego, morango, kiwi e vegetais.

Os agrotóxicos mais citados nos estudos foram inseticidas, herbicidas e fungicidas. Os artigos revelam mais de 20 efeitos decorrentes da exposição aos agroquímicos

Os agrotóxicos mais citados nos estudos foram inseticidas, herbicidas e fungicidas. Os artigos revelam mais de 20 efeitos decorrentes da exposição aos agroquímicos, indo desde reações agudas na pele e no sistema respiratório até doenças crônicas, incluindo anormalidades hematológicas (fatores de coagulação), infertilidade, abortos espontâneos, malformações fetais, doenças neurológicas e câncer. Mecanismos subjacentes a esses efeitos, como ações genotóxicas (alteração do DNA), neurotóxicas (nas terminações nervosas) e desreguladoras do sistema endócrino também foram detectados pelos cientistas brasileiros.

Além de apontar que o uso de agrotóxicos na agricultura está diretamente ligado à saúde humana, Mônica Ferreira e seus colegas esperam que os resultados dos artigos possam ajudar a “direcionar políticas de redução do uso dos produtos químicos e de proteção à saúde da população”. 

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Este texto foi originalmente publicado pelo “O Joio e o Trigo” [Aqui!].

Pesquisadora é perseguida após comprovar que não existe dose segura de agrotóxicos

Por Mariana Simões, Agência Pública/Repórter Brasil

 

Há 30 anos, a imunologista Mônica Lopes Ferreira desempenha uma celebrada carreira no Instituto Butantan, instituição pública centenária ligada à Secretaria da Saúde de São Paulo, que atua como centro de pesquisa biológica. Há dois meses, porém, Mônica tem passado por um campanha contra ela dentro do instituto.

Tudo começou quando a imunologista analisou dez agrotóxicos que estão entre os mais utilizados no Brasil e revelou que todos, em qualquer quantidade aplicada, causam graves prejuízos à saúde humana. São eles: abamectina, acefato, alfacipermetrina, bendiocarb, carbofurano, diazinon, etofenprox, glifosato, malathion e piripoxifem.

Os resultados demonstram que os pesticidas causam mortes e malformação de fetos em embriões de peixe-zebra até mesmo em dosagens equivalentes a até um trigésimo do recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

“Quando ele não matava, causava anomalia, o que para mim é uma coisa extremamente preocupante”, alerta Mônica, explicando que a genética do zebrafish, como é conhecido, é 70% semelhante à dos seres humanos.

O estudo foi encomendado em 2018 pela Fiocruz, pertencente ao Ministério da Saúde – que indicou os agrotóxicos a serem testados – e foi divulgado no início de agosto, com grande repercussão na imprensa.

Em resposta, o diretor da Anvisa Renato Porto e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, deram entrevistas contestando o estudo. Além deles, o ex-secretário de Agricultura e de Meio Ambiente de São Paulo, Xico Graziano, que tem ecoado a linha da ministra em seu blog, publicou um tweet desqualificando a pesquisa.

Em entrevista para a Agência Pública, Mônica afirma que a direção do Instituto Butantan embarcou num boicote, acusando-a de realizar o estudo sem o conhecimento do instituto. A instituição tem imposto barreiras para impedir que ela ministre cursos e dê palestras. No final de setembro, o instituto emitiu uma resolução dizendo que quaisquer treinamentos ou cursos ministrados por profissionais do Butantan “devem ser submetidos previamente à análise” pela comissão de ética.

Mas, para Mônica, o pior foi ter recebido um comunicado, em agosto, proibindo-a de submeter projetos de pesquisa para aprovação durante seis meses. Na semana passada, ela conseguiu uma liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo que suspendeu a punição. “Verifico que a decisão de suspensão da autora partiu de uma reunião da Comissão de Ética, contudo, a punição foi noticiada à autora sem a oportunidade de defesa prévia ou abertura de procedimento administrativo para apuração de responsabilidade, o que violaria as regras de Direito Administrativo para sanção dos funcionários públicos civis do Estado de São Paulo”, escreveu o juiz Luis Manuel Fonseca Pires.

Mas ela continua numa luta constante para limpar a sua reputação.

Apesar de o instituto dizer o contrário, Mônica assegura que o estudo foi realizado com a total ciência da instituição, inclusive do seu diretor: “Eu pessoalmente me encontrei com o diretor do Instituto Butantan, Dimas Tadeu Covas, e contei para ele sobre a minha pesquisa. Eu dei um seminário em abril sobre a pesquisa, onde eu mostrei os dados para as 90 pessoas que estavam na plateia. Então, dizer que ninguém sabia sobre essa pesquisa é estranho”.

Ela defende ainda os resultados obtidos. “Eu sei da importância do agronegócio, da importância da agricultura. Eu só acho que a gente não tem que brigar com o dado, com a ciência. A gente tem que trabalhar a partir dela.”

pesquisadoraMônica Lopes Ferreira é imunologista e trabalha com a caracterização toxinológica de venenos e toxinas animais no Instituto Butantan. Plataforma Zebrafish

Leia a entrevista:

O resultado do seu estudo sobre agrotóxicos causou uma reação forte no Instituto Butantan e no Ministério da Saúde. Conte como foi. 

No final de 2018, eu comecei a ser procurada por um pesquisador da Fiocruz e me disseram que eu tinha sido indicada pelo próprio Ministério de Saúde para realizar uma análise de toxicidade por agrotóxicos usando o zebrafish. A Fiocruz, por ser um órgão do Ministério da Saúde, foi quem me enviou os dez agrotóxicos a serem testados, com a tabela já das doses. Essas eram as doses que eles consideram ideal para a saúde humana. Eu fui então testar cada um desses.

Qual o resultado disso? O resultado é que, desses dez agrotóxicos, nenhum é excelente. Nenhum dá para dizer que a gente pode usar sem problema.

Ou eles causam mortalidade nos animais ou eles causam anomalias. Não morreu? Mas o bicho ficou doente, ficou com uma anomalia. Eu não fui a primeira a dizer que agrotóxicos causam problemas. Não fui a primeira e não serei a única. Existem muito estudos sobre isso.

O que aconteceu a seguir?

Eu recebi um email do Flávio Alves, da Fiocruz, que é o pesquisador que me encomendou a pesquisa, dizendo que recebeu um telefonema do Ministro da Saúde, danado da vida com a repercussão do estudo no Facebook, porque não foi boa. Ele disse que eu não deveria ter divulgado a pesquisa ainda porque a pesquisa não acabou. Então, eu consultei o meu email e mostrei para ele que ele tinha me autorizado, por email, a divulgar o estudo.

Acho que essa foi a virada, porque foi aí que o Instituto Butantan mudou de figura e disse que não se responsabilizava pela pesquisa. Eu recebi uma mensagem por email copiado para outros setores do Butantan, incluindo a diretoria e para advogados do instituto dizendo que o Butantan não é responsável pela pesquisa.

Depois eu recebo um email do diretor do Butantan dizendo que havia visto um tweet do ex-secretário estadual da agricultura [Xico Graziano] dizendo que tinha criticado o resultado da minha análise e que o Butantan não vai se responsabilizar por ela.

Foi aí que eu percebi uma mudança na ótima relação que eu tinha com a direção.

No dia seguinte, o Butantan emite uma nota para todos os pesquisadores do Butantan dizendo que eles não se responsabilizavam por “pesquisas independentes”. Aí passou a ter um clima muito ruim na instituição, porque todo mundo percebeu que aquilo era voltado para mim, porque a minha pesquisa tinha sido divulgada no Estadão e tinha tido uma grande repercussão.

Depois eu recebo uma notificação do Comitê de Ética Animal dizendo que a pesquisa não tinha sido submetida ao comitê e que como punição eu não poderia mais submeter nenhuma pesquisa para aprovação do comitê durante seis meses. Isso é grave para mim, porque significa que eu ia ficar sem trabalhar durante seis meses. Eu não tive direito nem de me explicar.

No dia 21 de agosto, eles entraram com um processo administrativo alegando que o Instituto Butantan não sabia que eu estava trabalhando na pesquisa sobre agrotóxico e que, portanto, não se responsabilizava por ela.

Mas eu pessoalmente me encontrei com o diretor do Instituto Butantan, Dimas Tadeu Covas, e contei para ele sobre a minha pesquisa. Eu dei um seminário em abril sobre a pesquisa, onde eu mostrei os dados para as 90 pessoas que estavam na plateia. Então dizer que ninguém sabia sobre essa pesquisa é estranho.

Eu não fui a primeira a dizer que agrotóxicos causam problemas. Eu não fui a primeira e não serei a única. Existem muitos estudos sobre isso. Então eu também me perguntei: onde está o problema? O que foi que eu falei que já não falaram? Então eu gostaria de saber: quem eu desagradei? Eu desagradei o Ministério da Saúde?

Por que você acredita que o estudo incomodou tanto o Instituto Butantan e o Ministério da Saúde?

Eu imagino que tenha um tema que tenha levado a isso tudo que é o tema dos agrotóxicos. Eu já participei de várias pesquisas e nada tinha sido dessa maneira. Eu desagradei a Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que foi contestar o estudo publicamente. O que que a Tereza Cristina tem a ver com o Instituto Butantan, para o instituto estar me punindo?

Eu não sou uma pessoa irresponsável. O meu pai é um plantador de cana-de-açúcar; se não fosse pela cana-de-açúcar, eu não teria educação, eu não estaria aqui. Então eu sei da importância do agronegócio, da importância da agricultura. Eu só acho que a gente não tem que brigar com o dado, com a ciência. A gente tem que trabalhar a partir dela. Por que não entender que se pode fazer melhor e se pode ter alternativas? Pode-se ter uma dose melhor.

Alguns outros colegas que eu conheço que trabalham com agrotóxicos me relataram que eles também têm sido perseguidos por conta dos agrotóxicos. Eu não sabia, até então, que existia todo um mundo de perseguição contra pessoas que estudam os agrotóxicos.

Para você ter uma ideia, eu tinha sido convidada para ir a um evento sobre zebrafish na Fiocruz do Rio de Janeiro. Agora, duas semanas atrás, eu recebo um email da Fiocruz dizendo que, em função da grande demanda para o seu curso, o curso foi cancelado. Mas isso não faz sentido nenhum porque, quando tem muita demanda, você não cancela um curso; pelo contrário, você só cancela quando não tem demanda. Cancelaram então a minha ida, mas o evento vai acontecer sem mim. Você acha coincidência? Eu sou a única que sou desconvidada, o resto do evento continua, só eu que não posso participar.

Você se sente perseguida?

Eu fico buscando um outro adjetivo para perseguição, mas não tenho encontrado. Eu acho que o que estão fazendo comigo é um assédio moral. Eu nunca pensei em precisar contratar um advogado por conta de algo que eu considero desnecessário. Eu sempre tive uma boa relação com o Instituto Butantan. Mas chegamos a um ponto que eu estou apanhando, e dói. Eu acho que eu não fiz nada para riscar ou manchar uma instituição pela qual eu sempre trabalhei.

Tem sido difícil levantar para trabalhar, eu ainda não tenho a alegria que eu tinha antes. Nunca imaginei passar por um momento desse, nos 30 anos que eu dediquei a essa instituição. Eu cheguei como estagiária e eu fiquei porque eu me apaixonei pelo Butantan. Entende por que é dolorido?

Eu sou de Alagoas e mudei minha vida para vir para cá porque encontrei esse celeiro de ciência, me encontrei aqui no Butantan e agora ver essas atitudes por parte da direção me dói demais. O que me entristece é eu não ter a alegria de estar aqui. Porque esse é meu ofício, é isso que eu gosto. Então agora eu vivo uma luta constante. Eu fico com a esperança de que isso vai passar. Mas eu não sei quando. Diante de todas essas coisas que estavam acontecendo, eu tive que contratar um advogado. Eu não estou tendo espaço para falar e me defender.

Desde 2015 eu dou um curso vinculado ao setor de cursos do Instituto Butantan para qualquer pessoa de nível de graduação para cima que querem trabalhar com o zebrafish, com aulas teóricas e práticas. Eu abro 30 vagas e eu recebo entorno de 100 inscrições todo ano. No total, já recebi 150 profissionais do Brasil inteiro para participar. O certificado de participação e a divulgação do curso saem pelo Instituto Butantan.

Nesse ano, eu fiz da mesma forma, como eu sempre faço. Três dias depois que inicio esse processo eu recebo um telefonema dizendo que o curso não poderia ser vinculado ao Instituto Butantan. É coincidência? Depois de tudo que aconteceu, eu não acredito mais em coincidências.

Esse ano veio uma normativa de que de agora em diante cursos precisam passar pelo Comitê de Ética Animal.

Eu me pergunto: para que tudo isso? Isso me deixa perplexa e me entristece.

Existe uma perseguição contra cientistas em curso?

Algumas pessoas têm colocado para mim que eles também têm sido alvos de algumas perseguições no trabalho. Como, por exemplo, são desconvidados de dar palestras. Eu acho que existe uma vontade de anular a ciência. Eu venho acompanhando, por exemplo, que o ministro Osmar Terra questionou o próprio dado da Fiocruz sobre drogas; outro ministro [Marcos Pontes] questionou os dados do Inpe sobre desmatamento. Tem o ministro da Educação, que fez essa confusão inteira com cortes de verba na educação. Depois vem a Tereza Cristina e questiona os meus dados. O que é isso? É anular a ciência. Nós estamos vivendo um dos momentos mais difíceis, eu acho. Querem desacreditar o que é a ciência. Isso é impossível porque não tem como desacreditar a ciência. Mas é melhor para muitos ter um país ignorante.

Eu acho que o que nós não podemos é nos calar. Temos que entender que nós somos uma força. Não podemos deixar ser amedrontados. Quando entendermos que juntos nós, cientistas, somos mais fortes, aí a coisa vai mudar. Então acho que o que precisamos é isso. A gente precisa falar, ter voz, e não se esconder. Temos que tirar esse medo.

Esta entrevista faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.