Guerra em Gaza: The Lancet estima que mais de 186 mil palestinos podem ter sido mortos no atual conflito

Contagem de mortos em Gaza: difícil mas essencial

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Por Rasha Khatib,  Martin McKee e Salim Yusuf para o “The Lancet”

Até 19 de junho de 2024, 37.396 pessoas foram mortas na Faixa de Gaza desde o ataque do Hamas e a invasão israelense em outubro de 2023, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, conforme relatado pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários.
Os números do Ministério foram contestados pelas autoridades israelitas, embora tenham sido aceites como precisos pelos serviços de inteligência israelitas.
a ONU e a OMS. Esses dados são apoiados por análises independentes, comparando as mudanças no número de mortes de funcionários da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) com aquelas relatadas pelo Ministério,que considerou as alegações de fabricação de dados implausíveis.

A coleta de dados está se tornando cada vez mais difícil para o Ministério da Saúde de Gaza devido à destruição de grande parte da infraestrutura.

O Ministério teve que aumentar seus relatórios habituais, com base em pessoas morrendo em seus hospitais ou trazidas mortas, com informações de fontes confiáveis ​​da mídia e socorristas. Essa mudança inevitavelmente degradou os dados detalhados registrados anteriormente. Consequentemente, o Ministério da Saúde de Gaza agora relata separadamente o número de corpos não identificados entre o número total de mortos. Em 10 de maio de 2024, 30% das 35.091 mortes não eram identificadas.

Alguns funcionários e agências de notícias usaram esse desenvolvimento, projetado para melhorar a qualidade dos dados, para minar a veracidade dos dados. No entanto, o número de mortes relatadas é provavelmente uma subestimação. A organização não governamental Airwars realiza avaliações detalhadas de incidentes na Faixa de Gaza e frequentemente descobre que nem todos os nomes de vítimas identificáveis ​​estão incluídos na lista do Ministério.

Além disso, a ONU estima que, até 29 de fevereiro de 2024, 35% dos edifícios na Faixa de Gaza foram destruídos,portanto, o número de corpos ainda enterrados nos escombros é provavelmente substancial, com estimativas de mais de 10.000.

Conflitos armados têm implicações indiretas na saúde além do dano direto da violência. Mesmo que o conflito termine imediatamente, continuará a haver muitas mortes indiretas nos próximos meses e anos por causas como doenças reprodutivas, transmissíveis e não transmissíveis. Espera-se que o número total de mortos seja grande, dada a intensidade deste conflito; infraestrutura de assistência médica destruída; escassez severa de alimentos, água e abrigo; a incapacidade da população de fugir para lugares seguros; e a perda de financiamento para a UNRWA, uma das poucas organizações humanitárias ainda ativas na Faixa de Gaza.

Em conflitos recentes, tais mortes indiretas variam de três a 15 vezes o número de mortes diretas. Aplicando uma estimativa conservadora de quatro mortes indiretas por uma morte direta para as 37 396 mortes relatadas, não é implausível estimar que até 186 000 ou até mais mortes poderiam ser atribuídas ao conflito atual em Gaza. Usando a estimativa populacional da Faixa de Gaza de 2022 de 2 375 259, isso se traduziria em 7,9% da população total na Faixa de Gaza. Um relatório de 7 de fevereiro de 2024, na época em que o número direto de mortos era de 28 000, estimou que sem um cessar-fogo haveria entre 58 260 mortes (sem uma epidemia ou escalada) e 85 750 mortes (se ambas ocorressem) até 6 de agosto de 2024.

Um cessar-fogo imediato e urgente na Faixa de Gaza é essencial, acompanhado de medidas para permitir a distribuição de suprimentos médicos, alimentos, água limpa e outros recursos para as necessidades humanas básicas. Ao mesmo tempo, há uma necessidade de registrar a escala e a natureza do sofrimento neste conflito. Documentar a verdadeira escala é crucial para garantir a responsabilização histórica e reconhecer o custo total da guerra. Também é um requisito legal. As medidas provisórias estabelecidas pela Corte Internacional de Justiça em janeiro de 2024 exigem que Israel “tome medidas eficazes para impedir a destruição e garantir a preservação de evidências relacionadas a alegações de atos dentro do escopo da Convenção sobre Genocídio”.

O Ministério da Saúde de Gaza é a única organização que conta os mortos. Além disso, esses dados serão cruciais para a recuperação pós-guerra, restauração de infraestrutura e planejamento de ajuda humanitária.

MM é membro do conselho editorial do Israel Journal of Health Policy Research e do International Advisory Committee do Israel National Institute for Health Policy Research. MM foi copresidente da 6ª Conferência Internacional de Jerusalém sobre Política de Saúde do Instituto em 2016, mas escreve a título pessoal. Ele também colabora com pesquisadores em Israel, Palestina e Líbano. RK e SY declaram não haver conflitos de interesses. Os autores gostariam de agradecer aos membros da equipe do estudo Shofiqul Islam e Safa Noreen por sua contribuição na coleta e gerenciamento dos dados para esta Correspondência.

Nota editorial: O Lancet Group assume uma posição neutra em relação a reivindicações territoriais em textos publicados e afiliações institucionais.


Fonte: The Lancet

Atirando em pessoas famintas na Faixa de Gaza

Dezenas de pessoas são mortas em Gaza enquanto se aglomeram para entrega de alimentos

gaza convoyDiz-se que a imagem do exército israelita mostra pessoas em torno de camiões de ajuda em Gaza.  Foto: AFP/DISPOSIÇÃO /IDF

Por Cyrus Salimi-Asl para o “Neues Deutschland” 

Dezenas de pessoas foram mortas no caos e nos tiroteios em torno de um comboio de ajuda humanitária na Faixa de Gaza na manhã de quinta-feira. A autoridade de saúde controlada pelo Hamas acusou o exército de Israel de atacar uma multidão na cidade de Gaza que esperava por ajuda. Diz-se que 104 pessoas morreram e 760 ficaram feridas. A informação não pôde inicialmente ser verificada de forma independente. O exército israelense disse que vários residentes se aglomeraram em torno dos caminhões que chegavam com suprimentos de socorro para saqueá-los. Dezenas de pessoas morreram e ficaram feridas em consequência de empurrões e atropelamentos.

De acordo com uma investigação inicial dos militares, cerca de dez pessoas foram atingidas por tiros disparados por soldados israelenses , informou o Times of Israel. Um porta-voz do governo israelense já havia descrito as mortes palestinas durante a distribuição de ajuda como uma tragédia, informou o canal de notícias saudita “Al-Arabiya”, dizendo que, de acordo com as descobertas iniciais, as mortes foram causadas por motoristas de caminhão que se misturaram à multidão. .

“Em algum momento, os caminhões ficaram sobrecarregados e os motoristas, que eram de Gaza, atacaram a multidão, matando, até onde sei, dezenas de pessoas”, disse o porta-voz Avi Hyman aos repórteres. Esta informação também não pôde ser verificada.

No entanto, à medida que a tarde de quinta-feira avançava, esta declaração oficial israelita foi-se tornando cada vez mais fraca. Vários meios de comunicação israelitas relataram, citando fontes do exército, que, por uma razão desconhecida, parte da multidão se aproximou dos soldados que coordenavam a importação dos camiões, colocando-os assim em perigo. “A multidão abordou as forças de uma forma que representava uma ameaça para as tropas, que responderam com fogo real”, disse uma fonte israelense anônima à AFP, segundo a Al-Arabiya. Vários meios de comunicação social também relataram, citando o exército, que palestinianos armados dispararam contra alguns dos camiões. Os militares inicialmente dispararam tiros de advertência para o ar e dispararam contra as pernas daqueles que se aproximaram dos soldados de qualquer maneira.

O correspondente Bernard Smith, reportando de Jerusalém Oriental para o canal de TV “Al-Jazeera”, disse que os militares israelenses “inicialmente tentaram culpar a multidão”. Mais tarde, “após alguma insistência”, os israelitas disseram que as suas tropas se sentiram ameaçadas e responderam abrindo fogo.

De acordo com o jornalista da Al Jazeera Ismail Al-Ghoul no local, os tanques israelenses avançaram após abrirem fogo e atropelaram muitos dos mortos e feridos. “ É um massacre , além da fome que ameaça os cidadãos de Gaza”, disse ele.

O Times of Israel relata que cerca de 30 caminhões chegaram à costa da cidade de Gaza no início da manhã. Milhares de palestinos correram em direção às vans. Diz-se que um vídeo do exército mostra o ataque.

Um residente local chamado Mahmud Ahmed disse à Agência de Imprensa Alemã que as pessoas queriam receber caminhões com suprimentos de ajuda humanitária do sul da Faixa de Gaza na manhã de quinta-feira para receber farinha e outros alimentosAinda estava escuro. De repente, tiros teriam sido disparados. De acordo com a testemunha ocular de 27 anos, granadas também teriam sido disparadas. O morador inicialmente fugiu, mas voltou ao amanhecer, informou. Quando regressou, o palestino viu vários cadáveres no chão. Esta informação também não pôde ser verificada de forma independente.

O coordenador de ajuda emergencial da ONU, Martin Griffiths, disse estar horrorizado. “Mesmo depois de quase cinco meses de hostilidades brutais, Gaza ainda pode nos chocar”, escreveu ele na plataforma X (antigo Twitter). “A vida está desaparecendo da Faixa de Gaza a um ritmo alarmante.”  

Com agências


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Este texto escrito originalmente em alemão foi publicado pelo jornal “Neues Deutschland” [Aqui!].

ABI emite nota em defesa do jornalista Breno Altman que sofre perseguição por seu apoio ao povo palestino

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INQUÉRITO CONTRA BRENO ALTMAN É INTIMIDAÇÃO!

A Associação Brasileira de Imprensa, por sua Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos, manifesta publicamente sua surpresa com a informação de que o Ministério Público Federal determinou à Delegacia de Direitos Humanos e Defesa Institucional da Polícia Federal, da Superintendência Regional do DPF em São Paulo, a abertura de Inquérito Policial para investigar o jornalista Breno Altman, editor do site Opera Mundi.

Pelas informações veiculadas na manhã deste sábado no site Brasil 247 o inquérito é resultado de reclamação descabida da Confederação Israelita do Brasil, que de forma enviesada e conveniente rotula as críticas de Altman ao sionismo como antissemitismo.

A ABI lembra que a Constituição de 1988 garante a todo e qualquer cidadão a liberdade de expressão. Da mesma forma, respaldado nesse princípio constitucional, o Supremo Tribunal Federal tem garantido por inúmeras decisões a liberdade de imprensa, assegurando a todos os jornalistas o direito à crítica.

Confundir as posições antissionistas de Altman – cidadão judeu – com crime de antissemitismo é fazer o jogo dos que defendem o genocídio que o governo de Israel comete na Palestina, ao provocar milhares de assassinatos, inclusive de inocentes crianças.

Para a ABI essa investigação soa como evidente assédio a um jornalista crítico. Uma tentativa de calá-lo com ameaça de um processo criminal, o que é inconcebível no estado democrático de direito, que todos nós jornalistas sempre nos empenhamos em defender, notadamente nos últimos anos.

Nesse sentido, entende que o próprio MPF ou a Justiça Federal, respeitando o estado democrático de direito e a Constituição Cidadã, devem providenciar o trancamento desse inquérito.

Certos de que a democracia que saiu vitoriosa no 8 de janeiro de 2023 prevalecerá e será respeitada, a ABI aguarda providências dos responsáveis por tal situação para dar um fim à campanha intimidatória que Altman vem sofrendo.

Aproveitamos o ensejo para desejar a todos um próspero 2024, no qual a democracia, a
liberdade de expressão e de imprensa prevaleçam.

Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2023

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DOS DIREITOS HUMANOS DA ABI

Ao unir a luta pela justiça climática à defesa dos palestinos, Greta Thunberg mostra porque é a personagem da hora

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Ao abraçar a causa palestina, Greta Thunberg mostra que a luta pela justiça climática vai além das mudanças climáticas

A ativista política sueca Greta Thunberg ascendeu meteoricamente à cena política mundial em agosto de 2018 quando iniciou um protesto inicialmente solitário contra a inação de governos e corporações frente às mudanças climáticas causadas pelo uso de combustíveis fósseis. Desde então, apesar de ser extremamente jovem, Greta se tornou uma figura de proeminência global tendo, inclusive,  liderado várias edições da chamada “Greve Climática Global“, a partir das quais ela se tornou uma voz a ser ouvida, inclusive em diversas conferências multilaterais que debatem as questões climáticas.

Por causa dessa proeminência, Greta Thunberg não é necessariamente uma figura popular tanto à direita como à esquerda. Curiosamente é da esquerda que Thunberg tem recebido acusações de ser uma espécie de agente infiltrada das corporações, muito em parte por causa das alegações não provadas de que ela seria financiada pelo megaespeculador George Soros ou até que seria neta dele.

A minha suspeita é que Thunberg gera esse tipo de rejeição, especialmente na América Latina, porque parte substancial da esquerda ainda vê a exploração de combustíveis fósseis como uma espécie de caminho necessário para o processo de desenvolvimento. Disso decorre que a mobilização exatamente contra o uso deste tipo de combustível que está associado ao aquecimento global é visto como uma espécie de colonialismo climático.

Mas agora Greta resolveu se meter em um vespeiro tão dramático quanto a questão das mudanças climáticas ao se colocar em defesa do direito dos palestinos de ter seu próprio Estado.  Além disso, Greta tem usado sua participação em atos em prol da justiça climática para defender a suspensão da agressão israelense em Gaza.  Essa adesão de Greta Thunberg tem gerado críticas dentro e fora do movimento climático, a ponto de suas manifestações serem alvo de tentativas de censura como ocorreu no domingo passado (12/11) em Amsterdam (ver vídeo abaixo).

O curioso é que no caso de Amsterdam, Greta Thunberg não apenas se negou a ser interrompida pela pessoa que invadiu o palco, como também puxou uma palavra de ordem que deve ter deixado muita gente incomodada que foi a consígnia “não há justiça climática em terra ocupada”. 

Aparentemente, o que muita gente ainda não entendeu (ou não quer entender) é que Thunberg é apenas a figura mais pública de uma geração que entende perfeitamente a gravidade da questão climática, mas que não se resume a ver o problema de forma excludente de outras questões políticas que se relacionam ao direito dos povos, como é a questão do direito à terra e à agua.

Por essas e outras, é que gostando-se ou não, Greta Thunberg é a figura da hora, e não parece pronta a sair facilmente de cena. 

Ao abandonar palestinos, Jair Bolsonaro coloca o Brasil numa realidade nova e mais perigosa

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Benjamin Netanyahu e Jair Bolsonaro se cumprimentam no Rio de Janeiro em dezembro do ano passado (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Já viajei por um pequeno número de países e nunca me senti sob nenhum tipo de risco especial apenas por ser brasileiro.  Também nunca me preocupei com possíveis atentados terroristas em solo brasileiro, especialmente aqueles organizados por segmentos extremistas do Islamismo.

Uma das razões para isso era a posição histórica da diplomacia brasileira de apoiar a causa palestina, mas sem se tornar adversária do Estado de Israel, o que evidenciou até hoje a correção da postura pragmática que perdurou até janeiro dentro do nosso ministério de Relações Exteriores.

Esse tempo de pragmatismo de resultados está sendo encerrado com a visita que será realizada pelo presidente Jair Bolsonaro a Israel onde quase certamente será anunciada a transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, no que será um aprofundamento do abraço dado nas ações da diplomacia estadunidense liderada por Donald Trump, Mike Pompeo e John Bolton.

Esse é um erro estratégico sob todos os pontos de vista, incluindo o político e o comercial, além do aumento do risco de atentados terroristas contra brasileiros dentro e fora de nosso território nacional. 

As consequências desse erro já serão sentidas pelo próprio presidente Jair Bolsonaro que está sendo aguardado em Israel por protestos organizados pela comunidade palestina. Como ele deverá ser mantido sob estrita proteção do governo de Israel, é bem provável que nem entenda o nó que está desatando.  Mas o Brasil e os brasileiros que não terão as benesses dessa proteção estarão entrando num mundo totalmente novo com as decisões sendo tomadas por Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores.  

 

Contra a solidariedade que precisamos, Jean Wyllys e a “esquerda” sionista

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Por Soraya Misleh
 
“Quando cidadãos em uma posição privilegiada formulam e desenham uma solução e a impõem a um povo colonizado e sob ocupação como a única solução viável e o ‘único passo construtivo restante’, isso não é solidariedade, mas sim outra forma de ocupação.” A afirmação é da palestina Budour Youssef Hassan em seu artigo intitulado “A falsa solidariedade da esquerda sionista”. O brilhante texto refere-se à realização de uma marcha em Jerusalém em 15 de julho de 2011 cujos slogans eram “luta compartilhada” e “solidariedade” contra a ocupação dos territórios palestinos – obviamente nenhuma menção ao direito legítimo de retorno dos milhares de refugiados às terras de onde vem sendo expulsos há mais de 67 anos ou sobre o racismo inclusive contra os palestinos que vivem onde hoje é Israel (criado em 1948, mediante limpeza étnica, a nakba – catástrofe palestina). 

 Para Budour Hassan, “uma marcha palestino-sionista não oferece uma oportunidade para se estabelecer um diálogo produtivo, mas dá aos sionistas uma chance de marginalizar vozes palestinas sobre como devem resistir e o que devem aceitar”. Ela acrescenta: “Assim, essas manifestações que ostensivamente exigem igualdade, na realidade, visam manter o privilégio dos israelenses.” Por conseguinte, condenam, enfatiza Budour Hassan, “os cidadãos palestinos em Israel à inferioridade perpétua e discriminação”. A ativista conclui: “A solidariedade não é medida por números; não é sobre quantas pessoas vieram a uma manifestação pró-Palestina. Trata-se de porque essas pessoas vieram. Lutar ao lado de cinquenta israelenses realmente comprometidos com a causa palestina é, portanto, muito mais importante e valioso do que marchar na sombra de milhares de israelenses que pensam que a Palestina é apenas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.”

Convocada por sionistas “de esquerda”, a marcha contou com algumas poucas presenças palestinas – a maioria declarara, como aponta o artigo em questão, que via em sua participação a oportunidade de obter a tão negada visibilidade na tradicional imprensa internacional. Ou seja, mesmo conscientes de que havia diferenças fundamentais e vale acrescentar – irreconciliáveis –, decidiram aproveitar uma suposta oportunidade de se fazer ver e ouvir. A despeito da atitude compreensível diante do regime de apartheid imposto cotidianamente por Israel aos palestinos, certamente um equívoco, como identifica a ativista palestina: “Essas manifestações são dominadas por sionistas liberais, e as vozes palestinas, as quais supostamente querem se fazer ouvir, são inaudíveis em meio a um coro de cânticos em língua hebraica sobre a paz e coexistência.
 
Mesmo os slogans e os cartazes que foram levantados durante as manifestações foram decididos de antemão pelos organizadores israelenses, transformando os protestos em uma rotina entediante, dolorosamente previsível e elitista.” Em outra parte do artigo, ela revela o grande risco de que esses grupos sequestrem o crescente movimento popular de resistência sob o manto da solidariedade e da coexistência. E vai além: “A solidariedade não é nem um ato de caridade, nem um festival de discursos arrogantes e retórica vazia. É uma obrigação moral que deve ser realizada com todo o empenho, firme e incondicional. (…) As tentativas de explorar o sofrimento palestino para fins políticos e de transformar a causa palestina a partir de uma luta pelos direitos humanos, justiça, liberdade e igualdade em um desfile de independência e clichês falsos devem ser combatidas.”
 
A essa “solidariedade” é que tem feito coro o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), desde o início de sua viagem para participar de conferência na Universidade Hebraica de Jerusalém. Sua atitude lembra a de movimentos que seguem a lógica do que vem sendo chamado de feminismo colonial, fundamentado na falsa dicotomia Oriente-Ocidente para ditar regras de comportamentos às árabes e às muçulmanas e, portanto, em ideias que mantêm o colonialismo e servem ao imperialismo. Entre essas, as de que as ditas “ocidentais” seriam a civilização a ser levada àqueles povos atrasados. É esse pensamento que demonstra Jean Wyllys quando afirma que não poderia ir a algumas cidades palestinas ou a países árabes vizinhos porque, como homossexual, seria morto. Um discurso que destila o preconceito que ele diz combater e revela o desconhecimento que se nega a ter humildade em reconhecer.
 
“Pombas da paz”
Quando o deputado reproduz a ideia de um diálogo possível, em contraposição à campanha central de solidariedade ao povo palestino – um chamado amplo dessa sociedade feito em 2005 ao mundo –, ignora a realidade no terreno e a história. Com a autoridade de quem luta por justas causas democráticas, presta um desserviço à causa palestina. Confunde a fundamental solidariedade internacional, ao falar em “esquerda” sionista como possível interlocutora e trazer questionamentos à eficácia da campanha BDS.
 
Em primeiro lugar, é preciso entender de que interlocutor possível e esquerda Jean Wyllys fala. “Na gíria israelense local e no discurso político utilizado pelos meios de comunicação e pela comunidade acadêmica, o ‘campo da paz’ em Israel é a ‘esquerda’. Noutras partes do mundo, tal significaria necessariamente uma plataforma social-democrática ou socialista, ou pelo menos uma preocupação acentuada com os grupos social e economicamente desfavorecidos numa dada sociedade. O campo da paz em Israel tem se concentrado inteiramente nas manobras diplomáticas desde a guerra de 1973, um jogo que tem pouca relevância para um número crescente de grupos”, ensina o historiador israelense Ilan Pappe em “História da Palestina moderna”.
 
Em resenha sobre a publicação “Falsos profetas da paz”, de Tikva Honig-Parnass, o Ijan (Rede Internacional de Judeus Antissionistas) demonstra que historicamente a “esquerda” sionista esteve tão alinhada com o projeto de colonização da Palestina quanto a direita. “Como esse livro mostra, desde antes da fundação do Estado de Israel, a esquerda sionista falou demasiadas vezes a língua do universalismo, enquanto ajudava a criar e manter sistemas jurídicos, governos e o aparato militar que permitiram a colonização de terras palestinas.”
 
A raiz dessa esquerda está no chamado “sionismo trabalhista”, constituído ao início da colonização, em fins do século XIX e início do XX. Seus membros reivindicavam a aspiração de princípios socialistas e cultivaram, como informa o texto divulgado no site do Ijan, deliberadamente essa falsa ideia. Os diários dos trabalhistas à época demonstram seu intuito não declarado: assegurar a “transferência” dos habitantes nativos (árabes não judeus em sua maioria) para fora de suas terras e a imigração de judeus vindos da Europa para colonizar a Palestina – um eufemismo para limpeza étnica. “Em um de seus momentos mais francos, David Ben Gurion, principal liderança desse grupo e chefe do movimento operário sionista (que se tornaria primeiro-ministro de Israel em 1948), confessou em 1922 que ‘a única grande preocupação que domina nosso pensamento e atividade é a conquista da terra, através da imigração em massa (aliá). Todo o resto é apenas uma fraseologia’.” O artigo cita ainda outra observação de Honig-Parnass: “No 20º Congresso Sionista, em 1937, Ben Gurion defendeu a limpeza étnica da Palestina (…) para abrir caminho à criação de um estado judeu.”
 
Independentemente de se autodenominar de “esquerda”, de “centro” ou de “direita”, o sionismo visava a conquista da terra e do trabalho, que seria exclusivo a judeus. Para tanto, a central sindical israelense Histadrut – ainda existente e alicerce do estado colonial, proprietária de empresas que exploram palestinos – teve papel central, e seu fortalecimento é defendido por sionistas de “esquerda”. Em outras palavras, a diferença entre os trabalhistas e os revisionistas (como Netanyahu) é que os últimos eram – e continuam a ser – mais francos.
 
O único partido hoje que se autodenomina sionista de esquerda é o Meretz, criado nos anos 1990. Como ensina Ilan Pappe em “A história moderna da Palestina”, o novo grupo de “pombas pragmáticas” surgiu da fusão do “movimento de direitos civis de Shulamit Aloni, um partido liberal da linha dura chamado Shinui (‘mudança’) e o partido socialista Mapam”. O autor acrescenta: “Pragmatismo nesse caso significava uma veneração tipicamente israelita de segurança e dissuasão, não um juízo de valor sobre a paz como conceito preferido, nem simpatia pelo problema do outro lado no conflito, nem reconhecimento do seu próprio papel na criação do problema.”
 
A “esquerda” sionista apoiou a invasão de Israel ao Líbano em 2006 e ofensivas subsequentes em Gaza, à exceção da operação terrestre em 2014. Sua alegação é que não abrem mão do direito de “defesa” de Israel. É o que conta Honig-Parnass em artigo publicado no The Palestine Chronicle. Durante o massacre em Gaza há 1,5 ano, informa a autora, o Meretz recusou-se a participar de manifestação conjunta com árabes-palestinos contra a ofensiva e pelo fim do cerco a Gaza, porque questionava esse “direito”. Em seu artigo, Honig-Parnass cita declaração de uma liderança do Meretz, Haim Orom, a respeito: “Nossa posição é essencialmente diferente do denominador comum daqueles grupos que organizaram a manifestação: Meretz apoia a operação em Gaza. Esses grupos não aceitam o direito básico de autodefesa do Estado de Israel, o que nos apoiamos. A massiva maioria do partido votou pela operação e por uma resolução em oposição ao ato terrestre.”
 
Arvorando-se a favor da paz, a “esquerda” sionista tenta apagar ou justificar a nakba. Racionaliza a afirmação da natureza democrática de um estado judeu e defende a lógica de “separados, mas iguais”. Essa “solução”, de dois estados, tornou-se inviável diante da expansão contínua da colonização, cuja face mais agressiva são os assentamentos – os quais não só não cessaram durante os sucessivos governos trabalhistas (no poder inclusive em 1967, quando Israel ocupou o restante da Palestina), como foram impulsionados por eles. Parte da esquerda mundial defende essa solução, mas um número crescente tem percebido sua impossibilidade e reconhecido que é preciso lutar por um estado único, laico e democrático, com direitos iguais a todos que queiram viver em paz com os palestinos.
 
Hoje, pensar nessa proposta seria semelhante a legitimar o regime institucionalizado de apartheid, com um estado dividido em bantustões, sem qualquer autonomia, em menos de 20% do território histórico da Palestina. Se essa “solução” hoje está enterrada, como reconhecem especialistas no tema, desde sempre é injusta, por não contemplar a totalidade do povo palestino, mas somente os que residem na Cisjordânia e Gaza – a maioria não vive ali, mas fora de suas terras, e há ainda 1,5 milhão no que é hoje Israel, considerados cidadãos de segunda classe.
Negociações e Oslo
Defendidas e impulsionadas pela “esquerda” sionista, as inúmeras negociações fracassaram não à toa: em nenhuma, a pretensão era pôr fim à colonização de terras e assegurar justiça aos palestinos. Como escreve Waldo Mermelstein em seu artigo intitulado “Turnê de Jean Wyllys por Israel foi um desastre para a causa palestina”, a oferta generosa denominada Iniciativa de Genebra, de 2005, era de pouco mais do que “as já reduzidas propostas de Clinton e Ehud Barak em 2001. Retorno simbólico de poucos milhares de refugiados, manutenção das colônias com a permuta de territórios entre essas e as regiões em que os palestinos são majoritários nas fronteiras de 1948.”
 
Os acordos de Oslo firmados em 1993, mediante a rendição da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) a Israel, aprofundaram o apartheid e a ocupação. Segundo a jornalista Naomi Klein denuncia em seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre”, entre aquele ano e 2000, o número de colonos israelenses dobrou.
 
Como demonstra ela, Oslo foi um ponto de virada numa política que sempre teve na sua base a limpeza étnica dos palestinos. De 1948 até então, havia certa interdependência econômica, a qual foi interrompida. “Todos os dias, cerca de 150 mil palestinos deixavam suas casas em Gaza e na Cisjordânia para limpar as ruas e construir as estradas em Israel, ao mesmo tempo em que agricultores e comerciantes enchiam caminhões com produtos para vender em Israel e em outras partes do território”, aponta Klein na obra. Após os acordos de 1993, o estado judeu se fechou a essa mão de obra, que desafiava o projeto sionista de exclusão dessa população. Simultaneamente, Israel passou a se apresentar, nas palavras da jornalista, “como uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”. Em seu livro, a autora afirma que, ao final de 2006, ano da invasão de Israel ao Líbano, a economia do estado sionista, baseada fortemente na exportação militar, expandiu-se vertiginosamente (8%), ao mesmo tempo em que se acentuou a desigualdade dentro da própria sociedade israelense e as taxas de pobreza nos territórios palestinos alcançaram índices alarmantes (70%).
 
Apartheid e a justeza do BDS
 
Diante de uma economia a solidificar o regime de apartheid, o contraponto veio sob a forma do chamado da sociedade civil palestina por BDS em 2005. Suas demandas são: o fim imediato da ocupação militar e colonização de terras árabes e a derrubada do muro de segregação, que vem sendo construído na Cisjordânia desde 2002 e divide terras, famílias e impede a livre circulação; a garantia de igualdade de direitos civis a todos os habitantes do território histórico da Palestina, independentemente de religião ou etnia; e o respeito ao direito de retorno dos refugiados palestinos às suas terras e propriedades.
 
Em diversas partes do globo a campanha de BDS tem se intensificado. Na Europa, governos como o da Noruega desinvestiram em contratos com empresas israelenses. Cidadãos comuns recusam-se a comprar produtos oriundos da potência ocupante, sindicatos e intelectuais têm se engajado nessa luta, bem como universidades têm cancelado convênios de cooperação com instituições que mantém e legitimam o regime de segregação. Netanyahu estimou a perda de bilhões de dólares com o BDS – e o Parlamento israelense aprovou uma lei que proíbe os residentes em Israel de endossá-lo e criminaliza o boicote. A eficácia da campanha tem levado sionistas a desqualificarem-na e considerá-la uma ameaça. A “esquerda” segue nessa direção. Amplamente utilizados por Jean Wyllys, argumentos como o de que o BDS visaria indivíduos e impediria o possível “diálogo” são uma forma de enfraquecer a principal ação de solidariedade internacional ao povo palestino.
 
O boicote acadêmico e cultural é outra linha de frente nessa luta. Entre seus adeptos estão a própria Naomi Klein e o cantor Roger Waters. Conforme escreve o ativista Omar Barghouti em “BDS – Boycott, divestment, sanctions, the global struggle for palestinian rights”, nesse sentido, o chamado palestino reivindica: cessar qualquer forma de cooperação acadêmica e cultural, colaboração ou projetos com instituições israelenses; suspender todas as formas de fundos e subsídios a essas e ‘desinvestir’ nelas; trabalhar para condenar as políticas de Israel e pressionar pela adoção de resoluções nesse sentido; apoiar instituições acadêmicas e culturais palestinas sem contrapartida em relação ao estado sionista.
 
Como afirmou Indra Habash em artigo de sua autoria sobre o tema, as instituições israelenses têm funcionado “como instrumento facilitador e normalizador da situação de ilegalidade das colônias israelenses, da construção do muro de separação e dos crimes cometidos contra os palestinos”. Além de se dar em uma das universidades que não foge à regra  e ainda tem parte de seu campus construído em território ocupado – como aponta carta da Frente em Defesa do Povo Palestino a Jean Wyllys (leia em http://goo.gl/ER08Uw) –, a conferência e a viagem de Jean Wyllys foram um exemplo dessa “normalização”, a partir do uso de causas democráticas justas para manter o projeto colonial.
 
De encontro a isso, a campanha por BDS a Israel é tarefa urgente e precisa ser elevada ao topo da lista da solidariedade internacional pela Palestina. À frente de seu tempo, diferentemente de Jean Wyllys, o educador Paulo Freire recusou convite para participar de conferência em universidade israelense sobre “diálogo”, por entender que, diante da ocupação, parte dos interlocutores não seria ouvida. A propostas de “diálogo” que ousem a paz dos cemitérios, essa é lição a ser aprendida.
Referências
BARGHOUTI, Omar. BDS – Boycott, divestment, sanctions, the global struggle for palestinian rights. Chicago IL, EUA. Haymarket Books, 2011.
HABASH, Indra, Apud MISLEH, S. Disponível em file:///C:/Users/Soraya/Downloads/Al%20Thawra%20marco%202012.pdf.Acesso em 13/1/2016.
HASSAN, Y. Budour. The sham solidarity of Israel’s Zionist left. Disponível em 
HONIG-PARNASS, Tikva. Zionist Left Support for Bloody Assaults on Gaza Signifies Its Erasure from Israel’s Political Map. Disponível em http://www.palestinechronicle.com/zionist-left-support-for-bloody-assaults-on-gaza-signifies-its-erasure-from-israels-political-map/. Acesso em 13/1/2016.
IJAN – International Jewish Anti-Zionist Network. Debunking the Myth of the Zionist Left. Disponível http://www.ijan.org/uncategorized/jadaliyya-debunking-the-myth-of-the-zionist-left/. Acesso em 13/1/2016.
IJAN & Labor for Palestine (US). Briefing: Labor Zionism and the Histadrut. Disponível em https://bdsmovement.net/files/2011/02/IJAN-LFP-Histadrut-briefing-illustrated.pdf. Acesso em 13/1/2016.
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque – A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2008.
MERMELSTEIN, Waldo. Turnê de Jean Wyllys por Israel foi um desastre para a causa palestina. Disponível em http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/42902/turne+de+jean+wyllys+por+israel+foi+um+desastre+para+a+causa+palestina.shtml. Acesso em 13/1/2016.
PAPPE, Ilan. História da Palestina moderna – uma terra, dois povos. Tradução: Ana Saldanha. Lisboa, Portugal. Editorial Caminho, 2004.
FONTE: http://carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/5838-contra-a-solidariedade-que-precisamos-jean-wyllys-e-a-esquerda-sionista

Liberdade de expressão, pero no mucho

A recente onda de defesa da liberdade de expressão por governantes acostumados a pisoteá-la sempre que confrontados por cobranças e críticas é uma das muitas hipocrisias óbvias que se seguiram ao massacre realizado por dois extremistas islâmicos na revista parisiense Charlie Hebdo. Na gigantesca manifestação que ocorreu em Paris neste domingo passado, uma das muitas figuras estranhas aos gritos de liberdade de expressão foi o primeiro ministre israelense Benjamin Netanyahu. É que liberdade de expressão não é realmente o forte  de  Netanyahu. 

Agora, não mais do que 24 horas depois de marchar em Paris, Benjamin Netanyahu está no centro de uma controvérsia por causa de uma charge (essas charges sempre polêmicas) publicada pelo jornal britânico “Sunday Times) que aparece logo abaixo. É que como pode se ver na charge produzida pelo chargista Gerald Scarfe, Netanyahu aparece construindo um muro com o sangue e corpos de palestinos, com uma frase provocativa onde é dito “a colocação do cimento da paz vai continuar?”.

TIMES-CARTOON

Numa demonstração inequívoca que liberdade de expressão só é boa nos olhos dos outros, a charge já provocou reações iradas do embaixador de Israel no Reino Unido, e do líder do congresso israelense que consideraram a charge anti-semítica.  De quebra, também o ex-primeiro ministro britânico Tony Blair se juntou ao muro de lamentações em torno de uma charge que, convenhamos, não tem nenhum caráter anti-semita, como comentou o correspondente do jornal israelense Haaretz, Anshel Pfeffer, ao afirmar que ” a charge não foi anti-semita por qualquer padrão, já que a mesma não foi dirigida aos judeus, não mostra símbolos judaicos, e não usa imagens do Holocausto.”

Mas, como se depreende desta polêmica, liberdade de expressão só é boa para os outros. Mais detalhes desta polêmica podem ser encontrados (Aqui!).

 

Gaza: Os Meninos Sem Rosto

Por Antonio Ateu

 Um corpo pequeno pode-se mostrar, mas a sua cara – a própria imagem da sua alma, sobretudo se não tem as feridas que causaram a morte do corpo – deve ser cruelmente esborratada por um borrão, e assim matamos o menino uma segunda vez. Por Robert Fisk.

A Al Jazeera mostrou a um pai palestiniano em prantos levando o seu bebé recém morto para um cemitério de Gaza. A maioria dos canais de televisão do Reino Unido destruíram o seu rosto com uma mancha cinzenta.

A Al Jazeera mostrou um pai palestiniano em prantos levando o seu bebé recém morto para um cemitério de Gaza. A maioria dos canais de televisão do Reino Unido destruíram o seu rosto com uma mancha cinzenta.

Morrer é uma coisa, que o convertam num borrão, é outra coisa. O borrão é a estranha “nuvem” mística que os produtores pusilânimes de televisão põem sobre a imagem de um rosto humano morto. A preocupação deles não é que os israelitas se queixem de que o rosto de um palestiniano morto demonstra a brutalidade israelita. Nem que o rosto de um israelita morto converterá em besta o palestiniano que o matou. Não. Estão preocupados com o Gabinete de Comunicações [do governo britânico]. Estão preocupados com as regras. Estão preocupados com o bom gosto – algo que estes tipos da TV conhecem bem –, porque têm medo de que alguém proteste se vir nas notícias um verdadeiro humano morto.

Em primeiro lugar, vamos deixar de lado todas as desculpas habituais. Sim, aceito que há uma pornografia do mórbido. Chega uma altura – apesar de, que eu saiba, isto nunca ter sido demonstrado –, em que a repetida imagem de talho humano pode levar outros a cometer atos de grande crueldade. E chega um ponto em que filmar um cadáver terrivelmente mutilado mostra – vamos usar a palavra, só uma vez – uma falta de respeito pelos mortos. Do mesmo modo que quando fechamos a tampa de um caixão, chega um ponto em que devemos baixar a câmara.

Mas não acho que seja por isso que se esborratam os rostos dos mortos. Acho que uma cultura rasteira e cobarde de evitar a morte na televisão está a tomar conta dos jovens insípidos que decidem o que devemos e não devemos ver da guerra, uma prática que tem contornos políticos muito graves.

Porque estamos agora a chegar a um ponto em que os meninos mortos de Gaza – esqueçamos as mulheres e os homens, por um momento – não têm rostos. Um corpo pequeno pode-se mostrar, mas a sua cara – a própria imagem da sua alma, sobretudo se não tem as feridas que causaram a morte do corpo – deve ser cruelmente esborratada por uma bolha científica, e assim matamos o menino uma segunda vez. Permitam-me que explique.

Quando estão vivos, os meninos podem ser filmados. Podem-se mostrar na televisão. Se estão feridos – desde que as lesões não sejam demasiado terríveis – permitem-nos ver o seu sofrimento. Nós como nações, não nos importamos muito, evidentemente. Daí a nossa recusa, por exemplo, de intervir no banho de sangue de Gaza. Podemos sentir piedade por eles – podemos chorar por eles – mas não os respeitamos. Se o fizéssemos, estaríamos indignados com as suas mortes. Mas quando estiverem mortos, devemos mostrar-lhes um respeito que nunca demonstrámos quando estavam vivos. Deve-se manter a privacidade do seu assassinato, protegendo os seus rostos.

Na semana passada, a Al Jazeera mostrou um pai palestiniano em prantos levando o seu bebé recém morto para um cemitério de Gaza. Tinha o cabelo negro e encaracolado e a cara de uma menina gentil, morta como se estivesse a dormir, a inocência feita carne, um anjo que – todos nós – tínhamos assassinado. Mas a maioria dos canais de televisão do Reino Unido – e a BBC ganhou experiência nesta censura – destruíram o seu rosto com uma mancha cinzenta. Os nossos professores de televisão permitiram-nos ver o seu cabelo encaracolado negro. Mas abaixo do cabelo estava esse asqueroso borrão. E à medida que a menina era transportada, o borrão movia-se com a sua cara. Era um insulto ao pai e à menina.

Não a tinha levado ele nos seus braços – em público, até o cemitério – para nos mostrar o grau da sua perda? Acaso não queria que víssemos a cara do anjo que acabava de morrer? É claro que queria. Mas os poltrões da televisão britânica – cobardes, com medo dos seus próprios chefes – decidiram que não se deve permitir a este pai mostrar a magnitude da sua perda. Tiveram que desfigurar a sua filha com essa mancha repugnante. Converteram uma menina numa boneca sem rosto.

Isto não tem nada a ver com o pedido oh-tão-moral do Gabinete de Comunicações de que o público nunca veja o “ponto da morte” – apesar de terem mostrado uma palestiniana de Gaza a morrer na sala de operações num documentário de televisão de 1992 e constantemente exibirem imagens de jornalistas de televisão em Bagdade a ser alvo de disparos mortais a partir de um helicóptero dos Estados Unidos. E não tem nada a ver com o “bom gosto”, seja o que for. Pessoalmente, acho que a visão das armas israelitas ou dos rockets do Hamas é de um mau gosto repugnante – são, no fim das contas, os dealers da morte, não é assim? –, mas não, a televisão absorve estas cenas terríveis. Devemos vê-las. Não há problema. As armas são boas. Os corpos são maus. Oh, que guerra encantadora.

Sei que muitos dos meus colegas de televisão estão furiosos por causa desta censura da morte. “Ridículo, absurdo e cada vez pior”, foi como o meu velho parceiro Alex Thomson, do Canal 4, reagiu quando lhe pedi para falar deste caso de autocensura da semana passada. Recordou como os telespectadores britânicos puderam ver o pessoal médico a recolher partes de corpos da estação de autocarros de Oxford Street em Belfast na Sexta-feira Sangrenta da Irlanda do Norte. Isto, é claro, sublinhou a maldade do IRA.

E historicamente, não temos qualquer acanhamento a respeito de mostrar os mortos. Documentários ainda exibem as escavadoras do exército britânico carregadas de milhares de cadáveres de judeus nus em fossas comuns no campo de concentração de Belsen em 1945. Estes últimos seis meses emitimos pela televisão milhares de imagens de soldados mortos – desfigurados, mutilados, apodrecendo – em documentários de grande alcance da guerra de 1914-18. Há um limite de tempo para a morte, como há a respeito dos crimes de guerra?

Jornalista do The Independent da Grã-Bretanha. Especial para o Página/12.

Tradução para castelhano de Celita Doyhambéhère.

FONTE: http://jornalggn.com.br/blog/antonio-ateu/gaza-os-meninos-sem-rosto

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

Henry Siegman, importante liderança da comunidade judaica norte-americana, classifica ataque em Gaza como “massacre de inocentes”

Enquanto leio que uma manifestação de 2.000 pessoas ocorreu hoje no Rio de Janeiro para apoiar o massacre em curso em Gaza pelas mãos do estado de Israel, tivesse acesso a uma entrevista dada por Henry Siegman, que vem a ser um dos mais importantes líderes da comunidade judaica nos EUA onde ele classifica o ataque como um “massacre de inocentes”.

As reflexões que Siegman faz sobre a situação mostram que a crise política que deverá se abater sobre Israel não virá dos palestinos ou dos árabes, mas sim por uma profunda rejeição dos métodos e explicações deste massacre de dentro da própria comunidade judaica.

E se isso se confirmar, ai veremos a ordem política herdada da Segunda Guerra Mundial entrar em uma crise agônica.

Para quem quiser ler toda a entrevista de Henry Siegman, basta clicar Aqui!

Não em meu nome

Recuso-me a acumpliciar-me com esta agressão. O exército israelense não me representa, o governo ultranacionalista não me representa. Os assentados ilegalmente são meus inimigos. Eu, judeu brasileiro, digo: ACABEM COM A OCUPAÇÃO!!!

Por Marcelo Gruman

Na minha adolescência, tive a oportunidade de visitar Israel por duas vezes, ambas na primeira metade da década de 1990. Era estudante de uma escola judaica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As viagens foram organizadas por instituições sionistas, e tinham por intuito apresentar à juventude diaspórica a realidade daquele Estado formado após o holocausto judaico da Segunda Guerra Mundial, e para o qual todo e qualquer judeu tem o direito de “retornar” caso assim o deseje. Voltar à terra ancestral. Para as organizações sionistas, ainda que não disposto a deixar a diáspora, todo e qualquer judeu ao redor do mundo deve conhecer a “terra prometida”, prestar-lhe solidariedade material ou simbólica, assim como todo muçulmano deve fazer, pelo menos uma vez na vida, a peregrinação a Meca. Para muitos jovens judeus, a visita a Israel é um rito de passagem, assim como para outros o destino é a Disneylândia.

A equivalência de Israel e Disneylândia tem um motivo. A grande maioria dos jovens não religiosos e sem interesse por questões políticas realizam a viagem apenas para se divertir. O roteiro é basicamente o mesmo: visita ao Muro das Lamentações, com direito a fotos em posição hipócrita de reza (já viram ateu rezando?), ao Museu da Diáspora, ao Museu do Holocausto, às Colinas do Golan, ao Deserto do Neguev e a experiência de tomar um chá com os beduínos, ir ao Mar Morto e boiar na água sem fazer esforço por conta da altíssima concentração de sal, a “vivência” de alguns dias num dos kibutzim ainda existentes em Israel e uma semana num acampamento militar, onde se tem a oportunidade de atirar com uma arma de verdade. Além, é claro, da interação com jovens de outros países hospedados no mesmo local. Para variar, brasileiros e argentinos, esquecendo sua identidade étnica comum, atualizavam a rivalidade futebolística e travavam uma guerra particular pelas meninas. Neste quesito, os argentinos davam de goleada, e os brasileiros ficavam a ver navios.

Minha memória afetiva das duas viagens não é das mais significativas. Aparte terconhecido parentes por parte de mãe, a “terra prometida” me frustrou quando o assunto é a construção de minha identidade judaica. Achei os israelenses meio grosseiros (dizem que o “sabra”, o israelense “da gema”, é duro por natureza), a comida é medíocre (o melhor falafel que comi até hoje foi em Paris…), é tudo muito árido, a sociedade é militarizada, o serviço militar é compulsório, não existe “excesso de contingente”. A memória construída apenas sobre o sofrimento começava a me incomodar.

Nossos guias, jovens talvez dez anos mais velhos do que nós, andavam armados, o motorista do ônibus andava armado. Um dos nossos passeios foi em Hebron, cidade da Cisjordânia, em que a estrada era rodeada por telas para contenção das pedras atiradas pelos palestinos. Em momento algum os guias se referiram àquele território como “ocupado”, e hoje me envergonho de ter feito parte, ainda que por poucas horas, deste “finca pé” em território ilegalmente ocupado. Para piorar, na segunda viagem quebrei a perna jogando basquete e tive de engessá-la, o que, por outro lado, me liberou da experiência desagradável de ter de apertar o gatilho de uma arma, exatamente naquela semana íamos acampar com o exército israelense.

Sei lá, não me senti tocado por esta realidade, minha fantasia era outra. Não encontrei minhas raízes no solo desértico do Negev, tampouco na neve das colinas do Golan. Apesar disso, trouxe na bagagem uma bandeira de Israel, que coloquei no meu quarto. Muitas vezes meu pai, judeu ateu, não sionista, me perguntou o porquê daquela bandeira estar ali, e eu não sabia responder. Hoje eu sei por que ela NÃO DEVERIA estar ali, porque minha identidade judaica passa pela Europa, pelos vilarejos judaicos descritos nos contos de Scholem Aleichem, pelo humor judaico característico daquela parte do mundo, pela comida judaica daquela parte do mundo, pela música klezmer que os judeus criaram naquela parte do mundo, pelas estórias que meus avós judeus da Polônia contavam ao redor da mesa da sala nos incontáveis lanches nas tardes de domingo.

Sou um judeu da diáspora, com muito orgulho. Na verdade, questiono mesmo este conceito de “diáspora”. Como bem coloca o antropólogo norte-americano James Clifford, as culturas diaspóricas não necessitam de uma representação exclusiva e permanente de um “lar original”. Privilegia-se a multilocalidade dos laços sociais. Diz ele:

As conexões transnacionais que ligam as diásporas não precisam estar articuladas primariamente através de um lar ancestral real ou simbólico (…). Descentradas, as conexões laterais [transnacionais] podem ser tão importantes quanto aquelas formadas ao redor de uma teleologia da origem/retorno. E a história compartilhada de um deslocamento contínuo, do sofrimento, adaptação e resistência pode ser tão importante quanto a projeção de uma origem específica.

Há muita confusão quando se trata de definir o que é judaísmo, ou melhor, o que é a identidade judaica. A partir da criação do Estado de Israel, a identidade judaica em qualquer parte do mundo passou a associar-se, geográfica e simbolicamente, àquele território. A diversidade cultural interna ao judaísmo foi reduzida a um espaço físico que é possível percorrer em algumas horas. A submissão a um lugar físico é a subestimação da capacidade humana de produzir cultura; o mesmo ocorre, analogamente, aos que defendem a relação inexorável de negros fora do continente africano com este continente, como se a cultura passasse literalmente pelo sangue. O que, diga-se de passagem, só serve aos racialistas e, por tabela, racistas de plantão. Prefiro a lateralidade de que nos fala Clifford.

Ser judeu não é o mesmo que ser israelense, e nem todo israelense é judeu, a despeito da cidadania de segunda classe exercida por árabes-israelenses ou por judeus de pele negra discriminados por seus pares originários da Europa Central, de pele e olhos claros. Daí que o exercício da identidade judaica não implica, necessariamente, o exercício de defesa de toda e qualquer posição do Estado de Israel, seja em que campo for.

Muito desta falsa equivalência é culpa dos próprios judeus da “diáspora”, que se alinham imediatamente aos ditames das políticas interna e externa israelense, acríticos, crentes de que tudo que parta do Knesset (o parlamento israelense) é “bom para os judeus”, amém. Muitos judeus diaspóricos se interessam mais pelo que acontece no Oriente Médio do que no seu cotidiano. Veja-se, por exemplo, o número ínfimo de cartas de leitores judeus em jornais de grande circulação, como O Globo, quando o assunto tratado é a corrupção ou violência endêmica em nosso país, em comparação às indefectíveis cartas de leitores judeus em defesa das ações militaristas israelenses nos territórios ocupados. Seria o complexo de gueto falando mais alto? 

Não preciso de Israel para ser judeu e não acredito que a existência no presente e no futuro de nós, judeus, dependa da existência de um Estado judeu, argumento utilizado por muitos que defendem a defesa militar israelense por quaisquer meios, que justificam o fim. Não aceito a justificativa de que o holocausto judaico na Segunda Guerra Mundial é o exemplo claro de que apenas um lar nacional única e exclusivamente judaico seja capaz de proteger a etnia da extinção.

A dor vivida pelos judeus, na visão etnocêntrica, reproduzida nas gerações futuras através de narrativas e monumentos, é incomensurável e acima de qualquer dor que outro grupo étnico possa ter sofrido, e justifica qualquer ação que sirva para protegê-los de uma nova tragédia. Certa vez, ouvi de um sobrevivente de campo de concentração que não há comparação entre o genocídio judaico e os genocídios praticados atualmente nos países africanos, por exemplo, em Ruanda, onde tutsis e hutus se digladiaram sob as vistas grossas das ex-potências coloniais. Como este senhor ousa qualificar o sofrimento alheio? Será pelo número mágico? Seis milhões? O genial Woody Allen coloca bem a questão, num diálogo de Desconstruindo Harry (tradução livre):

– Você se importa com o Holocausto ou acha que ele não existiu?

– Não, só eu sei que perdemos seis milhões, mas o mais apavorante é saber que recordes são feitos para serem quebrados.

O holocausto judaico não é inexplicável, e não é explicável pela maldade latente dos alemães. Sem dúvida, o componente antissemita estava presente, mas, conforme demonstrado por diversos pensadores contemporâneos, dentre os quais insuspeitos judeus (seriam judeus antissemitas Hannah Arendt, Raul Hilberg e Zygmunt Bauman?), uma série de características do massacre está relacionada à Modernidade, à burocratização do Estado e à “industrialização da morte”, sofrida também por dirigentes políticos, doentes mentais, ciganos, eslavos, “subversivos” de um modo geral. Práticas sociais genocidas, conforme descritas pelo sociólogo argentino Daniel Feierstein (outro judeu antissemita?), estão presentes tanto na Segunda Guerra Mundial quanto durante o Processo de Reorganização Nacional imposto pela ditadura argentina a partir de 1976. Genocídio é genocídio, e ponto final.

A sacralização do genocídio judaico permite ações que vemos atualmente na televisão, o esmagamento da população palestina em Gaza, transformada em campo de concentração, isolada do resto do mundo. Destruição da infraestrutura, de milhares de casas, a morte de centenas de civis, famílias destroçadas, crianças torturadas em interrogatórios ilegais conforme descrito por advogados israelenses. Não, não são a exceção, não são o efeito colateral de uma guerra suja. São vítimas, sim, de práticas sociais genocidas, que visam, no final do processo, ao aniquilamento físico do grupo.

Recuso-me a acumpliciar-me com esta agressão. O exército israelense não me representa, o governo ultranacionalista não me representa. Os assentados ilegalmente são meus inimigos.

        Eu, judeu brasileiro, digo: ACABEM COM A OCUPAÇÃO!!!

(1) Marcelo Gruman é antropólogo.

Referências bibliográficas:

CLIFFORD, James. (1997). Diasporas, in Montserrat Guibernau and John Rex (Eds.) The Ethnicity Reader: Nationalism, Multiculturalism and Migration, Polity Press, Oxford.

Vídeo:

Tortura de crianças palestinas: https://www.youtube.com/watch?v=z5AkFlAeCHE

FONTE: http://www.brasildefato.com.br/node/29359