Comissão Arns vai ao Pará coletar informações e cobrar autoridades sobre a violência contra trabalhadores rurais e comunidades tradicionais

  • Delegação da entidade chega no sábado (15/04) a Marabá e passará por cinco municípios, onde fará entrevistas e audiências com vítimas, familiares e lideranças, além de cumprir agenda oficial com autoridades; região é conhecida por crimes emblemáticos como o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang e de uma família de ribeirinhos em São Felix do Xingu;
  • Na manhã do dia 17/04 (segunda-feira), os integrantes da Comissão Arns também participam de ato organizado pelo Acampamento Pedagógico da Juventude (MST), em Eldorado do Carajás, para lembrar dos 21 trabalhadores rurais assassinados por policiais militares em 1996.

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São Paulo, 14 de abril de 2023 – A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns estará no Pará, de sábado (15/04) até quinta-feira (20/04), com uma delegação para visitar territórios marcados pela violência no campo e pela negligência estatal, nos municípios de Marabá, Eldorado do Carajás, Anapu, Altamira e Belém. O objetivo é exigir respostas a uma série de crimes cometidos contra as comunidades locais e seus defensores, como o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, em 2005, e o extermínio de uma família de ribeirinhos em São Félix do Xingu, em 2022, casos que seguem sem resolução na Justiça.

Estarão presentes na delegação a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi e o ex-secretário da Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos Jr., todos membros da Comissão Arns. Integram o grupo o advogado e ex-secretário de assuntos jurídicos do Ministério da Justiça Luiz Armando Badin e a psicóloga Leana Naiman, membros associados da organização, e o advogado da Comissão Pastoral da Terra José Batista Afonso. Claudia Dadico, Ouvidora Agrária Nacional, e Ana Cláudia Pinho, promotora de Justiça do Ministério Público Estadual do Pará, também acompanharão as ações.

Na segunda-feira (17/04), a partir das 09h, os membros da Comissão Arns estarão na Curva do S, em Eldorado do Carajás, para acompanhar os eventos do Acampamento Pedagógico da Juventude Oziel Alves, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Anualmente, jovens ativistas acampam durante uma semana no local onde 21 trabalhadores rurais foram assassinados por policiais militares em 1996 e exigir resposta para o crime, que até hoje não foi completamente solucionado. Oziel Alves, que dá nome ao coletivo, era um dos camponeses assassinados na barbárie.

O roteiro da Comissão Arns também passará por assentamentos agrários e centros comunitários, onde serão realizadas entrevistas, reuniões e audiências com vítimas, familiares e lideranças, assim como autoridades locais. Ao final dessas visitas aos territórios, a Comissão realizará uma audiência em Belém com o governador do Pará, Helder Barbalho, e representantes da Secretaria de Segurança Pública e do Ministério Público Estadual, para discutir o andamento das investigações e medidas de proteção, além de fazer um alerta nacional para evitar a reincidência de crimes na região.

A programação da viagem da Comissão ao Pará foi realizada em conjunto com representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“As visitas terão muitos componentes, mas o primeiro – e o principal – é a solidariedade. Essa população desesperada vai receber ali pessoas da faixa dos 70 anos, como eu, para que possamos dizer: ‘vocês não estão sozinhos’. Nós não temos poder para resolver tudo, mas vamos nos empenhar, pois temos voz para falar com as autoridades. E vamos monitorar se essas violações estão sendo investigadas”, afirma Paulo Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos e membro da Comissão Arns.

Programação completa 

16/04/2013 (domingo)  Marabá Reunião com lideranças e trabalhadores rurais para discussão de casos de assassinato, despejo, garimpo ilegal e ameaça
17/04/2013 (segunda-feira)  Eldorado do Carajás Ato na Curva do S em memória aos mortos do massacre de Eldorado do Carajás, em 1996
Marabá Reunião com lideranças para discussão de casos na terra indígena Parakanã
18/04/2013 (terça-feira)  Anapu Roda de conversa com agricultores e visita ao assentamento Dorothy Stang (Lote 96)
19/04/2013 (quarta-feira)  Altamira Reunião na Defensoria Pública do Pará (DPE-PA) e encontro com lideranças
Belém  Reunião com representantes da sociedade civil
20/04/2013 (quinta-feira)  Belém  Audiências com autoridades do poder público – Governador do Estado, Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública

Histórico de mortes no Pará 

Nos últimos anos, o Pará se tornou o estado brasileiro com o maior número de mortes em conflitos agrários: foram cerca de 111 assassinatos entre 2019 e 2022, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O histórico de crimes na região, porém, remonta a mais de duas décadas atrás. Um exemplo emblemático é o massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, quando 155 policiais militares assassinaram 21 trabalhadores rurais que faziam uma marcha pacífica em direção a Belém. De todos os PMs, apenas dois foram condenados: Mário Pantoja e José Maria de Oliveira, mandantes do crime.

Um tempo depois, em 2005, a missionária norte-americana Dorothy Stang foi morta a tiros por ordem de fazendeiros locais em uma estrada de Anapu. Ela era integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e atuava na luta pela regularização das terras para famílias de trabalhadores rurais e trabalhava pelo fim das invasões garimpeiras e madeireiras. Trata-se de mais um caso que, 18 anos depois, permanece aberto: um dos comparsas do crime, Clodoaldo Carlos Batista, está foragido até hoje.

Outros dez trabalhadores rurais foram assassinados durante ação policial na Fazenda Santa Lúcia, na região sudoeste do Pará, em 2017. O caso ficou conhecido como a chacina de Pau D’Arco e se tornou um exemplo ilustrativo da gravidade da violência no campo no Brasil. Dezesseis pessoas foram indiciadas pelo massacre e devem passar por julgamento no tribunal do júri, ainda sem previsão.

Testemunha-chave do episódio, Fernando dos Santos Araújo foi morto em 2021 com um tiro na cabeça no acampamento Jane Júlia, na mesma região do crime original. O caso também segue sem respostas sobre quem foram os responsáveis pela morte de Araújo, que vinha sofrendo ameaças, segundo ele, de policiais envolvidos na chacina de 2017.

Em 2022, mais cinco assassinatos permaneceram impunes na região sul do Pará, dois de trabalhadores que fiscalizavam uma fazenda no município de Rio Maria e três de jovens que foram encontrados mortos em Novo Repartimento, na Terra Indígena Awaeté Parakanã.

Também no ano passado, a morte do ambientalista José Gomes, o Zé do Lago, sua esposa e sua enteada, em São Félix do Xingu, acendeu mais uma vez o alerta para a vulnerabilidade das comunidades ribeirinhas diante da atuação sistemática e violenta de grileiros na região. A família atuava com o manejo e preservação de tartarugas no Rio Xingu. Desde então, nenhum responsável pelo crime foi condenado. Com mais de 60 assassinatos no campo em 40 anos, segundo dados da CPT, o município ganhou uma infeliz reputação de impunidade e terra sem lei.

Sobre a Comissão Arns  

Criada em fevereiro de 2019, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns busca dar visibilidade e acolhimento institucional a graves violações da integridade física, da liberdade e da dignidade humana, especialmente as cometidas por agentes do Estado contra pessoas e populações discriminadas – como negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQIA+, mulheres, jovens, comunidades urbanas ou rurais em situação de extrema pobreza. A Comissão Arns trabalha em rede com outras organizações sociais, para detectar casos, dar suporte à denúncia pública dos mesmos, encaminhá-los aos órgãos do Judiciário e organismos internacionais, promover ações específicas junto à classe política e mobilizar a sociedade.

Em seu nome, a Comissão destaca a figura de Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), Arcebispo Emérito de São Paulo. Em 1972, Dom Paulo criou a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, porta aberta no acolhimento das vítimas da repressão política e policial no país. Ao homenageá-lo, a Comissão reconhece esse exemplo de resistência, resiliência e, sobretudo, de esperança para os brasileiros em tempos difíceis.

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Povo da Terra Indígena mais desmatada no Brasil se mobiliza contra invasores

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Foto: Arquivo Pessoal/Alexandre Muller

Por Alexandre Muller, especial para o Correio da Cidadania

Estamos na aldeia Apyterewa, aldeia mãe da Terra Indígena de mesmo nome, localizada na beira do rio Xingu, no sudoeste do Pará. Em um contexto de invasão de território, a assembleia anual do povo da etnia Parakanã da Terra Indígena Apyterewa, ocorreu entre os dias 27 e 29 de novembro. O evento, que foi realizado ora em português, ora em Parakanã, língua do tronco tupi-guarani, contou com a presença, além do povo Parakanã e suas lideranças, de representantes do Ministério Público Federal, de ONGs, órgãos públicos e da associação que os representa. Esse evento foi especialmente importante porque a TI Apyterewa bateu recorde de desmatamento e invasões em 2021 e o povo Parakanã espera um novo sopro de mobilização com a mudança de governo.

“A luta pela nossa terra livre é atual, mas é também milenar. Essa terra é nossa mãe, a partir dela tiramos nossa comida, fazemos nosso artesanato e tecemos nossas redes. Temos que ser prioridade do próximo governo porque somos povo de recente contato, o Lula deve isso à gente”, exclamou durante a assembleia Winatoa Parakanã, primeira mulher eleita presidente da associação Tato’a, que representa o povo e as comunidades Parakanãs da Terra Indígena (TI) Apyterewa.

Durante toda a assembleia, o presidente eleito, Lula, foi muito citado pelos participantes que demonstraram depositar uma grande expectativa sobre o seu mandato. Winatoa lembrou que Lula, que fez uma campanha muito clara em relação à defesa dos territórios indígenas e da proteção do meio ambiente, também se elegeu graças aos votos deles e que foi ele que em 2007 homologou a TI Apyterewa.

Além disso, foi lembrado por lideranças Parakanã que durante a COP27, Lula prometeu uma guerra “sem trégua” ao desmatamento, a criação do ministério dos Povos Originários e a desintrusão, ou seja, remoção e punição dos invasores das Terras Indígenas. Lula vai precisar muito do apoio dos povos indígenas para enfrentar os desafios que se avizinham já que eles são essenciais na luta pela floresta.
Representando menos de 5% da população mundial, os povos indígenas protegem 80% da biodiversidade global e, se depender do povo Parakanã, continuarão se mobilizando para proteger o seu território e a floresta Amazônica. Essa pauta é ainda mais importante num contexto de crise climática e de grande proximidade com ‘ponto de não retorno’, um estado de desequilíbrio irreversível, capaz de transformar a Amazônia em savana em apenas algumas décadas.

Para além da homologação, foi lembrado que Lula é duplamente responsável pela situação dos indígenas na Apyterewa porque foi ele que aprovou a construção de Belo Monte. O cacique Surara Parakanã explicou aos participantes que uma das condicionantes da construção da hidrelétrica era que seria feita a expulsão dos invasores da Terra Indígena. Mas ao invés disso, desde a construção da barragem, as invasões se multiplicaram e a TI Apyterewa, alvo do garimpo ilegal e de grilagem de terra, vem se destacando na lista das mais desmatadas no Brasil com um crescimento acelerado desde 2017 (INPE) e bateu recorde de desmatamento no país no ano de 2021 (Prodes). Além do desmatamento, relatórios do IBAMA atestam a presença de materiais usados para o garimpo como retroescavadeiras e outros maquinários pesados no interior da Terra Indígena.

É importante ressaltar que o desmatamento nesta TI é um problema crônico desde os anos 90, mas graças aos esforços institucionais para homologar a terra, e das políticas públicas aplicadas pelo Ministério do Meio Ambiente quando era chefiado por Marina Silva, o desmatamento caiu de forma contínua até atingir níveis praticamente nulos em 2015. A partir de 2016 o desmatamento retomou de forma vertiginosa por causa da falta de vontade política e da incapacidade das instituições responsáveis de aplicar o plano de desintrusão.

No decorrer do evento, lideranças Parakanã também cobraram das autoridades presentes que o plano de desintrusão concebido pelo MPF em 2016, durante o período de transição entre os governos de Dilma e Temer, saia finalmente do papel.

Em resposta, o procurador do MPF Rafael Martins da Silva, lamentou a demora na desintrusão: “Faltou articulação entre os órgãos. Às vezes a Funai não estava presente, às vezes o MPF não tomava a frente. Uma vez chegou-se a planejar toda a execução do plano, mas o exército desistiu da intervenção uma semana antes da operação. No fundo, tudo é uma questão de articulação, e ao que tudo indica o clima a partir de janeiro de 2023 vai ser muito mais favorável”.

Martins detalhou que antes de pensar no plano de desintrusão, o primeiro passo é o ‘congelamento’ das invasões. Ou seja, impedir novas invasões e responsabilizar com multa e prisão os novos invasores. Uma vez as invasões em patamares controlados, será possível, segundo ele, articular com todos os órgãos responsáveis a retirada dos milhares de invasores da TI.

O advogado da associação Tato’a, lembrou que as ações do governo em Terras Indígenas são sempre uma questão de vontade política. “Muitas vezes, nos últimos 6 anos, desde a chegada de Temer e depois Bolsonaro, as coisas não se organizavam porque o governo não queria. É uma questão de vontade política”. Muito aplaudido depois de sua fala, ele lembrou que, apesar da eleição do novo governo, vai ser preciso manter a mobilização. “Não é porque o Lula ganhou que vamos relaxar, pelo contrário, as coisas só acontecem se mantivermos a pressão”. O cacique Xogoa Parakanã concordou, mas também lamentou o fraco papel desempenhado pela FUNAI nos últimos anos. “A FUNAI deveria ser nossa instituição, mas ela está acabada. É muito triste ver a nossa terra desmatada e invadida sem que eles cumpram seu papel”. Vale ressaltar que a FUNAI não mandou para o evento nenhum de seus principais quadros.

Mas a retirada dos invasores é apenas o começo de longo processo como lembrou Fernando Bittencourt, da Nature Conservancy Brasil (TNC). Ele recomendou às lideranças indígenas presentes que, após a desintrusão, seja feito um plano de gestão para recuperar as áreas degradadas no território e destinar as zonas da TI para evitar que sejam invadidas novamente.

Leonardo de Moura, assessor técnico do Instituto Socioambiental (ISA), alertou às lideranças sobre o “discurso nefasto” espalhado pelos invasores, segundo o qual é melhor resolver as invasões de “maneira amigável, sem alertar o IBAMA e outros órgãos públicos”. “Eu sei que nos últimos anos o IBAMA deixou a desejar, mas temos também que reconhecer quando fazem um bom trabalho, como foi feito na TI Cachoeira Seca por exemplo”, se referindo a apreensão de mais de 1 mil bovinos e aplicação de multa de mais de R$ 2 milhões.

Depois das falas dos convidados, as lideranças indígenas se mostraram gratas pela presença dos convidados, mas reforçaram que estão em luta pelos seus territórios há mais de 500 anos e manifestaram vontade de ir até Brasília pressionar o governo para que aplique as medidas prometidas com a construção de Belo Monte.

Depois de dois dias de intensas trocas, a assembleia encerrou-se com uma apresentação de Johane – MC Parakanã, que fez rap em ambas as línguas na Tekatawa, a casa do guerreiro, onde os Parakanãs se reúnem para tomar decisões, realizar cerimônias e rituais – localizada na aldeia, na margem do rio Xingu. No dia seguinte, indígenas e convidados se uniram na cerimônia Metymonawa – dança da pena de gavião – para comemorar o encontro e a esperança de que dias melhores estão por vir.

Alexandre Muller é doutorando em antropologia na Universidade Federal do Pará, em Altamira e esteve na Assembleia dos Paracanãs na Terra Indígena Apiretewa.


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Este texto foi originalmente publicado pelo Correio da Cidadania [Aqui!].

Projeto refloresta manguezais amazônicos com impacto positivo para 42 mil pessoas

Junto ao potencial do mercado de carbono, as ações concluem mapeamento para a extração sustentável de madeira e caranguejo-uçá como fonte de renda das comunidades

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Para além da floresta tropical que está no centro das atenções pela importância no combate às mudanças climáticas globais, a Amazônia guarda em sua faixa costeira os maiores manguezais do planeta, com cerca de 8 mil km de extensão. De expressivo potencial como sumidouro de carbono e fonte de sustento por meio da pesca, o ecossistema é alvo de ações socioambientais inéditas que, após dois anos, chegam a novos dados científicos em conjunto com comunidades da região. Os resultados dão base ao uso sustentável e à conservação da biodiversidade, com a restauração de 14 hectares de áreas degradadas e atividades sociais e educativas em benefício de 42 mil pessoas em reservas extrativistas e áreas do entorno, no Pará.

“Devido a essa importante contribuição técnico-científica, hoje entendemos muito melhor a biodiversidade desse ecossistema para expandir o modelo de reflorestamento em outras áreas da região”, afirma Marcus Fernandes pesquisador do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), que apoia o Projeto Mangues da Amazônia. A iniciativa socioambiental, realizada pelo Instituto Peabiru com patrocínio da Petrobras, desenvolveu metodologia unindo ciência e conhecimento tradicional das comunidades em cinco municípios do território paraense banhado pelo Atlântico: Bragança, Augusto Correa, Tracuateua, Primavera e Quatipuru (PA).

Segundo Fernandes, em dois anos de atividades, a democratização da ciência com o modelo participativo de trabalho foi o diferencial do projeto, correalizado pela Associação Sarambuí, voltada a aproximar a academia da sociedade e suas demandas. “Juntamos peças essenciais do quebra-cabeça para o conhecimento sobre os manguezais da região, com a perspectiva de seguir adiante com novas contribuições, de forma ainda mais madura, em momento positivo de visibilidade para a Amazônia”, ressalta o pesquisador.

Mapeamento dos recursos

No campo ambiental, as ações resultaram na apresentação de uma proposta para futuros planos de manejo do caranguejo-uçá e do corte de madeira de mangue para fazer cerca e currais de pesca – prática comum nas três reservas extrativistas trabalhadas pelo projeto. A iniciativa tem como base o mapeamento realizado em conjunto com as comunidades locais para identificar onde ocorre a extração do recurso e com qual frequência e intensidade. Com base nas recomendações do trabalho, visando a retirada sustentável, os extrativistas estabelecerão de forma comunitária as regras de uso, para a posterior implantação do plano de manejo, por meio dos chamados “acordos de pesca”.

Uma comunidade de Tracuateua (PA) está sendo preparada como primeira experiência-piloto para início desse processo, na extração do caranguejo-uçá – objeto de uma tese de doutorado da UFPA, entre outras pesquisas acadêmicas de apoio ao projeto. “Com o mapeamento, colocamos o tema do manejo na agenda do debate, de modo a conciliar renda e conservação da biodiversidade, respeitando o ciclo de reprodução e desenvolvimento das espécies ao longo do ano”, explica Fernandes.

Em paralelo, as ações de reflorestamento do projeto Mangues da Amazônia contribuem para o retorno de caranguejos às áreas recuperadas após impactos, como os da extração de madeira. Além do aspecto ecológico, a iniciativa de repor árvores – no total, 155 mil mudas, em dois anos – funciona como fio condutor de atividades educativas planejadas para sensibilizar as comunidades sobre a importância da conservação.

Junto a esses legados, as ações nesses dois anos possibilitaram obter novos dados científicos sobre a biodiversidade dos manguezais amazônicos, necessários ao monitoramento da sua regeneração. O projeto desenvolveu protocolos e métodos de plantio de árvores adequados às características biológicas e realidade da região, o que abre novas perspectivas à restauração de áreas degradadas.

Inovações de olho no carbono

Foi possível aplicar técnicas inovadoras de produção de mudas e replantio, com descobertas, por exemplo, sobre a melhor produtividade dos viveiros quando banhados mais intensamente pelo fluxo das marés. Além dos métodos tradicionais, o trabalho demonstrou a eficácia do transplante de mudas da floresta para lugares onde têm maior probabilidade de vingar e crescer de forma sadia até o tamanho ideal para retorno ao ambiente natural.

“A partir desses aprendizados, o plano é expandir o reflorestamento para mais duas reservas extrativistas, nos municípios de Viseu (PA) e Corutapera (MA), já no estado vizinho”, revela Fernandes, na expectativa de futuros avanços no mercado de carbono. A vegetação restaurada em dois anos pelo Mangues da Amazônia (14 hectares) representa a fixação de cerca de 440 toneladas de carbono por ano, quando adulta.

A flora do manguezal é relevante para fixar o solo lamoso, como uma “bomba” de carbono, impedindo a erosão e estabilizando a linha de costa, além manter o equilíbrio ecológico e a ciclagem de nutrientes que garantem os recursos pesqueiros. Na Amazônia, o expressivo volume de matéria orgânica carreado pelos rios até o litoral confere características especiais aos manguezais da região, maiores e mais exuberantes em comparação a esse ecossistema no restante do País.

“Sabe-se que os ecossistemas de mangue da costa amazônica brasileira estocam mais do que o dobro de carbono em relação às florestas de terra firme na mesma região”, afirma Fernandes. Segundo ele, um dos legados do projeto socioambiental na área foi a geração de dados para análise do potencial de estocagem e de emissão de gases de efeito estufa, na perspectiva do mercado de créditos de carbono, com renda adicional para as comunidades extrativistas do mangue.

O poder da educação e engajamento social

No aspecto social, chave para o uso sustentável da biodiversidade, as atividades abrangeram desde a qualificação profissional de jovens até o debate sobre questões de gênero e garantia de direitos. Além de mutirões de limpeza das praias e manguezais contra a poluição por resíduos, as atividades socioeducativas envolveram 1,2 mil estudantes de diferentes faixas etárias: o Clube do Recreio (crianças de três a seis anos), o Clube de Ciências (sete a 12 anos), o Protetores do Mangue (13 a 19 anos) e o AlfaMangue – iniciativa voltada à alfabetização de crianças como resposta às lacunas deixadas pela pandemia de covid-19.

“É preciso continuidade no longo prazo para consolidar os resultados iniciais e chegar a mais pessoas”, aponta John Gomes, gestor do Mangues da Amazônia. A articulação de parcerias locais junto aos setores público e privado deu eco aos desafios socioambientais, conferindo visibilidade aos manguezais e aproximando as populações locais de serviços básicos, como água e assistência à saúde. “Quem vive nas cidades passou a valorizar e olhar diferente para o mangue, não como lama, mas lugar rico em nutrientes, biodiversidade e carbono”, conclui Gomes.

Sobre o Projeto Mangues da Amazônia

O Mangues da Amazônia é um projeto socioambiental com foco na recuperação e conservação de manguezais em Reservas Extrativistas Marinhas do estado do Pará. É realizado pelo Instituto Peabiru e pela Associação Sarambuí, em parceria com o Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), e conta com patrocínio da Petrobras, através do Programa Petrobras Socioambiental. Com início em 2021 e duração de dois anos, o projeto atua na recuperação de espécies-chave dos manguezais através da elaboração de estratégias de manejo da madeira e do caranguejo-uçá com a participação das comunidades.

Sobre a Associação Sarambuí

A Associação Sarambuí é uma Organização da Sociedade Civil (OSC) com sede em Bragança – Pará, constituída em 2015, cuja missão é promover a geração de conhecimento de maneira participativa, em prol da conservação e sustentabilidade dos recursos estuarino-costeiros. Nossas ações são direcionadas ao ecossistema manguezal, ao longo da costa amazônica brasileira, em particular no litoral do Estado do Pará. É uma das organizações realizadoras do projeto Mangues da Amazônia.

Sobre o Instituto Peabiru

O Instituto Peabiru é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) brasileira, fundada em 1998, que tem por missão facilitar processos de fortalecimento da organização social e da valorização da sociobiodiversidade. Com sede em Belém, atua nacionalmente, especialmente no bioma Amazônia, com ênfase no Marajó, Nordeste Paraense e na Região Metropolitana de Belém (PA). É uma das organizações realizadoras do projeto Mangues da Amazônia.

Setembro em chamas: focos de calor são 147% maior que o ano passado

Segundo dados do Inpe, o total de queimadas na Amazônia no mês é o maior dos últimos 12 anos

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Sobrevoo em Porto Velho, na região da Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento – a maior em 2022 – Foto: Nilmar Lage / Greenpeace Brasil

São Paulo, 30 de setembro Dados recém divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nesta sexta-feira (30)¹, a dois dias das eleições, mostram que no mês de setembro houve um aumento enorme de queimadas na Amazônia, não apenas em relação ao mesmo período no ano passado, mas sendo o maior número desde 2010. Enquanto no mês de setembro de 2021 foram registrados 16.742 focos de calor no bioma, neste ano houve 41.282. O Estado Pará é o recordista de queimadas, com 12.696 focos de calor registrados, representando 30,8% do total, seguido por Amazonas (8.659) que apesar de segundo lugar no total de focos teve o mês com o recorde de queimadas desde o início do monitoramento em 1988, Mato Grosso (6.950), Acre (6.693) e Rondônia (5.354).

Esse aumento já era esperado uma vez que a primeira semana de setembro de 2022 concentrou mais focos de calor do que setembro de 2021 inteiro: em apenas nove meses, foram 75.592 focos de incêndio contra os 75.090 registrados ao longo de 2021.

Para Rômulo Batista, porta-voz de Amazônia do Greenpeace Brasil, essa escalada que tem destruído cada vez mais o bioma e a sua rica biodiversidade precisa ter fim: “Estamos a dois dias das eleições que serão decisivas para o futuro do Brasil e todo o planeta. É necessário que a população brasileira escolha candidaturas que tenham comprometimento com a preservação do meio ambiente, com o combate ao desmatamento e às queimadas, além de proteger os povos da floresta. Não podemos mais compactuar com essa política de destruição que acontece na Amazônia, que é fruto da falta de uma política ambiental nos últimos anos e de um congresso que cria projetos de lei como a legalização da grilagem de terras, abertura das terras indígenas para atividades destrutivas e acaba com o licenciamento ambiental. É o momento de votar consciente e pensando na Amazônia”.

¹ Dados coletados às 18:30.

Tv Cultura exibe o documentário inédito Pará – Terra em conflito

Produzido em parceria com a Amazon Rainforest Journalism Fund e o Pulitzer Center,  vai ao ar neste domingo (25/9)

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Neste domingo (25/9), a TV Cultura exibe o documentário inédito Pará – Terra em Conflito, às 16h30. A atração produzida pelo jornalismo da emissora tem parceria com a Amazon Rainforest Journalism Fund e o Pulitzer Center, e documenta a violência que se espalha em uma região dominada pela grilagem e desmatamento.

A reportagem foi realizada nas cidades de Anapu e Altamira, no Pará, e clareia o impacto dos diferentes conflitos que compõem a história da região. Considerado o maior município do Brasil, a cidade de Altamira cresceu rodeada por árvores e florestas. Agora, corre perigo com atividades intensas de desmatamento que transformam sua mata em pasto.

O documentário se debruça nos múltiplos acontecimentos que continuam a marcar essas terras. Os cidadãos, tanto de Anapu, quanto de Altamira vivem em meio ao crescimento da violência, incêndios e demolições. Em uma terra que parece ser de ninguém, vale tudo para intimidar os povos que tentam proteger as florestas.

O que teve início com a construção da Transamazônica – patrocinada pela ditadura militar na década de 70 -, hoje, toma forma na devastação que alimenta uma indústria de exploração ilegal de madeira florestal. Neste contexto, e sem o apoio estatal adequado, os indígenas tentam resistir até o fim.

Pará – Terra em Conflito conta com a produção e reportagem da jornalista Laís Duarte, imagens de Adriano Tavares e Erinaldo Clemente, produção de Ricardo Ferreira, pós-produção de Leandro Silva, edição de texto por Jorge Valente e direção de Simão Scholz.

 

Liderança denuncia conflitos e invasões na Terra Indígena Parakanã no Pará

Relato dos Fatos e Nota de apoio ao Povo Awaeté-Parakanã

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Nesta segunda-feira (25/04), um coletivo de estudantes Awaeté e docentes, dos Cursos de Agroecologia e Magistério Indígena do Campus Rural de Marabá – IFPA, foram surpreendidos por volta das 13:15h com a intrusão abrupta de um grupo de não indígena (Tôria) com gritos, ameaças e a obstrução da entrada do Posto Taxakoakwera, na Terra Indígena Parakanã, às margens da BR-230 (Transamazônica). Estes se utilizando da coação e do preconceito a indígenas confessaram e afirmaram que três caçadores invadiram a T.I no dia anterior (26) para caçar e estariam desaparecidos, sendo isso responsabilidade de todos os Awaeté. Alguns Awaeté que presenciaram a situação descrevem que alguns dos intrusos que ali estavam portavam armas. Após cerca de uma hora de tensão, com a voluntária inação e parcimônia dos coordenadores do Programa Parakanã, os não indígenas desobstruíram a entrada do Posto Taxakoakwera e se dispersaram temporariamente. Paralelo a isso o IFPA comunicou a FUNAI sobre os acontecimentos, que por sua vez acionou a Polícia Federal e o MPF. Durante a tarde chegaram a Taxakoakwera algumas lideranças Awaeté, seguida de uma nova intrusão dos não indígenas.

Neste instante, uma liderança conduz uma interlocução com os não indígenas e os convida a aguardar fora do Posto, o que foi, com a mediação de uma das mães de um dos desaparecidos, de pronto aceito. Duas mães e um pai dos caçadores solicitaram uma reunião com os caciques o que foi prontamente atendido, e num gesto de solidariedade aos familiares foram convidados a entrar e a explicar o acontecido com calma aos Awaeté, que até então pouco compreendiam da situação de fato. As lideranças e estudantes Awaeté, ouviram a suplica dos pais dos caçares para que ajudassem nas buscas, bem como o reconhecimento que a caçada em terras indígenas é um ato ilícito. Por sua vez, as lideranças destacaram que a T.I Parakanã é o território soberano dos Awaeté e não é espaço de realização das caçadas esportivas dos toria.

A reunião fluía com a escuta mútua e promessa dos Awaéte, mesmo tendo a T.I invadida, que iriam ajudar nas buscas, quando um sargento da polícia militar de Novo Repartimento, sem nenhuma solicitação prévia, se introduziu na reunião. Tal sargento, parou a reunião, afirmando que teria recebido informações de um desaparecimento, seguido de “cárcere privado”. Os estudantes, lideranças e professores ficaram perplexo com fala do sargento. Um professor pediu a palavra e se dirigiu ao policial, explicando a situação por este vislumbrada até aquele momento: “O senhor ou seu informante não estariam equivocados? Aqui até o momento não houve ‘cárcere privado’. Até então o que temos é uma situação de desaparecimento”. Esclarecido por todas as partes, entre elas as mães e o pai presente, o policial se desculpou, disse que foi mal informado e que alguém tinha acabado de fazer um boletim de ocorrência de “cárcere privado” na delegacia da polícia civil mais próxima em relação aos familiares ali presentes. Todos de bom senso que presenciavam a situações e suas fricções desde meio dia se perguntavam.

Por que tanta desinformação? O que justificaria a construção tão rápida de argumentos incondizentes com o ocorrido? Por que tamanho ódio aos indígenas? Por que denuncias de cárcere privado aos familiares foram oficializadas e atendidas com mais celeridade do que o pedido de buscas aos desaparecidos? Por que uma mídia local reproduziria a narrativa do ‘cárcere privado’ no dia seguinte? Qual o interesse dos agentes políticos e econômicos da região nesta nova fricção com os indígenas Awaeté?

Cabe ressaltar que os Awaeté-Parakanã tem contato recente, cerca de 40 anos com os não indígenas (os Tôria). A maioria vem buscando estudar justamente para melhor se comunicar com os Toria; poucos são falantes do português. Vivem ainda sob as sequelas do deslocamento compulsório da Eletronorte para a Construção da Hidroelétrica de Tucuruí e de uma Tutela traumática do Programa Parakanã.

No dia 26, a rodovia Transamazônica foi bloqueada por familiares dos caçadores, em protesto a ausência das autoridades do poder publico para mediar o diálogo com os indígenas e iniciar as buscas pelos desaparecidos. Neste instante, além de uma longa fila de veículos no trecho da T.I. Parakanã, a entrada do Posto Taxakoakwera e de algumas aldeias Awaeté se encontram sitiadas devido aos protestos na rodovia. Áudios com ameaça a vida dos indígenas começam a circular. Um clima de insegurança e ameaças vêm aumentando devido a morosidade do poder publico competente em se fazer presente para mediar a interlocução das partes envolvidas e acelerar o processo de busca, o que preocupa os Awaeté e seus parceiros institucionais, como os/as professores/as dos cursos de Magistério Indígena e Agroecologia.

Toda nossa solidariedade aos familiares que procuram seus filhos e irmãos desaparecidos, esperamos que as buscas sejam efetivas e tão logo sejam localizados em segurança. Contudo destacamos que tais episódio expõe ataques ao povo indígena Awaeté e a cobiça pelo fragmento de território que compõe a T.I Parakanã. Soma-se a isso, a carga de preconceitos e etnocentrismo que vêm alcançando desdobramentos nos corpos indígenas com a possibilidade de um novo estado de exceção sobre suas vidas.

Cobramos de todas as autoridades responsáveis a máxima proteção aos Awaeté- Parakanã neste momento.

Assinam:

Ronnielle de Azevedo-Lopes – IFPA/ CRMB/GPTIE Ribamar Ribeiro Junior – IFPA/GPTIE

Tatiane Costa – IFPA/CRMB

Coordenação do Curso de Magistério Indígena (IFPA/CRMB) William Bruno Silva Araújo – Diretor de Ensino/CRMB

A extração ilegal de madeira atinge o núcleo intocado da Amazônia, mostram pesquisas “aterrorizantes”

madeira ro

  • Imagens de satélite mostram que a atividade madeireira está se espalhando de áreas periféricas da Amazônia em direção ao núcleo da floresta tropical, de acordo com pesquisas inovadoras.
  • O mapeamento por satélite de sete dos nove estados amazônicos do Brasil mostrou um padrão “assustador” de avanço da exploração madeireira que desmatou uma área três vezes o tamanho da cidade de São Paulo entre agosto de 2019 e julho de 2020 sozinho.
  • No nível estadual, a falta de transparência nos dados madeireiros torna impossível calcular quanto da produção de madeira é ilegal, dizem os especialistas.
  • Evidências de corte em reservas indígenas e unidades de conservação – onde a extração de madeira é proibida – deixam claro que a extração ilegal de madeira é responsável por grande parte da atividade, segundo o relatório.
  • Um dos principais temores sobre a Amazônia brasileira está começando a se materializar: a exploração madeireira está começando a se mover da periferia da floresta em direção ao núcleo do bioma, mostram novas pesquisas inovadoras.
Por  Juliana Ennes para o Mongabay News

Rastreando árvores cortadas por meio de dados de mapeamento de satélite, a pesquisa descobriu que as atividades madeireiras desmataram 464.000 hectares (1,15 milhões de acres) da Amazônia brasileira – uma área três vezes o tamanho da cidade de São Paulo – entre agosto de 2019 e julho de 2020. Mais da metade (50,8%) da exploração madeireira estaria concentrada no estado de Mato Grosso, seguido por Amazonas (15,3%) e Rondônia (15%).

“Há cerca de 20 anos, temíamos que a floresta fosse devastada no chamado ‘arco do desmatamento’ e o movimento migrasse das áreas periféricas em direção à região central da Amazônia”, disse Marco Lentini, coordenador sênior do projeto do Imaflora , uma ONG de desenvolvimento sustentável envolvida no projeto de mapeamento. “Nosso mapa mostra que isso está acontecendo agora: a extração de madeira está indo em direção ao núcleo da Amazônia.”

Ele disse que o padrão de extração era de “migração de fronteira”, acrescentando: “Isso é algo que nos apavora. Temos que estabilizar essa fronteira.”


A maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil viu a polícia recuperar 226.000 metros cúbicos (8 milhões de pés cúbicos) de madeira na fronteira entre os estados do Amazonas e Pará em março de 2021. Imagem cortesia da Polícia Federal no estado do Amazonas.

A pesquisa, divulgada na semana passada, foi desenvolvida pela rede Simex formada por quatro organizações ambientais brasileiras sem fins lucrativos: Imazon, Imaflora, Idesam e Instituto Centro de Vida (ICV). As instituições afirmam que formaram a aliança para mapear, pela primeira vez, o desmatamento em quase toda a Amazônia. Eles conseguiram mapear sete dos nove estados que compõem a Amazônia brasileira – Acre, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Roraima – que juntos respondem por quase 100% da produção de madeira da floresta tropical.

Embora o mapeamento não tenha sido capaz de especificar a quantidade exata de árvores extraídas ilegalmente de florestas intocadas, a maior parte das ilegalidades concentrou-se na tríplice fronteira entre Mato Grosso, Amazonas e Rondônia, onde foi detectada intensa atividade madeireira em uma reserva indígena e uma unidade de conservação. , segundo Vinicius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial do ICV, organização sem fins lucrativos com sede em Mato Grosso. “As áreas protegidas nesta região apresentam grande presença de exploração madeireira e baixo nível de fiscalização, com muitos indícios de ilegalidade.”

O mapa do Sismex cobre as áreas onde a Polícia Federal realizou a maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil no início deste ano, recuperando 226 mil metros cúbicos (8 milhões de pés cúbicos) de madeira na fronteira entre os estados do Amazonas e Pará. Essa operação desencadeou a demissão do polêmico ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em junho, após ele ter pedido a liberação da madeira.

Dez municípios responderam por quase 200.000 hectares (494.000 acres) de exploração madeireira, cinco deles em Mato Grosso, dois no Amazonas e os demais em Roraima, Acre e Pará. A maior parte da atividade madeireira, 78%, supostamente ocorreu em propriedades privadas. As autorizações legais são freqüentemente usadas para mascarar a extração de madeira em áreas restritas por meio de um processo conhecido como lavagem de árvores, de acordo com as descobertas.

Um estudo mais detalhado desenvolvido pelo Imazon com foco no Pará mostra que mais da metade da exploração madeireira no estado não recebeu nenhuma autorização governamental. De agosto de 2019 a julho de 2020, 50.139 hectares (123.896 acres) de floresta foram devastados, sendo 55% sem autorização dos órgãos ambientais. Isso representou um crescimento de 20% em relação aos 12 meses anteriores, quando a extração não autorizada era de 38%, segundo o Imazon.

O mapa desenvolvido pela rede Simex mostra as concentrações da atividade madeireira no estado de Mato Grosso, seguido por Amazonas e Pará. Imagem cortesia da Simex. Antes do advento do projeto Simex , apenas Pará e Mato Grosso tinham mapas de satélite identificando áreas onde ocorria a exploração madeireira. O Imazon passou a monitorar o Pará em 2008 e o ICV aderiu à iniciativa em 2013, monitorando Mato Grosso. As instituições afirmam que esses estados foram seu foco inicial para a transparência de dados devido à alta atividade madeireira.

A extração de madeira não limpa a área florestal tão extensivamente quanto o desmatamento, e o crescimento da vegetação sobre os locais de extração pode dificultar a visualização via satélite, de acordo com Vinicius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial do ICV.

“Com a exploração madeireira, diferente do desmatamento, ainda existe alguma cobertura vegetal. Podemos identificar cicatrizes na floresta feitas pelas estradas utilizadas para a movimentação das toras, bem como áreas desobstruídas para armazenamento. Existe toda uma infraestrutura em torno da exploração madeireira que nos ajuda a encontrar essas áreas ”, disse Silgueiro à Mongabay em entrevista por telefone.

Na maioria dos estados, no entanto, ele disse que é quase impossível verificar quando a atividade madeireira é ilegal, devido à falta de transparência ou barreiras tecnológicas. Muitas vezes, acrescentou, os certificados das atividades florestais legais são arquivados em papel, dificultando o cruzamento da base de dados de certificados com as imagens. Os únicos dois estados com bancos de dados digitalizados são Pará e Mato Grosso. 

Atividade madeireira no estado de Rondônia, com árvores já marcadas e aguardando transporte. Imagem cortesia de Vicente Sampaio / Imaflora.

Outro desafio é que os certificados que permitem o manejo florestal fornecem as coordenadas de localização, mas não o arquivo de formato – o mapa digital – da área, o que dificulta os esforços para identificar por meio de imagens de satélite onde ocorre a extração ilegal de madeira, segundo Lentini.

Apesar desses desafios, há casos em que fica muito claro que a exploração madeireira é ilegal, disse Lentini: quando acontece em áreas protegidas como reservas indígenas e unidades de conservação. O estudo constatou que 6% da extração madeireira na Amazônia, ou 28.112 hectares (69.466 acres), estava em unidades de conservação durante o período de estudo; 5% estava em reservas indígenas, em 24.866 hectares (61.445 acres). “Essas áreas não têm nenhum tipo de autorização para extração legal”, disse Silgueiro.

Um relatório de 2018 do Greenpeace, intitulado “Árvores imaginárias, destruição real ”, destacou a falta de confiabilidade dos sistemas de licenciamento e controle florestal do Brasil, o que torna mais difícil combater a fraude.

“Uma falha crítica na governança florestal dos estados amazônicos está na fraqueza do processo de licenciamento para planos de manejo florestal sustentável”, disse o relatório. Em sua maioria, não são realizadas inspeções de campo antes da elaboração dos planos de manejo, ou essas inspeções são de baixa qualidade, de acordo com o relatório.

“Isso permite que os engenheiros florestais … superestimem os volumes ou adicionem de forma fraudulenta árvores de alto valor comercial ao inventário florestal da área. Posteriormente, os órgãos estaduais emitem créditos pela colheita e movimentação dessa madeira inexistente ”, que será desmatada de florestas em terras indígenas, áreas protegidas ou públicas, segundo apuração do Greenpeace. 

Autoridades ambientais do estado do Pará apreendem madeira ilegal em operação de fiscalização em 2021. Imagem cortesia da Agência Pará.

Silgueiro, do ICV, disse que a extração legal e ilegal persiste em proporções em torno de 60:40. “Quanto mais documentação legal houver para explorar a floresta, mais madeira ilegal haverá”, disse ele. Ele acrescentou que a fraude madeireira só vai parar quando todo o processo se tornar rastreável por meio de tecnologias que ajudam a estimar o volume real de produção de madeira e rastrear cada árvore individualmente. “A rastreabilidade da produção é fundamental”, disse Silgueiro. “Essa tecnologia já existe, mas os estados produtores demoram a adotá-la”.

O impacto ambiental da extração ilegal de madeira é imenso. Estudos recentes mostram que a Amazônia brasileira é agora uma fonte líquida de CO2 , em vez de ser um sumidouro de dióxido de carbono como seria de se esperar, devido a fatores que incluem a exploração madeireira.

Imagem do banner:  Um caminhão carrega toras cortadas da Floresta Amazônica no estado de Rondônia. Imagem cortesia de Vicente Sampaio / Imaflora.

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Este texto foi originalmente escrito em inglês e publicado pelo Mongabay News [Aqui!].

Gado de fazendas ligadas a “narcopecuarista” foi vendido à JBS e Frigol

Conflitos por terra, trabalho escravo, desmatamento ilegal e homicídio envolvem o nome de João Soares Rocha, que usou a pecuária para lavar dinheiro do tráfico, segundo a PF

Gado de fazendas ligadas a “narcopecuarista” foi vendido à JBS e Frigol -  Agência Pública

  • Pelo menos duas fazendas teriam fornecido animais para a JBS e Frigol
  • Rocha deve cerca de R$ 4 milhões ao Ibama em multas ambientais
  • Uma das propriedades foi palco de conflito com sem-terra
Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca, Clarissa Levy, Rafael Oliveira, Thiago Domenici para a Agência Pública

Uma organização criminosa que transportou 8 toneladas de cocaína entre 2017 e 2018 para o exterior e recebeu como pagamento pelo menos US$ 3,4 milhões em dinheiro vivo. Quem liderava esse grupo? Segundo as investigações que serviram de base à Operação Flak, da Polícia Federal do Tocantins (PF-TO), era João Soares Rocha, de 64 anos.

“Rochinha” ou “Joãozinho Pé de Cobra”, como também é conhecido o chefe da organização, teria se tornado uma mistura de narcotraficante e pecuarista – um “narcopecuarista” – com atuação sobretudo no sudeste do Pará, onde sua família possui mais de uma dezena de imóveis rurais, alguns sobrepostos a Projetos de Assentamento (PAs) da Reforma Agrária e a uma área de proteção ambiental (APA).

Rocha, apontam as investigações, teria ganhado muito dinheiro com o transporte de entorpecentes e investido parte dos valores na compra de gado para venda a frigoríficos, um expediente comum na lavagem de dinheiro, especialmente em estados produtores de gado, de acordo com o presidente da Associação Nacional de Peritos Criminais Federais (APCF), Marcos Camargo.

Como a investigação da PF-TO não tinha como objetivo descobrir para quais frigoríficos o gado foi vendido, a Agência Pública traçou o caminho dos animais em oito fazendas relacionadas a Rocha, alvos de busca e apreensão e sequestro judicial no âmbito da Flak. A partir de Guias de Trânsito Animal (GTAs) obtidas pela reportagem, é possível afirmar que entre janeiro de 2018 e julho de 2020 tanto a JBS quanto a Frigol receberam para abate 2.505 animais de duas dessas propriedades – veja o detalhamento nos infográficos abaixo.

A GTA é exigida por lei para cada transporte de gado, mas não é um documento público. Nela devem constar origem e destino do animal, nome, CNPJ ou CPF do vendedor e do comprador do lote bovino, controle de doenças, quantidade e faixa etária e se a movimentação tem como finalidade a criação, a engorda ou o abate.

Os documentos analisados mostram também que outras cinco fazendas da família de Rocha transportaram bois entre si ou para propriedades de terceiros, com a finalidade de engorda, para que posteriormente fossem fornecidos aos dois frigoríficos. 

De acordo com dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Pará, vários dos imóveis da família são próximos entre si. Todos ficam nos municípios paraenses de Tucumã, Ourilândia do Norte e São Félix do Xingu – cidade com o maior rebanho bovino do país. Nas três cidades, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou ao menos 34 conflitos por terra em 2020.

publica fluxo gado

A parceria com o maior traficante do Brasil

Deflagrada pela PF-TO e pelo Ministério Público Federal no Tocantins (MPF-TO) em 21 de fevereiro de 2019, ocasião em que Rocha foi preso preventivamente, a Operação Flak investigou o modus operandi da organização criminosa que, formada por mais de 40 pessoas, por meio de aeronaves, teria transportado cocaína de países produtores da droga, como Bolívia e Colômbia, para outros da América do Sul (Suriname, Venezuela, Guiana), América Central (Honduras e Guatemala) e África. 

Rocha conseguiu na Justiça um habeas corpus depois de alguns meses preso. Solto em julho de 2019, mediante pagamento de fiança de cinco salários-mínimos, hoje ele é considerado foragido, mas por outra ação judicial, em que é acusado de ser o mandante de um assassinato ocorrido em abril de 2020, história que será contada adiante. 

As investigações indicam que Rocha era o responsável por aspectos cruciais do funcionamento da organização criminosa: financiava a compra das aeronaves utilizadas nas ações – a PF o identificou como responsável por pelo menos nove delas –, recrutava pilotos, copilotos e mecânicos para a quadrilha e negociava o valor do frete dos entorpecentes diretamente com produtores e compradores. 

É nesse ponto que aparece a figura de Luiz Carlos da Rocha, o Cabeça Branca, considerado o maior traficante do Brasil até julho de 2017, quando foi preso pela Operação Spectrum, da PF do Paraná. A PF-TO apurou que “Rochinha” transportava drogas para Cabeça Branca, também denunciado no âmbito da Operação Flak. 

Elvis Secco, delegado da PF que coordenou a Spectrum e prendeu Cabeça Branca, explicou à Pública que o narcotraficante também utilizava a pecuária para ocultar a origem dos recursos provenientes do tráfico. “Pode-se dizer que a principal estratégia de lavagem dele era a criação de gado e plantação de grãos”, conta. “Primeiro, [tem como] colocar a fazenda no nome de um laranja e ficar como dono formal. Segundo, é uma ótima maneira de viver uma vida discreta, porque, se você comprar fazendas e morar numa cidade agrícola, pode facilmente usar como história de cobertura a venda de grãos, a compra e venda de gado. Terceiro: é lucrativo.”

Ainda segundo a PF-TO, o esquema de Rocha tinha também a participação de Evandro Geraldo e Cristiano Felipe Rocha Reis, irmão e sobrinho de Rocha, com quem chegaram a se desentender. Ambos morreram após um acidente de avião em agosto de 2018.

A Polícia Federal apontou ainda que Rocha recebia cerca de US$ 150 mil em espécie por voo entre a Venezuela e o Suriname que transportava em média 400 quilos de cocaína. Esses valores teriam proporcionado a ele “considerável elevação patrimonial” e foram lavados por meio da pecuária, “com a criação e engorda de gado e venda para frigoríficos, na compra de terras para pastagem, garimpos e postos de combustível”, registra o inquérito.

O perito Marcos Camargo explica: “O que se busca normalmente [para a lavagem de dinheiro] é uma atividade que tenha pouca regulamentação ou que tenha dificuldade de fiscalização, por alguma razão”. No caso da pecuária, o valor que se dá ao gado é subjetivo. “Você pode pegar um boi e dizer que ele custa R$ 2 milhões. Você não consegue ter uma fiscalização tão efetiva. Na medida que você adquire uma fazenda ou alguma coisa desse tipo, você pode simplesmente colocar os bois ali e atribuir, entre aspas, o preço que você quiser a eles.”

Além disso, também de acordo com a PF-TO, como estratégia para ocultar uma parcela de seus bens, Rocha teria transferido parte desse patrimônio para seus três filhos – Stefânia, de 29 anos, Izabela, de 26, e João Vitor Ferreira Rocha, de 22 – e sua então companheira, Mayra Gomes Trindade Ferreira, de 47 anos.

De acordo com o perito Marcos Camargo, a transferência de bens a parentes é uma estratégia a que traficantes de drogas normalmente recorrem. “[Costumam colocar] em nome de terceiros, da esposa, das filhas, de laranjas, porque, se alguma coisa acontecer em termos de processo penal e quiserem, por exemplo, bloquear os bens, não se vai conseguir ou se vai ter dificuldade de conseguir, porque esses bens não vão estar no nome [do traficante]. Você terá uma proteção a mais contra uma ação judicial que venha querer bloquear os seus bens ou dar perdimento”, destaca.

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Do tráfico para o prato

A reportagem analisou ao todo 190 GTAs de fazendas ligadas a João Soares Rocha, também em nome de seus filhos e sua ex-companheira, e que foram sequestradas pela Justiça a pedido da PF e do MPF no Tocantins. Em julgamento posterior pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1), houve reforma da decisão de sequestro das áreas ligadas aos familiares de Rocha.

As GTAs envolvem oito imóveis rurais da família, dos quais cinco ficam no município de São Félix do Xingu: fazenda Paranaíba, com movimentações em nome de Rocha; fazenda Cachoeira e fazenda Matão, ligadas a Mayra Ferreira Trindade Gomes; fazenda Serra Grande, do filho mais novo, João Vitor Ferreira Rocha; e fazenda Izabela, da filha do meio, Izabela Ferreira Rocha. Outros dois imóveis, localizados em Tucumã, são a fazenda Estrela da Serra, relacionada à filha mais velha, Stefânia Ferreira Rocha; e o sítio do Cacau, também de João Soares Rocha. 

Há ainda GTAs em nome da fazenda Agropecuária Abelha II, em Ourilândia do Norte, que é da empresa Agropecuária Abelha Comércio & Serviços Ltda., da qual Stefânia, Izabela e João Vitor são sócios. 

Embora Rocha não apareça formalmente como um dos sócios da Agropecuária Abelha Comércio e Serviços Ltda., a investigação da PF-TO aponta que a empresa e a fazenda relacionada pertencem ao narcopecuarista. A Agropecuária Abelha II é o principal entreposto da movimentação de gado entre os imóveis da família e os grandes frigoríficos.

Entre janeiro de 2018 e julho de 2020, 3.018 vacas e bois saíram de cinco fazendas dos familiares de Rocha com destino à propriedade em Ourilândia do Norte. No mesmo período, 2.230 animais foram transportados de lá para a JBS e Frigol, com a finalidade de abate. A Frigol também recebeu 275 cabeças de gado da fazenda Matão, em nome de Mayra, entre janeiro e dezembro de 2018, segundo as GTAs.

As GTAs analisadas pela Pública mostram ainda movimentações de gado envolvendo dois imóveis registrados em nome de Rocha no CAR do Pará. Nos dias 28 de novembro e 3 de dezembro de 2018, Mayra transferiu 350 cabeças de gado da fazenda Matão para a fazenda Paranaíba, da qual Rocha é dono. Um dia depois, em 4 de dezembro, ela transportou outros 65 bois da mesma fazenda para o sítio do Cacau, também do agora ex-marido. As três operações tinham como finalidade a engorda do gado para posterior comercialização.

Em 5 de dezembro de 2018, Rocha enviou 200 cabeças de gado do sítio do Cacau para a fazenda Primavera, em Curionópolis (PA), cujo dono é o pecuarista Rafael Saldanha Júnior, também para engorda. Saldanha Júnior, que já teve áreas embargadas pelo Ibama em cinco oportunidades, além de ter recebido pelo menos sete autuações ambientais, vendeu 161 bois para a JBS e para a Marfrig ao longo dos meses seguintes.

Além disso, a reportagem apurou que três das fazendas envolvidas nas transferências de bovinos estão sobrepostas a Projetos de Assentamento (PAs) da Reforma Agrária. É o caso das fazendas Estrela Grande e Paranaíba, que ficam sobre o PA Tucumã, instituído em 1991 na cidade de mesmo nome, hoje com 3.610 famílias assentadas; e da Agropecuária Abelha II, cuja área coincide com o PA Luciana, que, criado pelo Incra em 1998 em Ourilândia do Norte, atualmente abriga 309 famílias. Esse mesmo PA é palco de um conflito que se arrasta há anos entre sem-terra e o proprietário da fazenda 1.200, que também tem porções incidentes sobre o assentamento, conforme revelou investigação da Pública.

Já a fazenda Serra Grande está sobreposta à Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, uma unidade de conservação constituída pelo estado do Pará em 2006 entre São Félix do Xingu e Altamira. A APA faz parte do mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio e de fevereiro a abril deste ano foi a recordista de desmatamento entre unidades de conservação na Amazônia, segundo levantamento do Imazon. 

O procurador da República Daniel Azeredo, um dos responsáveis pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne no Pará – acordo firmado entre o MPF e frigoríficos para evitar a compra de produtos vindos de fazendas envolvidas em irregularidades socioambientais –, explica que as APAs, em tese, admitem a criação de gado em seu interior, mas a atividade precisa ser regulada por um plano de manejo. Embora exista há quinze anos, a APA Triunfo do Xingu ainda não dispõe desse documento, que define as regras de uso do solo em todas as unidades de conservação – ele está em fase de elaboração e deve ser publicado nos próximos meses. “O Estado está omisso”, aponta. “Não dá nem pra dizer que quem está lá está errado, porque não está escrito se pode ou se não pode. Teria que ser feita essa cobrança.”

Pelo TAC da Carne, porém, não deveria ocorrer a compra de animais com origem em fazendas que tiveram desmatamento depois de agosto de 2008, data em que o acordo foi assinado. Isso aconteceu dentro da fazenda Matão em 2008 e 2016, segundo dados do sistema Prodes, mantido pelo Inpe.

Em relação ao monitoramento de propriedades ligadas ao tráfico de drogas e outros delitos, Azeredo considera que seria razoável cobrar os frigoríficos caso existisse uma base de dados que reunisse as propriedades de pessoas condenadas pelo crime, o que não há atualmente. “É muito difícil você pedir para acessar todos os sistemas de justiça e analisar caso a caso. Eu acho que aí a questão deve ser de organização de lista, para que houvesse essa cobrança”, avalia.

Em resposta aos questionamentos da Pública (leia aqui a íntegra), a Frigol informou que deixou de comprar bois das fazendas Agropecuária Abelha II e Matão em janeiro deste ano e em dezembro de 2018, respectivamente. Em nota, o frigorífico afirmou que “vem apresentando um avanço progressivo na rastreabilidade dos animais, que pode ser conferido nos resultados das auditorias do Ministério Público Federal.” 

A JBS comunicou que recebeu animais da Agropecuária Abelha II pelas últimas vezes em 2018, quando “a propriedade estava de acordo com a Política de Compra da empresa e com o Protocolo de Monitoramento de Fornecedores do MPF”, e que não ocorreram novas compras em 2019, ano em que foi deflagrada a Operação Flak.

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O vai e vem das fazendas na Justiça

Desde que a Justiça Federal do Tocantins autorizou a deflagração da Operação Flak, em 13 de fevereiro de 2019, as propriedades de João Soares Rocha e seus familiares são alvo de disputa nos tribunais.

À época, o juiz do caso permitiu o sequestro das oito fazendas que aparecem nas GTAs obtidas pela reportagem e determinou a avaliação e venda do gado remanescente, também alvos de sequestro, para evitar deterioração dos bens. Meses depois, no entanto, a ex-companheira e os filhos de Rocha conseguiram reaver as fazendas registradas em seus nomes por meio de decisão do TRF-1, que considerou legítimo o patrimônio dos quatro por não haver denúncia contra eles. 

Ainda assim, o juiz federal responsável pelo processo que deflagrou a Flak determinou que uma administradora judicial verificasse a presença de gado pertencente a João Soares Rocha nos imóveis de seus familiares, já que neles havia animais marcados com as iniciais “JR”. A defesa da ex-companheira e dos filhos de Rocha, porém, segundo consta em juízo, “ofereceu resistência ao ingresso da administradora judicial na fazenda” para o cumprimento da decisão.

O mesmo TRF-1 negou a suspensão do sequestro dos bens de João Soares Rocha, tendo apenas suspendido o leilão de parte do gado do pecuarista, que estava marcado para dezembro de 2019. De acordo com a última decisão, tanto os animais quanto as propriedades do acusado se encontram sob seu domínio, mas como “fiel depositário” da Justiça – isso significa que ele tem a obrigação de conservar os bens até posterior decisão judicial.

publica ourilandia

Chegada a Ourilândia do Norte, onde fica a fazenda Agropecuária Abelha II

Pistolagem contra sem-terra em Ourilândia do Norte

De acordo com Maria, a orientação das lideranças – que agiam autonomamente, sem apoio de movimentos sociais – era que as famílias não cortassem as cercas de arame originais da propriedade, delimitassem seus lotes e não mexessem com o gado de Rocha, que seguia no imóvel aos cuidados de um vaqueiro. “Fizemos barraco, começamos a plantar feijão, melancia, abóbora, essas coisas primeiro. Aí depois mandioca, cacau, vários tipos de plantas frutíferas a gente tinha lá”, explica. Ela diz que os ocupantes também mantinham criações de galinhas e porcos e que alguns, confiantes na possibilidade de permanecer no local, já tinham investido na construção de poços artesianos, por exemplo.

A situação foi de relativa tranquilidade até que, na noite de 5 de setembro de 2020, uma das lideranças da ocupação, o agricultor João Antônio Soares da Silva, de 57 anos, foi assassinado a tiros no banheiro que ficava do lado de fora de sua casa, em Ourilândia do Norte. O boletim de ocorrência da morte foi registrado na delegacia da cidade e a investigação agora está a cargo da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (Deca) de Redenção. O delegado Antônio Mororó Júnior, responsável pelo caso, informou que o inquérito corre sob sigilo, mas que já se verificou “que a motivação do crime tem relação com conflito agrário e disputa de terras”.

Maria relata que depois do assassinato de Silva pessoas estranhas começaram a rondar a ocupação e abordar os moradores. “Eles deixavam os cabos de revólver [aparecendo por] debaixo da camisa. A gente conhece esse povo aí. A gente conhece pelo jeito de vestir deles”, narra. 

No fim de outubro, homens teriam avisado de barraco em barraco que as famílias tinham 15 dias para deixar o local. A expulsão, entretanto, viria antes do prazo: durante a noite, um grupo colocou fogo nas casas e plantações dos ocupantes e passou com máquinas por cima do que sobrou. Segundo Maria, ninguém se machucou, mas os sem-terra perderam tudo. “Eles podiam ter deixado a gente tirar nossas coisas, as mandiocas, o cacau, porque cacau é dinheiro”, lamenta.

Procurada, a Superintendência do Incra do sul do Pará, responsável administrativamente pela região de Ourilândia do Norte, informou não ter registros sobre a ocupação. O advogado dos filhos de João Soares Rocha, Stefânia, Izabela e João Vitor – donos formais da Agropecuária Abelha II –, não respondeu especificamente às perguntas da Pública sobre a ocupação das famílias sem-terra na fazenda e sua expulsão (no fim desta reportagem, há mais informações sobre a manifestação da defesa). Já os advogados de Rocha não enviaram seu posicionamento até a publicação.

publica bois ourilandiaBois em fazenda de Ourilândia do Norte, cidade em que a família de João Soares Rocha mantinha uma de suas propriedades

A conta de Rocha na Justiça

Desmatamento ilegal, trabalho análogo à escravidão, homicídio e ameaça: denunciado na Justiça Federal do Tocantins no âmbito da Flak por tráfico internacional de drogas, associação para o tráfico e atentado contra a segurança do transporte aéreo, entre outros delitos, João Soares Rocha tem também histórico de infrações ambientais. 

Hoje, ele deve cerca de R$ 4 milhões por duas multas aplicadas pelo Ibama por crimes contra a flora e o ecossistema, tendo quitado outras duas que, juntas, somavam R$ 33 mil. Ele já teve duas áreas embargadas pelo órgão, em 2007 e 2015. O embargo mais recente, ainda pendente de julgamento, ocorreu dentro da fazenda Matão, em Tucumã, cujo registro no CAR está em nome de sua ex-companheira, Mayra, e que vendeu gado para a Frigol em 2018, contrariando o TAC da Carne. 

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Rocha é acusado de ser o mandante do assassinato do advogado Silvio José Dourado, ex-agente da PF

Uma das multas ainda ativas, no valor de R$ 3,3 milhões, resultou de ação de fiscalização do Ibama realizada no Parque Nacional da Serra do Pardo, em Altamira e São Félix do Xingu, em dezembro de 2006. Na ocasião, os agentes do órgão identificaram uma área de 2.243 hectares – equivalente a mais de 2,2 mil campos de futebol – de floresta nativa desmatada ilegalmente em uma fazenda de Rocha no interior da unidade de conservação. A multa foi motivo de uma ação civil pública que, ajuizada pelo MPF-PA em abril de 2007, até hoje tramita na Justiça Federal do Pará. 

Em outro processo, o pecuarista é acusado de ter mantido três funcionários da fazenda Cachoeira, em São Félix do Xingu, em situação de trabalho análogo à escravidão. Em setembro de 2010, o Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou os homens, que haviam sido contratados para construir cercas na propriedade, e constatou que eles estavam submetidos a condições degradantes e humilhantes, sem acesso a habitação e saneamento básico, morando em barracos de lona a 5 km da sede da fazenda. O MPT pediu na Justiça a condenação de Rocha e Marivan dos Santos, então gerente da fazenda. Os acusados recorreram e atualmente o processo aguarda decisão no TRF-1. Posteriormente, em 2013, Rocha foi incluído na “lista suja do trabalho escravo”, divulgada pelo governo federal.

Mas não para por aí: atualmente, João Soares Rocha também é réu por homicídio em ação que tramita no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO). Ele é acusado de ser o mandante do assassinato do advogado Silvio José Dourado, ex-agente da PF, ocorrido em 17 de abril de 2020 na capital Goiânia, quando o pecuarista já estava solto no âmbito da Flak. 

Segundo a Polícia Civil, à época a vítima estava namorando Mayra Gomes Trindade Ferreira, e Rocha, inconformado com o novo relacionamento da ex-companheira, teria contratado dois homens para executar Dourado. Logo depois do crime, a Justiça decretou sua prisão temporária e, posteriormente, em julho, a prisão preventiva, mas ele segue foragido. Após esse episódio, Rocha ainda teria ameaçado Mayra, o que, em outubro do ano passado, gerou mais um processo contra ele no TJ-GO.

Embora só tenha virado réu por tráfico de drogas por conta da Flak, a conexão de Rocha com esse universo já havia sido apontada no passado. Em 2006, a Delegacia de Polícia Federal em Redenção apurou a relação entre ele e o notório traficante de drogas e armas Fernandinho Beira-Mar, ex-líder da facção carioca Comando Vermelho. Segundo as suspeitas da PF, à época Rocha estaria lavando o dinheiro do criminoso, mas a investigação não resultou em condenação. 

João Soares Rocha teria ainda ligações com outro narcotraficante, Leonardo Dias de Mendonça, sócio de Beira-Mar, segundo as investigações. No final de 2002, no âmbito da Operação Diamante, da PF de Goiás, vários bens de Mendonça foram sequestrados, incluindo a fazenda Paranaíba, em São Félix do Xingu. Tempos depois, Mayra, sua então companheira, foi à Justiça na tentativa de recuperar a posse do imóvel rural, afirmando serem ela e o marido seus proprietários legítimos – como prova, apresentou um contrato de parceria pecuária firmado entre Rocha e Mendonça em novembro de 1999. A família retomou a propriedade, que até hoje segue em sua posse. 

Em relação ao caso da Fazenda Matão, a Frigol comunicou que considerava o embargo do Ibama referente a uma propriedade vizinha, mas que, em outubro de 2019, o órgão disponibilizou dados demonstrando que partes da propriedade também estavam entre as áreas atingidas. “Na ocasião, a Frigol bloqueou este fornecedor em seu cadastro, embora já não houvesse comercialização com a empresa”, informou, em nota.

Outro lado

A Pública procurou as defesas de João Soares Rocha e de Mayra e seus três filhos. Os advogados de Rocha não responderam até a publicação desta reportagem. Já a defesa de Mayra e dos filhos afirmou que os bens pertencem legitimamente à família e destacou que o TRF-1 acatou os argumentos apresentados no âmbito do mandado de segurança e reverteu o sequestro dos bens de seus clientes. A defesa ressaltou ainda que nenhum dos familiares foi indiciado pela Operação Flak.

A reportagem tentou contato também com o pecuarista Rafael Saldanha Júnior, mas não obteve retorno.

Gado do narcotráfico também foi parar em frigoríficos no MT 

O caso de Rocha não é o único em que traficantes de drogas utilizaram a pecuária para lavar o dinheiro decorrente da atividade criminosa. Na cidade de Cáceres (MT), na fronteira com a Bolívia, ao menos 122 cabeças de gado de Hugo Fernando de Assis Custódio foram enviadas para engorda em outra fazenda no município por meio de um laranja fictício, segundo Guias de Trânsito Animal (GTAs) obtidas pela Pública. A fazenda intermediária, por sua vez, vendeu quase mil cabeças de gado para grandes frigoríficos nos meses seguintes. 

GTAs obtidas pela reportagem indicam que ao menos 963 cabeças de gado foram destinadas ao abate, principalmente para a JBS, mas também para a Frical Frigorífico e para o Frigorífico 3M, entre 14 de agosto de 2018 e 25 de junho do ano seguinte.

Custódio atualmente cumpre pena em São Paulo. Ele foi preso em dezembro de 2016, na cidade paulista de Ribeirão Preto, com cerca de 422 tabletes de substância análoga à pasta base de cocaína. Em 2019, foi condenado a mais de dez anos de prisão pelo crime. Para o Ministério Público do Mato Grosso (MP-MT), a propriedade rural do traficante, chamada fazenda III Barras, era utilizada para lavar dinheiro obtido no tráfico, além de servir de esconderijo de parte do montante. 

Em dezembro de 2020, o promotor Augusto Lopes Santos, do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco), apresentou denúncia contra Custódio, sua esposa e outros sócios, por lavagem de dinheiro e organização criminosa, entre outros crimes. A propriedade, que vale cerca de R$ 10 milhões, e aproximadamente 800 cabeças de gado e maquinários agrícolas estão sob sequestro judicial.

A Pública contatou Rúbia Soares, esposa de Hugo Custódio, que não respondeu aos questionamentos. Adão Alves Júnior, pecuarista que comprou os animais da fazenda III Barras, afirmou que iria verificar a existência da negociação, mas não retornou até a publicação do texto. A JBS informou apenas que a fazenda III Barras não consta em sua base de fornecedores e os outros frigoríficos envolvidos também não se manifestaram em relação às perguntas enviadas pela reportagem.

Colaboraram Bianca Muniz e Raphaela Ribeiro

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Esta reportagem foi originalmente publicada pela Agência Pública [Aqui!].

MPF alerta que conflito entre garimpeiros e indígenas no Pará segue tenso, e que autoridades continuam inertes

Vídeo feito na sexta-feira (19) mostra grupo armado impedindo a circulação de indígenas

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Pessoas armadas e helicóptero filmados na área (arquivo MPF)

O Ministério Público Federal (MPF) divulgou neste sábado (20) imagens que reforçam a necessidade de atuação urgente de forças federais para conter o avanço da invasão de garimpeiros na região do igarapé Baunilha, em Jacareacanga, no oeste do Pará, dentro do território do povo indígena Munduruku (ver mapa abaixo).

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Vídeo feito por indígenas na sexta-feira (19) mostra pessoas armadas impedindo grupo indígena de desembarcar na área. O grupo que impede o desembarque é formado por garimpeiros ilegais e por uma minoria indígena aliciada pelos garimpeiros ilegais.

No vídeo, o grupo armado se afasta quando percebe que está sendo filmado. Segundo os indígenas Munduruku que tentaram desembarcar, todos os garimpeiros e indígenas aliciados estavam armados.

A situação de conflito na região por causa da invasão garimpeira vem se agravando desde o último dia 14, quando houve a entrada de grande número de pás-carregadeiras. Helicóptero foi filmado em sobrevoo na área. Segundo o MPF, a suspeita é que o helicóptero esteja servindo para apoio e escolta dos garimpeiros ilegais.

Indígenas Munduruku também divulgaram fotos de tentativa que fizeram, na última quarta-feira (17/03), de barrar a entrada do garimpo ilegal. A discussão com os garimpeiros ilegais não gerou resultados.

Entenda o caso 

A região do igarapé Baunilha é a porta de entrada para a bacia do rio Cururu, que impacta diretamente a aldeia Missão São Francisco. Os indígenas Munduruku consideram que a destruição da bacia do rio Cururu pela mineração ilegal pode significar o fim da vida indígena na região.

Há anos o MPF cobra das autoridades medidas para barrar essa invasão garimpeira, e reiterou esse pedido em ação ajuizada em 2020. Na última terça-feira (16), o MPF divulgou novo pedido para atuação urgente de forças federais, mas até agora não houve resposta a esse pedido de atuação urgente.

Em agosto de 2020 chegou a ser iniciada uma ação de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que foi interrompida após uma visita do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e da intervenção do Ministério da Defesa. As circunstâncias da interrupção incluíram suspeitas de vazamento de informações sigilosas e transporte de garimpeiros em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) e estão sendo investigadas em dois inquéritos do MPF.

Vídeos, fotos e mapa da região do conflito

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Este texto foi originalmente publicado pelo Ministério Público Federal do Pará [Aqui! ].

Dossiê revela série de violações socioambientais das operações da Hidrovias do Brasil no Pará

Documento publicado pelo Inesc, elaborado com base em denúncias de moradores, revela que a empresa não cumpre com as medidas para mitigar os impactos negativos de suas operações na região de Itaituba. Hidrovias tem dentre seus principais investidores a IFC, braço de investimentos do Banco Mundial para o setor privado.

Estação de transbordo e carregamento de barcaças - HBSA - Estrutural Zortea

Enquanto a soja passa: impactos da empresa Hidrovias do Brasil em Itaituba – revela que a empresa de logística Hidrovias do Brasil tem descumprido sistematicamente uma série de medidas que deveriam ser adotadas para mitigação dos impactos negativos de suas operações na região de Itaituba, no Pará, que se transformou nos últimos anos em um importante centro de transporte da cadeia global de fornecimento de commodities ao ligar a rodovia BR-163 com o Rio Tapajós, é que conclui um estudo divulgado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) publicado nesta terça-feira , 23/02.

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Durante a alta safra da soja, cerca de 1500 caminhões transitam diariamente em Miritituba, distrito de Itaituba, onde vivem 15 mil pessoas. O território é peça fundamental na reestruturação da Amazônia brasileira como caminho para a exportação de grãos do Mato Grosso para o Atlântico, com destino para a China, União Europeia e outros países. Atualmente, pelo menos 41 novos portos estão planejados ou em construção para os principais rios da região.

Na região, já foram construídos diversos empreendimentos, como hidrelétricas, hidrovias, garimpos e minas. Desde 2013, pelo menos 10 portos industriais – a maioria ligados ao agronegócio – foram construídos ao redor da cidade de Itaituba. Em Miritituba existem cinco Estações de Transbordo de Carga (ETC), instalações portuárias privadas que escoam os grãos pelos rios Tapajós e Amazonas até os portos Pará e do Amapá. O dossiê analisa os efeitos dos portos na região, com foco na empresa de logística Hidrovias do Brasil (HDB).

A instituição tem entre seus acionistas a Corporação Financeira Internacional (International Finance Corporation – IFC), braço de investimentos do Banco Mundial para o setor privado. A IFC, que é um banco multilateral de desenvolvimento, exigiu que a Hidrovias do Brasil, para receber o investimento, cumprisse com os Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental (PDs), um conjunto de medidas necessárias para impedir, diminuir ou mitigar os efeitos socioambientais negativos da sua atuação na região. 

No entanto, o dossiê do Inesc evidencia que a política socioambiental, aparentemente rigorosa da IFC, não está sendo cumprida pela Hidrovias do Brasil. O relatório produzido por meio de denúncias de moradores de Itaituba e Miritituba, representantes de movimentos sociais, lideranças indígenas, entre outros, analisa detalhadamente cada meta de sustentabilidade que deveria estar sendo executada pela Hidrovias do Brasil e aponta falhas na vistoria da instituição financeira investidora. 

“A Hidrovias do Brasil foi financiada por um banco que tem uma política socioambiental, à princípio, robusta, que envolve um monitoramento da empresa para ter certeza que, se estão previstos impactos negativos, deverão ser mitigados ou compensados. Existem instâncias que podemos apelar ao banco, para que monitore a empresa e faça estas políticas de fato serem cumpridas. Portanto, este dossiê é um primeiro passo para que a IFC retome o monitoramento da Hidrovias do Brasil e a faça cumprir a política socioambiental da própria instituição”, afirma Livi Gerbase, assessora política do Inesc e autora do estudo.

Um exemplo é a construção do desvio para que os caminhões contornem Miritituba ao invés de cortá-la, obra prometida pela Hidrovias do Brasil ao Banco e que não saiu do papel. Para além do trânsito e do aumento do número de acidentes, os 1500 caminhões geram poluição no ar e deixam parte da soja espalhada por toda a cidade, causando graves danos à saúde da população e interferência na fauna e na flora local. Um morador de Miritituba resume a sensação de viver entre o tráfego intenso: “aqui a gente disputa com as carretas, e o menor é quem tem que correr”. 

O aumento dos índices de violência, comércio ilegal de drogas e prostituição, trazidos com a multidão de caminhoneiros que chega diariamente, são outros impactos sofridos pela população local e ainda pouco mapeados pelos órgãos competentes. 

Moradores de Miritituba revelam, ainda, outras violações da parte da Hidrovias do Brasil e outras empresas portuárias na região, como a proibição da pesca em lugares tradicionalmente acessados pelos pescadores devido a utilização de cordões de isolamento como medidas de segurança por cinco portos instalados lado a lado. Além disso, pescadores também denunciam que a soja que cai nos rios, ao serem transportadas pelas barcaças, está sendo encontrada na barriga dos peixes. 

Indígenas do povo Munduruku também sofrem com as operações da Hidrovias na região que alegou, em seu relatório à IFC, não haver comunidades indígenas e tradicionais afetadas pela construção da sua ETC. A realidade é outra. Duas aldeias urbanas nas margens do Tapajós convivem diariamente com os portos e seus efeitos: Praia do Índio e Praia do Mangue. Para os Munduruku, porém, toda a população indígena do Médio Tapajós sente os efeitos do projeto, pois os impactos se espalham pela rede de parentesco que liga essas comunidades, afetando outros territórios indígenas da região, que possui 868 habitantes indígenas, de acordo com dados oficiais em 2019. Apesar disso, não houve consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, tanto da Hidrovias do Brasil quanto dos outros portos instalados na região, uma clara violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, um acordo do qual o Brasil é signatário. 

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Por fim, outra reclamação grave dos moradores é quanto à participação dos mesmos nos espaços de diálogos com a empresa. Eles relatam que reuniões acontecem em caráter meramente formal com os impactados, onde eles não são de fato ouvidos. “Ouvir a população é só com audiência pública de carta marcada. Na verdade, da população eles só querem a assinatura na ata ali, e o projeto todo já está sendo pronto e  implementado”, explica Josenaldo Luna de Castro, membro do Conselho Gestor de Fiscalização dos Empreendimentos e Investimentos no Distrito de Miritituba (CONGEFIMI). O conselho foi criado em 2018 para ser uma ferramenta de monitoramento da atuação de empresas como a Hidrovias do Brasil na região. 

Enquanto viola os direitos da população local e comunidades tradicionais, a Hidrovias do Brasil, com o sucesso de seus investimentos na Amazônia, completou em 2020 uma oferta pública inicial (IPO) de ações, arrecadando 600 milhões de dólares. Conforme reportagem publicada pelo site Mongabay, em novembro do ano passado, em um prospecto fornecido no seu IPO, a Hidrovias do Brasil descreveu seu porto de Itaituba, que não teve consulta dos Munduruku, como um ativo chave da empresa. A empresa também advertiu aos investidores que as regulamentações ambientais poderiam restringir severamente sua capacidade de fazer negócios e que suas operações logísticas poderiam “resultar em danos ao meio ambiente e a comunidades indígenas e quilombolas, cuja extensão e custos de reparação não são possíveis de estimar”.