O fracasso das UPPs

Por Flavio Serafini

DG

“Alguém precisa parar esse projeto falso de pacificação”. Esta foi a frase dita por Maria de Fátima, mãe de do dançarino e ator Douglas Rafael da Silva Pereira, conhecido como DG, de 26 anos. Desmentindo as informações iniciais dadas pela Policia Militar, o laudo do IML constatou que a morte de DG foi causada por um tiro de arma de fogo. No dia seguinte, mais um jovem foi morto, Edilson da Silva dos Santos, de 27 anos , que recebeu um tiro na cabeça no ato em que se protestava devido a morte de DG. Há menos de uma semana, Niterói também teve mais dois jovens mortos: Anderson Santos Silva, de 21 anos, morreu ao ser baleado quando ia para uma vigília de Páscoa com a família no Caramujo, no dia 18 de abril. Um dia depois, Emanoel Gomes, de 16 anos, foi morto ao se chocar no veículo conhecido como “Caveirão”, o qual , segundo testemunhas, “fechou” a moto em que o jovem estava, e deu “ré” para tentar atingir outro grupo. A vida desses jovens não irá voltar. Mas para que mais vidas não sejam ceifadas, precisamos, urgentemente, mudar esta lógica de segurança pública baseada na guerra e na violência sem limites, e reordená-la em direção a uma política que tenha como princípios fundamentais a defesa da vida, dos direitos e o respeito à dignidade humana. Não podemos aceitar que o poder público e seus agentes, em grande parte das vezes, realizem crimes tão bárbaros quanto os próprios criminosos que dizem combater. Não podemos defender e acreditar que um Estado e uma sociedade cada vez mais violenta, que defenda e realize práticas criminosas como tortura, linchamento, execução sumária, dentre outros, possa ser uma resposta viável de combate ao próprio crime e à violência. Ser a favor do combate à violência e ter uma prática de ódio e desrespeito aos direitos humanos não é apenas uma incoerência, é uma ação que legitima e sustenta o crescimento da aceitação da violência no cotidiano.

O que a morte destes quatro jovens tem em comum é a explicitação de que hoje vivemos uma crise na nossa política de segurança pública. Na região metropolitana e no interior do estado vemos um aumento de praticamente todas as taxas de criminalidade, e na capital, vemos a deterioração da legitimidade das UPPs, que fracassa justamente por não ter rompido com a lógica da guerra, que trata os pobres, negros e favelados como potenciais criminosos. A política de segurança que levou à morte de Amarildo, Cláudia, DG e muitos outros é a mesma incapaz de frear o aumento dos índices de criminalidade. É a mesma que ao deparar-se com manifestações populares por transporte público, saúde e educação padrão FIFA, tenta criminalizar os movimentos e aqueles que os apoiam.

O local de escolha das UPPs não tem qualquer relação com índices de criminalidade: formou-se um grande corredor na Zona Sul, na Região Portuária, no entorno do Maracanã e nos caminhos do Aeroporto. A prioridade tem sido as áreas centrais para a realização da Copa e para a recepção de turistas. Não foram os indicadores de criminalidade e violência que orientaram a escolha das localidades prioritárias para a implantação das UPPs e sim o interesse econômico. Antes de ser um projeto para a segurança pública a UPP é um projeto de cidade, da cidade mercadoria, que separa territórios para entregar aos interesses do capital independente da vida e da segurança das pessoas.

Desde 2007 os índices de homicídio são mais altos no restante da região metropolitana que na Capital, e mesmo assim não houve uma política global para lidar com o problema nestas cidades. Mesmo na cidade do Rio de Janeiro em nenhum momento o critério de definição para a escolha dos locais que receberiam UPP foram os índices de criminalidade violenta: algumas UPPs estão em áreas com baixíssimo índices de criminalidade violenta ao mesmo tempo que áreas historicamente conflagradas estão descobertas. Adicionalmente, a manutenção da mesma lógica de atuação de uma polícia formada para o confronto bélico, e não para a prevenção de situações de violência, acaba por criar um “efeito em cascata”, demonstrado pelo aumento de diversos tipos de crimes, e manutenção do número de homicídios em patamares apenas comparáveis à áreas que estão em guerra civil. O veículo chamado de “caveirão” hoje atua constantemente em Niterói, São Gonçalo, Baixada Fluminense, etc. intensificando ainda mais a participação do Estado na espiral de violência que vivemos.

Quando Sérgio Cabral assumiu o governo existia um projeto de policiamento comunitário anterior à UPP, o GPAE, em funcionamento. Em Niterói havia uma unidade no Cavalão (que ficou 10 anos sem registrar um homicídio) e outra no Morro do Estado. Foram simplesmente sucateadas e abandonadas, até que recentemente, com a crise da segurança em Niterói anunciou-se que serão transformadas em destacamentos avançados. Não há avaliação sobre este projeto, satisfação do que vai mudar, nada, só anúncios de novas promessas para tentar conter a insatisfação. Por outro lado, o número de homicídios desvendados pela polícia ainda é baixíssimo, as condições de perícia criminal são precários e os mecanismos de controle externo sobre a polícia praticamente inexistem. Política e Polícia nunca tiveram significados tão próximos e tão negativos.

A promessa de que a pacificação seria o primeiro passo para a garantia de direitos sociais para as favelas nunca se consolidou, reforçando um entendimento sobre segurança pública restrito à ampliação das forças repressoras, sem compreender que a reprodução da violência está diretamente relacionado à uma série de condicionantes sociais que devem ser modificados. A ausência de mecanismos formais de participação popular na discussão, no planejamento e no controle das ações da polícia pacificadora transformaram a sua prática em uma ação de vigilância e controle sobre os mais pobres, o que em uma polícia militarizada e fortemente marcada pela história de violência significa a consolidação de uma polícia autoritária e arbitrária que não respeita os cidadãos, ou seja, exatamente o contrário do que deveria ser a segurança pública.

As diversas Prefeituras do Estado do Rio de Janeiro, como a de Niterói, podem (e devem) construir políticas públicas de segurança para além do “choque de ordem”, que nada mais é que a repressão desenfreada aos trabalhadores do comércio informal. Ao invés de armar a guarda municipal com armas menos letais, como o taser, considerado pela Anistia Internacional aparelho de tortura, a Prefeitura poderia enfrentar os condicionantes sociais da violência e implementar, respeitando seu papel Constitucional, um plano emergencial para a Segurança Pública, no qual se incluiria: 1) Criação de programas de proteção e apoio dos denominados grupos vulneráveis à situações de violência (mulheres, negros, LGBTs, idosos, crianças e adolescentes, população em situação de rua, pessoas com deficiência física, dentre outros); 2) garantia e assistência e acesso à justiça para mulheres que sofram violência doméstica (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral); 3) Implementação de Programa Municipal de Valorização da Vida e Redução da Violência, que tenha como objetivo: a) Atuar, em conjunto com o Governo Estadual, na reformulação das políticas governamentais de segurança pública para uma estratégia pautada na inteligência policial e no policiamento sócio comunitário; b) Fomentar investigação contra grupos de extermínio e de ação criminosa de agentes do poder público; 4) Promover, em parceria com a Universidade Federal Fluminense, a elaboração de mapas de violência urbana, identificando as regiões que apresentem maior incidência de violência e criminalidade e incorporando dados e indicadores de desenvolvimento, qualidade de vida e risco de violência contra grupos vulneráveis; 5) Propor ao Governo do Estado a criação de programas de atendimento psicossocial para o policial e sua família, a obrigatoriedade de avaliações periódicas da saúde física e mental dos profissionais, de aquisição da casa própria e de estímulo à educação formal e à profissionalização; 6) Apoiar a implementação da PEC 300/2008, que prevê um piso salarial nacional para profissionais da segurança pública dos estados e da aprovação da PEC 51/2013, que propõe a desmilitarização das polícias; 7) Estimular o uso dos espaços públicos e convívio social mediante uma política de iluminação e aprimoramento de praças a partir de consultas à população, quanto às suas prioridades, iniciando-se pelos bairros da periferia e favelas, que historicamente tiveram menos acesso a tais serviços públicos; 8) Atuar com políticas públicas transversais com as Secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social, especialmente na prevenção do uso abusivo de álcool e outras drogas e suas consequências; 9) Elaborar com organizações da sociedade civil um manual de abordagem policial indicando os limites legais para o procedimento, em conjunto com uma Ouvidoria Pública Municipal sobre as práticas de agentes de segurança na cidade; 10) Reformulação do Conselho Municipal de Segurança Pública, com composição paritária entre Estado e sociedade civil, possibilitando a ampla participação popular na formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas de segurança no município.

A atual política de segurança pública defendida por Cabral, Pezão, Rodrigo Neves e Eduardo Paes, faliu. E com sua falência, sofremos todas e todos, especialmente os mais pobres. Está mais do que na hora de realizarmos uma verdadeira mudança no âmbito estadual e municipal, superando a velha política e conclamando uma sociedade que tenha como tripé a promoção de direitos e o avanço da democracia e o respeito à vida.

Flavio Serafini é Presidente do PSOL Niterói e Professor da ESPJV-Fiocruz .

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