O eleitorado sem religião foi o fiel da balança da vitória de Lula

No ti­ro­teio da guerra santa, o tiro da in­to­le­rância saiu pela cu­latra e o
“Dis­cutir com uma pessoa que re­nun­ciou ao uso da razão
é como ad­mi­nis­trar re­médio aos mortos”
Thomas Paine (1737-1809)

sem religião

Por José Eustáquio Diniz Alves para o Correio da Cidadania

As elei­ções pre­si­den­ciais de 2022 che­garam ao fim com a vi­tória do ex-pre­si­dente Luiz Ig­nácio Lula da Silva, no dia 30 de ou­tubro de 2022. Para um elei­to­rado de 156 mi­lhões de vo­tantes, houve 32,2 mi­lhões de abs­ten­ções (20,6%), 118,53 mi­lhões de votos vá­lidos, 1,77 mi­lhão de votos brancos (1,43%) e 3,93 mi­lhões de votos nulos (3,16%). Lula ob­teve 60,33 mi­lhões de votos (50,9%) e Bol­so­naro 58,2 mi­lhões de votos (49,1%).
Foram as elei­ções mais dis­pu­tadas e mais po­la­ri­zadas da his­tória bra­si­leira, com Lula sendo o cam­peão de votos de todos os tempos da de­mo­cracia na­ci­onal.

Houve di­vi­sões mar­cantes do voto. Na re­gião Norte Lula ga­nhou com pe­quena di­fe­rença, mas es­ta­be­leceu grande van­tagem na re­gião Nor­deste, que foi de­ci­siva para o re­sul­tado final. O pre­si­dente Bol­so­naro ga­nhou nas de­mais re­giões, em­bora tenha per­dido de pouco em Minas Ge­rais, es­tado que se man­teve como o termô­metro elei­toral do país, já que a vi­tória em Minas Ge­rais pa­rece ser um pré-re­qui­sito para a vi­tória na­ci­onal. Lula teve grande van­tagem entre as mu­lheres, entre a po­pu­lação preta e parda e entre os es­tratos de mais baixa es­co­la­ri­dade e de baixa renda.

No que­sito re­li­gião, as cli­va­gens foram mar­cantes, pois, se­gundo todas as pes­quisas de opi­nião, Bol­so­naro se man­teve com pro­porção ma­jo­ri­tária do voto evan­gé­lico, en­quanto Lula se man­teve com a per­cen­tagem ma­jo­ri­tária dos votos ca­tó­licos, das ou­tras re­li­giões e do seg­mento do elei­to­rado que se de­clara sem re­li­gião.

Entre as di­versas de­no­mi­na­ções re­li­gi­osas, o pre­si­dente Bol­so­naro ob­teve uma pe­quena van­tagem, mas o ex-pre­si­dente Lula ga­nhou as elei­ções com o voto do seg­mento sem re­li­gião, que foi o fiel da ba­lança e de­finiu o re­sul­tado final das elei­ções, como ve­remos a se­guir.

A ta­bela abaixo apre­senta, na linha do total (linha ver­melha), o re­sul­tado das elei­ções se­gundo os dados do Tri­bunal Su­pe­rior Elei­toral (TSE). Já os nú­meros dos seg­mentos re­li­gi­osos foram cons­truídos com base na pes­quisa Da­ta­folha de 29 de ou­tubro. Nota-se que a úl­tima pes­quisa antes do se­gundo turno apontou Lula com 52% dos votos e Bol­so­naro com 48%, va­lores li­gei­ra­mente di­fe­rentes do re­sul­tado efe­tivo, mas dentro da margem de erro.

A meu ver, o pe­queno erro do Da­ta­folha ocorreu, não pelos per­cen­tuais da in­tenção de votos, mas em de­cor­rência do perfil da amostra. O atraso do censo de­mo­grá­fico pre­ju­dicou a ca­li­bração da amos­tragem. Por exemplo, o Da­ta­folha con­ta­bi­lizou algo em torno de 27% de evan­gé­licos e 52% de ca­tó­licos na amostra, quando na minha opi­nião, evan­gé­licos e ca­tó­licos re­pre­sentam, res­pec­ti­va­mente 32% e 50% do elei­to­rado em 2022. Desta forma, a ta­bela abaixo uti­liza os mesmos per­cen­tuais de in­tenção de voto da pes­quisa Da­ta­folha (29/10), mas re­ca­libra o perfil da amostra. Por con­se­guinte, dos 118,2 mi­lhões de votos vá­lidos, es­ti­mamos 59,1 mi­lhões de votos ca­tó­licos (50%), 37,8 mi­lhões de votos evan­gé­licos (32%), 7,1 mi­lhões de votos de ou­tras re­li­giões (6%) e 14,2 mi­lhões de votos do seg­mento sem re­li­gião (12%).

Apli­cando os per­cen­tuais de in­tenção de voto da pes­quisa Da­ta­folha, temos para Lula 34,6 mi­lhões de votos ca­tó­licos, 11,7 mi­lhões de votos evan­gé­licos, 3,8 mi­lhões de votos das ou­tras re­li­giões e 10 mi­lhões de votos do seg­mento sem re­li­gião. En­quanto Bol­so­naro ob­teve 24,5 mi­lhões, 26,1 mi­lhões, 3,3 mi­lhões e 4,2 mi­lhões nos res­pec­tivos grupos re­li­gi­osos.

Desta forma, Lula teve um su­pe­rávit de 10 mi­lhões de votos entre os ca­tó­licos, Bol­so­naro teve um su­pe­rávit de 14,4 mi­lhões de votos entre os evan­gé­licos e Lula teve um su­pe­rávit de 567 mil votos entre as ou­tras re­li­giões.

Con­si­de­rando apenas estes 3 grupos, Bol­so­naro ga­nharia as elei­ções com van­tagem de 3,8 mi­lhões de votos. Mas como Lula teve su­pe­rávit de 5,9 mi­lhões de votos entre o seg­mento sem re­li­gião, isto com­pensou a van­tagem de Bol­so­naro nos 3 grupos an­te­ri­ores e pro­pi­ciou uma van­tagem final de 2,1 mi­lhões de votos no re­sul­tado final.

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Como já mos­tramos em ou­tros ar­tigos (Alves, 2017, 2018 e 2019), existe uma forte re­lação entre o voto nos can­di­datos e a per­cen­tagem dos grupos re­li­gi­osos nos es­tados. O grá­fico abaixo apre­senta a as­so­ci­ação entre a razão de votos vá­lidos para Lula em re­lação a Bol­so­naro (RLB) e a soma do per­cen­tual de ca­tó­licos e sem re­li­gião no Brasil e em todas as Uni­dades da Fe­de­ração, se­gundo os dados do censo de­mo­grá­fico de 2010 (que são os úl­timos dados dis­po­ni­bi­li­zados pelo IBGE). Ou seja, o grá­fico testa como o de­sem­penho do can­di­dato Lula está cor­re­la­ci­o­nado com maior pro­porção de ca­tó­licos e sem re­li­gião e o de­sem­penho de Bol­so­naro está cor­re­la­ci­o­nado com a pro­porção da pre­sença evan­gé­lica.

Como pode ser visto pela curva lo­ga­rít­mica ver­melha do grá­fico, existe uma re­lação po­si­tiva entre o voto em Lula e a maior pro­porção de ca­tó­licos e sem re­li­gião nos es­tados (com R2 de 71,9%). Ob­vi­a­mente, a va­riável re­li­gião não é a única que ex­plica o re­sul­tado elei­toral de 2022, mas ela tem uma as­so­ci­ação in­ques­ti­o­nável.

Por exemplo, no Piauí, o per­cen­tual de ca­tó­licos e sem re­li­gião é de 88,5%, o maior per­cen­tual do país. Não sem sur­presa, foi onde Lula teve o maior per­cen­tual de votos tanto no pri­meiro quanto no se­gundo turno das elei­ções de 2022. O per­cen­tual de ca­tó­licos mais os sem re­li­gião está acima de 75% em todos os es­tados do Nor­deste, local onde Lula teve uma vi­tória in­con­teste. Já Acre, Rondônia e Ro­raima são os es­tados com menor per­cen­tual de ca­tó­licos e sem re­li­gião (e maior per­cen­tagem de evan­gé­licos), em con­sequência foram as Uni­dades da Fe­de­ração que deram a maior van­tagem elei­toral para Bol­so­naro. Mas como a re­li­gião não ex­plica tudo, o caso de Santa Ca­ta­rina mostra que uma das UFs com grande pro­porção de ca­tó­licos e sem re­li­gião (se­me­lhante à de Per­nam­buco) su­fragou ma­jo­ri­ta­ri­a­mente o pre­si­dente Bol­so­naro.

Em sín­tese, a pro­porção de ca­tó­licos, evan­gé­licos, ou­tras re­li­giões e sem re­li­gião in­flu­en­ciam o voto bra­si­leiro. Mas entre o elei­to­rado cristão – que são os dois mai­ores grupos re­li­gi­osos do Brasil, com cerca de 82% do total do elei­to­rado – houve uma van­tagem de Bol­so­naro. Já entre o seg­mento sem re­li­gião (que re­pre­senta 12% do elei­to­rado) Lula teve uma van­tagem de 5,9 mi­lhões de votos, o que ga­rantiu a van­tagem final de 2,1 mi­lhões de votos que deram a vi­tória ao can­di­dato do Par­tido dos Tra­ba­lha­dores.

Por­tanto, ca­tó­licos e sem re­li­gião foram fun­da­men­tais para su­perar o bol­so­na­rismo da mai­oria do seg­mento evan­gé­lico, mas o fiel da ba­lança foi in­du­bi­ta­vel­mente o seg­mento sem re­li­gião, que com­pensou as di­fe­renças no voto cristão.

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Re­tro­cesso econô­mico, Es­tado Laico e “Guerra Santa”

As elei­ções ge­rais de 2022 ocor­reram em um quadro de re­tro­cesso econô­mico do Brasil, pois tem ha­vido um pro­cesso de de­sin­dus­tri­a­li­zação do país, re­pri­ma­ri­zação da es­tru­tura pro­du­tiva e da pauta de ex­por­ta­ções, além da eco­nomia bra­si­leira ter cres­cido menos do que a média da eco­nomia global e a renda per ca­pita do país tem per­ma­ne­cido es­tag­nada na úl­tima dé­cada. Em con­sequência, tem au­men­tado os pro­blemas so­ciais, como a po­breza, a fome, a in­flação, a vi­o­lência, o au­mento da po­pu­lação de rua, o de­sem­prego e a in­for­ma­li­dade do tra­balho.

Mas ao invés de dis­cutir ra­ci­o­nal­mente um pro­jeto de re­so­lução dos pro­blemas na­ci­o­nais, dentro dos pa­râ­me­tros do Es­tado De­mo­crá­tico de Di­reito, o atual Pre­si­dente da Re­pú­blica – can­di­dato à re­e­leição – pri­vi­le­giou a cam­panha junto ao pú­blico re­li­gioso, dando ên­fase a uma pauta mar­cada pelo con­ser­va­do­rismo moral (pri­o­ri­zando temas como aborto, ca­sa­mento ho­mo­a­fe­tivo, le­ga­li­zação das drogas, “ide­o­logia de gê­nero”, etc.) e pela ale­gação de que o seu o prin­cipal ad­ver­sário pre­ten­deria fe­char igrejas e des­truir a fa­mília tra­di­ci­onal.

Desta forma, o de­bate elei­toral se des­locou dos temas so­ci­o­e­conô­micos para os as­suntos da re­li­gi­o­si­dade. A re­li­gião trans­bordou da es­fera pri­vada para ser ins­tru­men­ta­li­zada em função de ob­je­tivos elei­to­reiros. A pri­meira se­mana do se­gundo turno foi pro­ta­go­ni­zada pelo em­bate en­vol­vendo cris­ti­a­nismo, ma­ço­naria, forças ocultas, ca­ni­ba­lismo e sa­ta­nismo. Na se­gunda se­mana do se­gundo turno, a po­lê­mica ficou por conta da pre­sença do Pre­si­dente da Re­pú­blica nas fes­ti­vi­dades do Círio de Na­zaré, em Belém (Pará) e nas ce­le­bra­ções do dia da Pa­dro­eira do Brasil, no fe­riado na­ci­onal de 12 de ou­tubro, no San­tuário Na­ci­onal de Nossa Se­nhora Apa­re­cida (em São Paulo), onde houve atrito entre os apoi­a­dores do pre­si­dente e os clé­rigos ca­tó­licos. No mês de ou­tubro houve re­pe­tidos ata­ques em igrejas, in­ter­rup­ções de missas e as­saltos às sa­cris­tias em di­versas partes do país.

A ex-mi­nistra Da­mares Alves (se­na­dora eleita pelo Dis­trito Fe­deral) uti­lizou o púl­pito de um templo para es­pa­lhar men­tiras sobre pe­do­filia na ilha de Ma­rajó e para di­fundir o medo e an­ga­riar votos para o atual pre­si­dente. Mas em uma fala in­feliz, o pró­prio Bol­so­naro foi en­vol­vido na de­núncia de pe­do­filia ao dizer que “pintou um clima” ao en­con­trar ga­rotas ve­ne­zu­e­lanas me­nores de idade. O au­to­de­no­mi­nado padre Kelmon uti­lizou a re­li­gião para par­ti­cipar dos de­bates elei­to­rais do pri­meiro turno e se en­volveu nas con­ver­sa­ções do triste epi­sódio de ataque à po­lícia fe­deral por parte do ex-de­pu­tado Ro­berto Jef­ferson no do­mingo 23 de ou­tubro de 2022. Assim, o ma­ni­queísmo entre o bem e o mal e entre a luz e a treva ape­quenou a de­mo­cracia, ob­nu­bi­lando as pos­sí­veis for­mu­la­ções pro­po­si­tivas da cam­panha.

Por con­se­guinte, a tênue linha da lai­ci­dade, que se­para es­tado e re­li­gião no Brasil, foi ul­tra­pas­sada em vá­rios mo­mentos pela mo­bi­li­zação de dogmas re­li­gi­osos, men­tiras e de­sin­for­ma­ções. O de­bate elei­toral virou uma es­pécie de guerra santa, com acu­sa­ções de he­resia contra aquilo que é con­si­de­rado sa­grado pelas di­versas re­li­giões. Há re­latos de pas­tores fa­zendo pressão por voto e ame­a­çando fiéis com pu­nição di­vina e me­didas dis­ci­pli­nares. Houve também per­se­guição po­lí­tica dentro das igrejas, dei­xando claro que, o vi­li­pêndio da fé, vi­li­pendia a pró­pria de­mo­cracia.

To­davia, no ti­ro­teio da guerra santa, o tiro da in­to­le­rância saiu pela cu­latra e o seg­mento do elei­to­rado que se de­clara sem re­li­gião foi de­ci­sivo para a der­rota da ex­trema di­reita e para a van­tagem de cerca de 2% do can­di­dato da es­querda.

O obs­cu­ran­tismo foi der­ro­tado e a ta­refa daqui para frente é ga­rantir a lai­ci­dade do Es­tado e o pre­do­mínio da ra­ci­o­na­li­dade, da ci­ência e da de­mo­cracia sobre as forças do atraso, da su­pers­tição e do pre­con­ceito. O sé­culo 21 está apenas co­me­çando e há muito a ser cons­truído.

José Eus­tá­quio Diniz Alves é eco­no­mista e doutor em de­mo­grafia.

Re­fe­rên­cias

ALVES, JED. O voto evan­gé­lico ga­rantiu a eleição de Jair Bol­so­naro, Eco­de­bate, 31/10/2018
https://​www.​eco​deba​te.​com.​br/​2018/​10/​31/​o-​voto-​eva​ngel​ico-​gar​anti​u-​a-​eleicao-​de-​jair-​bol​sona​ro-​artigo-​de-​jose-​eus​taqu​io-​diniz-​alves/
ALVES, JED. CA­VE­NAGHI, S. La tran­si­ción re­li­giosa y el cre­ci­mi­ento del con­ser­va­du­rismo moral en Brasil. In: CA­REAGA,
GLORIA. Se­xu­a­lidad, Re­li­gión y De­mo­cracia en Amé­rica La­tina, 2019
http://​www.​fun​daci​onar​coir​is.​org.​mx/​wp-​content/​uploads/​2019/​06/​Sex​uali​dad-​Rel​igio%CC%81n-​y-​Dem​ocra​cia.​pdf
ALVES, JED, et. al. Dis­tri­buição es­pa­cial da tran­sição re­li­giosa no Brasil, Tempo So­cial, re­vista de so­ci­o­logia da USP, v. 29, n. 2, 2017, pp: 215-242 http://​www.​rev​ista​s.​usp.​br/​ts/​article/​view/​112180/​130985

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Este texto foi inicialmente publicado pelo Correio da Cidadania [Aqui!].

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