
Já discorri aqui em diferentes ocasiões sobre a aplicação de uma modalidade de licenciamento ambiental no Porto do Açu que eu rotulei de “licenciamento fast food” por causa de suas características particulares que incluem audiências públicas do tipo “para inglês ver”. Agora, o Porto do Açu está anunciando a realização de mais um capítulo dessa modalidade “fast food” para a obtenção das licenças ambientais para a construção do que seria um “Hub de Hidrogênio e Derivados de Baixo Carbono” (ver imagens abaixo).
Um aspecto inicial que poderia se chamar (por falta de melhor palavra) de “curioso” é o horário da realização de audiências públicas a partir das 19:00 horas, período em que a população que será afetada tende a não estar disponível para participar. De quebra, especialmente para os moradores do V Distrito de São João da Barra, os organizadores da “audiência pública” promovem uma espécie de “caravana holiday” que obriga a um percurso relativamente longo antes de se chegar ao local físico do evento.
Esse tipo de estratagema já foi abordado pela minha ex-orientanda Juliana Latini em sua dissertação intitulada “A avaliação de impacto ambiental (AIA) enquanto instrumento participativo e preventivo no contexto do neodesenvolvimentismo: o caso do complexo logístico industrial do Porto do Açu (CLIPA)” onde ficou demonstrado que essas audiências eram preparadas para que não houvesse a devida participação dos atingidos”.
Agora o que se tem é uma versão requentada do mesmo tipo de estratégia de alienação dos interessados, mas com um detalhe pitoresco que é rebatizado da secretaria estadual de Meio Ambiente que agora se denomina “Secretaria de Estado de Ambiente e Sustentabilidade”, o que no caso do governo Castro beira o cinismo, pois a questão ambiental e da sustentabilidade só existem para dar um nome “fashion” para uma secretaria que mormente só existe para emitir licenças fast food.
O que não está dito é o que realmente importa
O problema é que por detrás desses projetos de energia verde que a Porto do Açu tenta vender ao anunicar a audiência pública do seu “hub” há um grande projeto de instalação de um rede de fazendas de vento “offshore” que só no Rio de Janeiro e no Espírito Santo promete a alocação de 14 ilhas de geração de energia, verde é claro (ver mapa abaixo).

Fonte: EPBR
De cara, o que precisa ser dito é que este tipo de projeto de verde não tem nada, pois não se destinam a abastecer a demanda de energia interna, mas sim prover a demanda por hidrogênio nas economias mais desenvolvidas, a começar pelas que compõe a União Europeia. Além disso, quando se olha quem está por detrás desses projetos, o que se descobre, pasmemos todos, são empresas petroleiras (como a Shell e A Total) ou a empresas ligadas a ou controladas por elas. O problema é que para viabilizar tais projetos, há ainda o aumento das áreas de exclusão de comunidades tradicionais, a começar pelos pescadores artesanais que veem um encurtamento dos seus territórios de pesca.
Além disso, há ainda um impacto em terra porque essas unidades offshore acabam tendo estruturas onshore para armazenamento e distribuição do seu “hidrogênio verde”. Exemplos de deslocamento forçado de populações tradicionais já estão sendo fartamente documentados em diversos pontos da costa brasileira. Desta forma, tais projetos se configuram em uma forma avançada do que se denomina “colonialismo verde“.
Mais exclusão e passivo ambiental para os agricultores e pescadores do V Distrito
Assim, diante da magnitude do que está preparando sob a capa de um hub de “hidrogênio e derivados de baixo carbono” não é difícil antever que o nível de expulsão de comunidades que tradicionalmente habitavam o V Distrito de São João da Barra antes da chegada do Porto do Açu vai aumentar ainda mais. É que esses segmentos social e economicamente marginalizados não tem como competir com interesses corporativos globais, especialmente sob a égide de governos que pouco se importam com eles.
Por outro lado, como esse tipo de instalação traz impactos materiais, a começar pela exclusão das áreas de pesca, o que teremos é um agravamento do passivo ambiental e social criado pelo Porto do Açu, incluindo o aumento da erosão costeira e a manutenção do processo de salinização das águas superficiais, e o esgotamento do lençol freático.
Além disso, há que se lembrar que enquanto o Porto do Açu tenta continuar se reinventando, centenas de famílias de agricultores familiares continuam sem serem ressarcidas pela expropriação de suas terras. Terras estas que foram entregues a Eike Batista por Sérgio Cabral, para depois caírem de mãos beijadas no controle do fundo multinacional de private equity EIG Global Partners que hoje é o proprietário de fato do Porto do Açu e do estoque de terras que antes servia para a produção de alimentos.
Nesse sentido, uma coisa é certa: sobre esse passivo não se falará na audiência fast food que ocorre no dia 23. Na verdade, quantos mais silêncio melhor, de preferência com a distribuição de alguns canapés para os desavisados que comparecerem.