A ditadura legislativa serve a quais interesses?

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Por Douglas Barreto da Mata

A grande beleza dos acordos constitucionais, desde que Locke, dentre outros, decifraram a necessidade e a natureza de pactos sociais dedicados ao regramento da vida política e social das forças e grupos em conflito em cada sociedade, é justamente a busca constante de seu aperfeiçoamento.

Há modelos constitucionais de toda sorte, compará-los, como querem alguns, é sempre temerário, a nosso ver.

Recentemente, a sociedade dos EUA convulsionou em um ataque ao Capitólio, na confirmação da vitória de Joe Biden.

Logo após, como em vários outros anos passados de outros presidentes, a administração Biden se viu engessada pelo risco de “shutdown” (desligamento ou paralisação), causado pela disputa entre republicanos e democratas, que resultou na ausência de peça orçamentária.

Tudo isso prova que nenhum estamento institucional é perfeito.

Por certo, nenhuma Constituição serviria ao Brasil como a sua própria, mas é fato que toda constituição requer reparos constantes, ainda mais quando um país continental mantém sua integridade em uma federação mista, isto é, com pouca autonomia legislativa e tributária aos entes federados e subordinados à União.

É normal que após períodos de exceção, como foi a ditadura de 1964, haja aquilo que se chama de “euforia constitucionalista”, quando todos os anseios e demandas reprimidas pela autocracia vêm à tona, em busca de legitimação de seus interesses na Carta Constitucional.

Esse processo nunca é linear, sabemos, e vez por outra, um ou outro setor consegue mais poder que deveria, ou melhor dizendo, criam dispositivos legais que permitem os abusos de poder.

Nenhum dos atores políticos e até  alguns personagens relevantes deste ou daquele Poder da República deixou de flertar com as tentações autoritárias.

 Todos eles, sem exceção, em algum momento da nossa vida recente pós 1988, buscaram impor algum tipo de coação constitucional para elevar suas atribuições.

Felizmente, com mais ou menos sucesso, foram contidos.

No entanto, há ainda algumas brechas a serem lacradas.

Um observador mais atento diria que o que está acontecendo na cidade de Campos dos Goytacazes, quando o Presidente da Câmara Municipal utilizou (alguns dizem, abusou) de seu poder para impedir a votação da LOA, ameaçando de imobilização do Poder Executivo, e pasmem, o próprio Poder Legislativo, é um fenômeno nacional, que reflete os efeitos da “euforia constitucional”, que agora se transformou em “ressaca” pelo abuso do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo.

O desafio a Montesquieu, e a sua ideia de partição equilibrada dos poderes estatais, acabou por instaurar no país uma espécie de sistema presidencialista impróprio, que já foi chamado de coalizão, mas que se reveste hoje em uma adaptação não autorizada pela Constituição, e nem pelo eleitor (o voto, o poder originário), para transformar as casas legislativas e seus presidentes em “primeiros-ministros”, atuando como chefes de governo, e deixando aos poderes executivos as simbólicas cadeiras destinadas aos chefes de estados.

Além de Campos dos Goytacazes, identificamos ainda casos semelhantes em Cascavel/CE (Aqui!),  São Luis/MA (Aqui!) e Belford Roxo/RJ, onde a Justiça, em decisão liminar, restituiu o andamento do processo legislativo.

Os casos das cidades de Belford Roxo e de Campos dos Goytacazes, para ficarmos apenas na nossa esfera geográfica de proximidade, apresentam-se como um desafio descomunal para a vida política das cidades, e porque não dizer, do próprio futuro constitucional das relações entre os Poderes Executivos e Legislativos, e por fim, do Judiciário.

Não é possível, qualquer que seja a filiação política do observador, achar normal que a pessoa a quem caiba a presidência dos poderes legislativos, desde as cidades, passando por estados até a União, possa reter nesta função delegada pelos seus pares legisladores, a total e completa atribuição para pautar leis orçamentárias, sendo que, quando assim desejarem, possam deixar cidades, estados e até a União, sem previsão orçamentária para atendimento das despesas imprescindíveis à vida dos cidadãos e cidadãs.

Tal prerrogativa exclusivíssima, quem vem sendo rotineiramente distorcida, como citamos, buscava dar aos parlamentares uma posição isonômica, o equilíbrio frente ao Poder Executivo, proponente da lei orçamentária, funcionando como mais uma ferramenta dos freios e contrapesos previstos como princípios de nossa Constituição, evitando aquilo que era conhecido, ou seja, a subordinação de parlamentares aos desejos dos chefes dos executivos.

A emenda saiu bem pior que o soneto, em nosso modesto entender.

Em suma: o poder de pautar o processo legislativo orçamentário é um PODER-DEVER, não um elemento discricionário que possa ser usado sem uma vinculação normativa, e pior, sem consequências para ações ou omissões deliberadas para violar a própria natureza precípua da casa parlamentar que é, LEGISLAR.

No entanto, ao que nos parece, como já mencionamos, essa ferramenta se converteu em objeto de abuso, voltada para golpes locais, que por suas vezes, engessam a fluidez constitucional em inflexões paralisantes.

Não cumprir os regimentos internos das casas parlamentares municipais é como capturar e subverter a forma prevista para que as leis sejam criadas.

É matar ou aleijar as leis em sua concepção.

É como tentar o cruzamento genético do burro com um elefante.

Agora, como parece que o caos se instalou, as instituições buscam acertos e ajustes ao que já foi violado.

Claro, sempre com as melhores intenções, mas incapazes de perceberem o verdadeiro sentido da agressão constitucional praticada, abrindo perigoso precedente, ou de resultados juridicamente muito piores que seriam alcançados, caso houvesse a justa reparação pela Justiça da normalidade jurídica, o que, aliás, é função precípua do Poder Judiciário.

Se há irregularidades no processo legislativo, como alegado pelo Presidente da Câmara, e se todos concordam que é no processo político jurídico legislativo que se sanam tais problemas, qual a justificativa para não dar andamento à pauta, votação, debate,  emendas e sanção da LOA?

A busca pelo tal acordo parece como a tentativa de trocar os pneus de um carro que já está com motor fundido.

Emprestamos um trecho da decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pelo Meritíssima Senhora Juíza da 3ª Vara Cível de Belford Roxo, em sede de Mandado de Segurança (0819303-35.2023.8.19.0008) impetrado pelos vereadores da cidade, em caso semelhante ao de Campos dos Goytacazes:

“(…)

O respeito às regras aplicáveis ao processo legislativo deve ser base para atuação dos parlamentares em todas as esferas de poder. O princípio democrático não pode ser violado, a fim de evitar a exclusão de grupos legítimos junto aos Poderes do Estado.

Importante é a atuação do Poder Judiciário, quando provocado, garantido a observância dos regimentos da casa legislativa e da legitimidade da produção de tais normas, tendo como norte a Constituição Federal. 

Logo, a observância das normas constantes de Regimentos Internos do Poder Legislativo Municipal constitui um importante fator de legitimidade do processo de elaboração das leis. 

As condições de participação de diferentes grupos, inclusive minoritários, devem ser protegidas, em respeito às regras de discussão democraticamente postas, salvaguardando a legalidade que vinculará a todos. 

A vontade política se assenta na garantia do processo discursivo, propiciando inclusão de todos os envolvidos, preservando o direito à participação, a legitimidade e legalidade na elaboração do arcabouço jurídico. 

A desconsideração de normas procedimentais tem o escopo de reforçar a maioria, em detrimento ao Princípio Democrático. (…)

Fica então a questão:

Qual é o nome dado à forma de governo onde as leis são feitas ao arrepio e/ou com uso casuístico das regras, com desrespeito à vontade popular outorgada em mandatos representativos pelo voto?

Sim, isso mesmo: Ditadura.

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