E agora Marcelo, o rio transbordou e tudo acabou? Reflexões sobre o “day after” da hecatombe climática do RS

rio transbordado

Por João Anschau

“Fala Marcelo”, pede mais uma vez o locutor. E Marcelo convida novamente os plantadores de trigo para um dia de campo.

“E o que mais Marcelo?”, insiste o extraterrestre apresentador. Marcelo então aproveita e dá spoiler das novidades, novos manejos – entenda-se, agrotóxicos e insiste para que os parceiros não percam a janela de plantio das culturas de inverno.

“Fala Marcelo e o recado final”, mas antes, o acelerado radialista agradece, num verdadeiro gozo, o tempo dedicado a conversar e trazer luz para os ouvintes carentes de “sabedoria”. E Marcelo não se afrouxa e sentencia: “não podemos se entregar pro tempo”.

O relato descrito anteriormente não é ficção. O informe comercial, tratado como entrevista, aconteceu no mesmo dia em que a UFAL divulgou um estudo mostrando o nível de encharcamento do solo no RS.

Indo para o segundo mês do pós-Veneza, o nosso laranja síndico da massa falida fala somente em reconstruir. É música triste de uma nota só. Ele quer nos fazer crer que temos que continuar para manter o mesmo. Nenhum mea culpa, algo que a direita costuma cobrar vorazmente da esquerda, a respeito do acontecido. Ao contrário, o que mais ouvimos são palavras anêmicas que fogem do problema. O nosso comandante parece estar sem bússola e deixa claro em suas manifestações que emergência climática não tem nada de urgente. Ele parece muito com aqueles desprovidos de criatividade que enxergam na bebida alcoólica o único gancho para as suas sofridas composições. Findando cada dia, eu tenho a impressão de que somos governados por pessoas com deficiência cognitiva severa.

Há algumas semanas, provocado por um grupo de jovens a respeito de minhas esperanças quanto ao futuro (futuro?), respondi que eu aposto num triplo: um meteoro para acabar de vez com esta bagaça; a volta dos dinossauros; ou, finalmente, a dupla de ratos Pink e Cérebro conseguindo dominar o planeta, colocando os ratos humanos em seus devidos esgotos.

Não é o pessimismo que aduba os meus dias. A minha resposta é fruto do descrédito. Estamos carentes e essa falta é resultado de outra: lideranças no plural. Nos acostumamos a ficar no aguardo de uma fala, de um gesto ou uma indicação do mesmo de sempre. Terceirizou-se o articular, conquistar e toda e qualquer iniciativa que necessite pôr as mãos na massa e nas maçãs colhidas direto na fonte alimentar natural. Dizem os especialistas que tudo se faz pelas redes, e esse negócio de juntar gente para conversar, ouvir, trocar uma ideia ou começar uma revolução – nem que seja pra dizer que são contra os “comunistas” -, é papo de analógicos. As redes e a pandemia de COVID-19 realmente nos tornaram “melhores”. PS: Para eu ser justo, de acordo com a revista Science, após a passagem do furacão Maria, os macacos de Porto Rico ficaram menos agressivos e mais solidários. Outra vez os irracionais nos dando a letra. 

Um modo todo estranho de indignação faz com que percamos o senso de prioridade e de responsabilidade. Atualmente, somos envolvidos pela teia chamada comoção, arquitetada pela senhora emoção que não costuma dialogar com a razão. Não são apenas os dejetos ou lixo produzido e reproduzido que fazem parte de nossa paisagem cada vez mais concreta e abstrata de qualquer alteração. Nos tornamos o exército de Brancaleone, nos diferenciando dos originais pela falta de talento e de coragem. 

“Admirável Mundo Novo”, do genial e visionário Aldous Huxley, parece ter sido escrito para o agora. Uma sociedade alienada, sob controle e estruturada em valores pré-definidos, distante da realidade e submissa, além de achar normal a padronização em detrimento da pluralidade, parece muito com o “vale a pena ver de novo”. A obra cai como uma luva para definir o contemporâneo céu, sol, sul, terra embarrada, cor desbotada, onde muito do que se planta não cresce e o que mais floresce são as dúvidas e dívidas.

Em alguns locais alagados na capital gaúcha foram encontradas piranhas – sem necessidade de trocadilhos infames – e essa informação passou batida como se fosse normal. Mexemos com a estrutura bem bolada dos demais que habitam essas paragens e as consequências estão aí, agora, também, mordendo os calcanhares dos desatentos. Parafraseando o saudoso Eduardo Galeano, a injustiça climática é como as serpentes e só morde os pés descalços dos periféricos.

Calma, que tem mais. Em Caxias do Sul, o mesmo vereador que destilou toda a sua estupidez – sóbrio e limpo, eu imagino – xenofóbica contra nordestinos, agora, resolveu demonstrar que ignorância ambiental não é fruto apenas do negacionismo. É um fermento que faz crescer o ódio que mira sempre um “inimigo” indefeso e tido como empecilho. As árvores, na cabeça do edil “e”diota, são as responsáveis pelo evento climático que, diferente de seu mandato parlamentar, não tem hora pra acabar. E nós bancamos esse “democrata” quadrúpede ainda não domesticado. Umberto Eco tem razão. Antes, um viva à liberdade de expressão.

E como passamos pelo mês das festas juninas, pipocam pedidos nada envergonhados de senhores sem-vergonha. O setor privado, representado por estruturas que lhes garante zero questionamento da base da pirâmide, quer dinheiro de quem, na visão deles, só atrapalha o “desenvolvimento”. Quando a água invade as camas dos trabalhadores, o Estado é lembrado para acudir… os mega/maxi empresários. E o prêmio “faz a diferença” vai para… os indiferentes com a aflição alheia. Ou como escreveu Oswaldo Montenegro é “muito deleite pra pouca dor”. 

Para além dos ventos, granizo e chuvas, tudo em excesso, temos também a falta de respostas. As consequências – causas são cristalinas apesar da sujeira – que tornaram o Rio Grande do Sul uma grande fazenda não são discutidas. Tá tudo dominado e bloqueado por um discurso de que a palavra de ordem é união e de que agora é hora de reerguer. Refazer quantas vezes? Uma fórmula que gera divisas para os agraciados de sempre e passivos humanitários para o lumpesinato, também conhecidos como buchas de canhão. Essa movimentação feita no modo prende a corrente e arrebenta o que estiver pela frente em nome do “deus” cifrão tem credores que, ao que parece, já mandaram vários recados e todos foram solenemente ignorados ou colocados na gaveta do um dia se vê o que faz. Senhores dos anéis cravejados de sangue inocente, chegou a hora do encontro de contas. E agora? O trator, o machado e a motosserra não podem ser culpados ou puxar uma “cadeia” sozinhos. São instrumentos que, como nós, legitimam novas tragédias. Campanhas de solidariedade são importantes, mas não podemos ficar apenas no doar itens de primeira necessidade, enquanto outros deram, sem consulta prévia, suas vidas.

Os refugiados ambientais não são frutos do acaso ou obra do divino, mas resultado contábil borrado de um modelo de sociedade que deu, dá e continuará dando ruim. Vida que segue, pra esta gente, não é apenas mais uma frase de efeito, mas efeito comportamental do vamos esticar a corda mais um pouquinho e arranjar um local “mais” seguro pra essa indiada até a próxima enxurrada. Deslocamentos humanos serão romantizados ou transformados em histórias de superação com exibição em horário nobre? 

Pode piorar? Sempre. “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra…” passou as divisas do rios Mampituba e Uruguai. A bancada ruralista gaúcha, não satisfeita em testemunhar os desastres ambientais e sociais repetidos, agora quer replicar a nossa desgraça para os outros. Um projeto de lei, desconhecido da imensa maioria, como sempre acontece, infelizmente, pretende dar permissão para acabar com quase 50 milhões de hectares de campos nativos. O relator do absurdo é o deputado tucano Lucas Redecker, nascido em uma das regiões mais atingidas no estado. Nobre representante do poder que emana do povo, vide as áreas de proteção ambiental na volta do Rio Taquari que não chegam a um terço do que já foram um dia. O senhor me faz lembrar a modelo Nana Gouvêa que costumava fazer selfies em locais devastados por alguma tragédia e achava que estava tudo certo registrar e faturar com a desgraça alheia. Recentemente elas frearam o ímpeto coronelês de Arthur Lira e o PL – duplo sentido bem oportuno – do estupro. Quem vai puxar o bridão dos senhores do engenho, acionistas e financiados?

Na hora da tormenta, minha mãe, dona Anita, costuma queimar folhas de palma. O faz, segundo ela, para afastar o mau tempo. José Lutzenberger e o padre jesuíta Pedro Balduíno Rambo foram lembrados, há algumas semanas, também na hora do desespero. Mas, ao que parece, o tempo já abriu, e seus préstimos de sabedoria e conhecimento não serão mais necessários por agora. Vale o mesmo para o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, descoberto pelos pautadores de nossas vidas, como se novidade fosse, após 60 anos de pesquisa, extensão e ensino. O negacionismo não é obra de ‘jair’ apenas. É uma construção simbólica que reza pela cartilha Chacrinha: eu estou aqui para confundir; eu não estou aqui para explicar.

Em alguns meses teremos eleições municipais. Eu estou apostando uma garrafa de vinho produzida sem trabalho escravo que o tema mudanças climáticas receberá o mesmo tratamento dado àquela criança que quer algo e a mãe responde que na volta a gente compra. Por mais que pesquisadores, cientistas, extensionistas, ambientalistas e outros tantos comprometidos com a vida da mãe Terra e seus filhos de todas as espécies batam seus tambores, a triste e covarde melodia da conformidade, da ignorância e da indiferença ditará os passos da maioria. O poder econômico desarma todos os alarmes e conta para isso com o aparato servil e parcial da mídia tradicional, um escudo bem alimentado que faz o trabalho de aquietar mentes e corações. Para além do Município que queremos é oportuno perguntar “que amanhã sua candidatura defende?”

No próximo dia 8 de julho vamos “comemorar” uma década do 7 a 1. Vivemos um grande looping onde derrotas são celebradas e o 20 de setembro guasca não me deixa faltar com a verdade. O senso comum é modulado de tal forma que torna qualquer questionamento um ato de rebeldia. Uma receita básicona e de simples preparo, que prevê subverter a ordem imposta que nos faz acreditar que somos meros passageiros, sem responsabilidades e com o bilhete de partida comprado com destino incerto, é tida como heresia. E na melhor das utopias, faltam pulmões para gritar e apontar o caminho, e no horizonte não aparece, nem que seja, um Dom Quixote para movimentar os moinhos da insurreição.

Tudo se encaminha para que no final não seja a esperança a última a morrer.

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