Ocupação nas terras da falida Usina Sapucaia serviu para mostrar que o espectro da reforma agrária ronda o Norte Fluminense
No Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels colocaram uma frase que até hoje assombra a burguesia mundial: um espectro ronda a Europa, o espectro do Comunismo. Passados pouco menos de 200 anos desde a publicação do “Manifesto”, eu me sinto tentando a adaptar essa frase ao contexto do Norte Fluminense (e especificamente de Campos dos Goytacazes) para algo que poderia seguir as linhas do “um espectro ronda o latifúndio, o espectro do MST e da luta pela reforma agrária”.
A segurança em torno dessa adaptação se dá com base da aliança (nada santa) que foi formada para forçar a retirada de 400 famílias que ocupavam pacificamente a Fazenda Santa Luzia pertencente à massa falida da antiga Usina Sapucaia para exigir o uso de suas terras para a criação de mais um assentamento de reforma agrária.
Motivos para o governo federal fazer cumprir o Artigo 186 da Constituição Federal não faltam, a começar pela dívida milionária que a Sapucaia possui com a União e com os seus trabalhadores. Afinal, se existem pessoas querendo usar as terras produtivamente e existe débito milionária com a União, qual seria o problema de usar as terras da Santa Luzia para fazer cumprir o que está determinado na Constituição Federal?
Eu diria que o maior problema seria o exemplo. É que as usinas falidas em Campos dos Goytacazes possuem um estoque de terras que só não é maior do que o estoque de dívidas com o Estado brasileiro e com seus trabalhadores. Assim, o medo que deve assombrar o sono dos latifundiários é que mais trabalhadores sem terra queiram voltar para a terra para trabalhar com o simples uso de um dispositivo constitucional que só não é usado porque os latifundiários continuam a ter um controle exagerado sobre a política brasileiro, a começar pelo número de assentos na Câmara de Deputados e no Senado Federal.
O fato é que a alta concentração da propriedade da terra está na raiz de todas as injustiças sociais existentes no Brasil. No caso do município de Campos dos Goytacazes, a existência de uma fortíssima concentração da terra anda de braços dados com a injustiça econômica que põe mais da metade das famílias indignas de existência, com a perpetuação da indigência financeira para quase metade da população. Assim, enquanto alguns poucos conseguem viver tranquilamente, a maioria é constrangida a existir em condições indignas na completa miséria.
Por isso, a organização social promovida pelo MST em prol da reforma agrária assombra, ao mesmo tempo em que mobiliza reações rápidas e raivosas. Por razões que eu desconheço, o MST retar seus planos de transformar o Norte Fluminense em outro “Pontal do Paranapanema” como se pensava no final dos anos de 1990. Mas aparentemente, o MST está de volta e disposto a cobrar a realização do que está disposto na Constituição Federal. Se isso se confirmar, eu diria que estamos diante de um cenário interessante e que pode mobilizar grandes contingentes de brasileiros que hoje vivem em áreas esquecidas pelo Estado brasileiro nos diferentes municípios do Norte Fluminense, começando por Campos dos Goytacazes.
E não custa lembrar que no último dia 26 de janeiro se completaram 12 anos desde o assassinato do líder sem terra Cícero Guedes e que até hoje permanece sem que seus mandantes e executores tenham sido punidos pela justiça. De certa forma, é revigorante ver que a memória de Cícero continua impulsionando outros brasileiros a enfrentarem o medo e a repressão em nome da construção de um amplo processo de reforma agrária.
Em entrevista, Stedile, dirigente do MST, dá nota três para política de democratização da terra do governo federal e crítica o baixo investimento nos programas de combate à fome
Foto: Rafael Stedile
Por Tatiana Merlino, para O Joio e o Trigo
Passados 14 meses desde o início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governo “está em dívida” com a Reforma Agrária, afirma, em entrevista ao Joio, o economista João Pedro Stedile, dirigente e fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
É uma vergonha. Nós já estamos há um ano e meio, não avançamos. Desapropriação não avançou. O crédito para os assentados não avançou, nem o Pronera [Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária]”, critica, durante conversa em uma tarde fria de São Paulo, na Secretaria Nacional do movimento.
Apoiador de Lula, o MST atuou fortemente para a eleição do petista em 2022. Stedile reforça a necessidade de seguir na defesa do presidente frente aos “seus inimigos” que, segundo ele, são as multinacionais, o capital financeiro, o latifúndio “predador e parte do agronegócio.
E nós queremos defendê-lo frente aos seus inimigos. Agora, o governo como um todo está aquém da nossa expectativa, da classe trabalhadora em geral”.
Na entrevista, Stedile conta que a principal conquista do MST, que completou 40 anos de vida em janeiro deste ano, é dar dignidade aos Sem Terra. Explica a mudança programática do movimento, que nasceu defendendo uma “reforma agrária clássica” e hoje defende uma “Reforma Agrária Popular”, e o que acredita serem os três modelos de agricultura existentes no país hoje: “um dos trabalhadores e dois do capital”.
O economista afirma, também, que a questão entre a agricultura familiar e o agronegócio, não é uma incompatibilidade de tamanho e propriedades, mas sim uma incompatibilidade de modelo.
Lamentavelmente, pela natureza do atual governo do Lula, de composição de classe no governo, não tem consciência dessas diferenças, dos interesses e das contradições. Já perdi a paciência de ouvir ministro dizer que não há incompatibilidade entre a agricultura familiar e o agronegócio. O agronegócio usando agrotóxico é incompatível com o vizinho de dez hectares que não usa, porque ele vai contaminar, vai matar a biodiversidade”, explica.
Confira a entrevista na íntegra:
Você pode fazer um balanço dos 40 anos do MST e das suas principais conquistas: para além dos números de assentados, cooperativas, agroindústrias, poderia falar sobre as conquistas simbólicas, ideológicas e de educação?
É muito difícil fazer um balanço que seja abrangente. Eu não me atreveria a dar essa manchete. Eu acho que o principal aspecto é que nós conseguimos construir um movimento popular, de camponeses muito pobres. Que, com a sua luta, conquistaram a dignidade. O sem-terra, depois que entra no MST, começa a caminhar com a cabeça erguida. E caminhar. O sem terra peão, o sem terra assalariado, o sem terra meeiro é um servo. Ele sempre está subjugado, não só pela exploração do seu trabalho, mas também pelas relações sociais.
Então, o MST, eu acho que ele recuperou uma parcela muito grande da população brasileira do campo que, em geral [são pessoas], que sempre foram excluídas, que são herdeiras dos 400 anos de escravidão e são herdeiros de um campesinato que não conseguiu terra. Então, se fosse para resumir numa só palavra, eu diria que o MST, nesses 40 anos, recuperou a dignidade dessas pessoas.
O segundo aspecto – que também nós valorizamos muito – é que o movimento sempre trabalhou as relações sociais e a família. Nós não somos um movimento de homens adultos. Nós somos o movimento de todos. Desde o início do MST, as mulheres participaram, os mais idosos, as crianças, os jovens. Então, as formas como nós atuamos levaram a que toda a família se incorporasse em alguma atividade. Isso é muito importante porque vai mudando as relações sociais na própria família. E também nós incorporamos no nosso modus operandi a valorização de aspectos culturais e da culinária e das músicas que, em geral, pela hegemonia urbana da televisão, sempre eram relegados. Para quem vive no campo, então, foi como um ressurgimento, uma revalorização do que é a cultura no campo, desde a comida, a música, os seus saberes e a própria religiosidade. E digo como autocrítica: a esquerda nunca deu muita bola para a religiosidade. Como nós somos um movimento de camponeses, que teve desde o início muita influência da Teologia da Libertação, isso nos permitiu incorporar o respeito pela fé das pessoas, por suas práticas religiosas.
Também tivemos muitos avanços na economia. Deu para perceber que não bastava conquistar terra para sair da pobreza. Desde o início, estimulamos a organização das cooperativas, a organização das agroindústrias e, ao longo dos 40 anos, fomos também evoluindo para uma visão mais ampla da função social da agricultura. Na elaboração atual, nós consideramos fundamental, produzir alimentos saudáveis. Essa é a função da agricultura. Portanto, extrapola os meus interesses, os da minha família, os da minha comunidade ou do meu assentamento. A minha missão no mundo é produzir alimentos para os outros. E alimentos saudáveis que preservem a saúde das pessoas. E, portanto, nós combatemos desde sempre o uso de agrotóxicos. Mais recentemente, também incorporamos a visão de que é importante defender a natureza, porque o ser humano é parte dessa natureza. A sua saúde, a sua vida, as suas relações, dependem dessa interação com a natureza, sobretudo no meio rural. De início, a própria natureza nos ajudou a nos conscientizar, em função das mudanças climáticas, das tragédias que vêm acontecendo como contradições, das próprias agressões que o capital faz ao meio ambiente.
Evidentemente que, durante os 40 anos, também cometemos muitos erros e tivemos muitas dificuldades de organizá-lo. [Erros] que são sempre evidenciados pelos nossos inimigos, pelos latifundiários, pela direita que só criticam o MST. Mas nós não nos preocupamos com a crítica. Quando ela vem de aliados, nós procuramos entender e quando ela vem dos inimigos, nos dão a certeza que nós estamos no caminho certo. Porque nós temos interesses antagônicos entre a burguesia, o latifúndio e os trabalhadores.
3° Feira Estadual da Reforma Agrária (BA). Foto: Cadu/MST
Considerando que o Brasil perdeu oportunidades de fazer a reforma agrária e de a conjuntura ser tão adversa para o tema nesses últimos anos, a que você atribui o fato de o MST continuar sendo um movimento relevante?
É verdade que nunca houve reforma agrária no Brasil. E que os muitos projetos ou programas da reforma agrária que foram apresentados não se viabilizaram ou mesmo foram derrotados. Uma das causas é porque o programa de reforma agrária não pode ser separado de um projeto de país. Ele tem que fazer parte das mudanças gerais da sociedade. É por isso que, na minha opinião, o tempo histórico que chegamos mais próximo de fazer uma reforma agrária foi em 62 ou 64, quando a sociedade em crise do capitalismo industrial começou a debater um projeto de país, um projeto para o Brasil. E a forma de debater esse projeto de Brasil foi naquelas propostas de reforma de base, que abarcavam toda a vida socioeconômica do povo brasileiro. E, entre elas, tínhamos a reforma agrária, que não era uma bandeira só política ou de propaganda. Naquele período, nós fomos agraciados pela sabedoria do Celso Furtado, que elaborou um projeto de reforma agrária que foi histórico – e é até hoje, no meu modo de ver. Foi o mais radical do ponto de vista de mudanças que se propõem. Infelizmente, ele não se viabilizou por essa aliança empresarial-militar que os americanos projetaram para o Brasil. E as reformas não foram viabilizadas, nem a reforma agrária. E nós tivemos 20 anos de ditadura militar que recolocou a economia brasileira como uma mera colônia ou uma economia dependente do capital estrangeiro, mas sobretudo dos interesses dos Estados Unidos. Bem, mesmo em 2002, quando nós ganhamos eleições com Lula ou com a esquerda, a nossa vitória foi muito mais uma reação da população frente aos problemas que o neoliberalismo tinha provocado, do governo Fernando Henrique Cardoso e do [Fernando] Collor do que um projeto de país. O projeto de país que nós tínhamos, onde entrava a reforma agrária, foi em 89. Aí sim, aquele famoso programa democrático-popular que o Lula defendeu na campanha. Ele incluía a reforma agrária. E vinha de um processo de mobilização de massa, mas nós fomos derrotados pela conjuntura internacional. Derrotados pela força que a burguesia ainda tinha nos meios de comunicação e pelo poder econômico da burguesia.
Então, quando nós ganhamos eleição, em 2002, já era em outra circunstância, não havia um projeto de país e não havia o reascenso do movimento de massas, de maneira que o Lula se dedicou a resolver conflitos e o ritmo da reforma agrária. Desde sempre por não ter um programa de país e um projeto de reforma agrária, ele só avançou no tempo da pressão popular, das ocupações, das marchas. E, agora, apesar dessas derrotas como projeto de país, com o projeto de reforma agrária, que é a essência da tua pergunta, por que nós resistimos. É porque a causa é justa. E porque há uma necessidade socioeconômica que é real. Ainda há milhões de trabalhadores que vivem no interior ou trabalham na agricultura para o latifúndio, para o agronegócio, e ter autonomia sobre a terra é ainda uma solução.
Em termos conceituais, com a mudança do cenário no campo no Brasil vocês tiveram uma mudança programática. O que é para o MST a reforma agrária clássica, de inspiração mexicana, e o que é a reforma agrária popular, que hoje vocês defendem?
No senso comum das pessoas, ou mesmo da academia brasileira que nunca se dedicou a estudar a reforma agrária, ela é um genérico que serve para tudo. No entanto, na história recente da humanidade, desde quando começou a se utilizar essa expressão, houve muitos tipos de reforma agrária, de acordo com a luta de classes, com a história de cada país. Durante a pandemia, acabei me dedicando a um projeto que já tinha há anos na cabeça, estimulado por amigos intelectuais orgânicos de movimentos camponeses do mundo inteiro. Organizei aquela coletânea “Experiências históricas de reforma agrária no mundo” que sistematiza os vários tipos de reforma agrária.
Aqui no Brasil, a elaboração teórica mais precisa foi a do Celso Furtado, que era ainda uma proposta de reforma agrária clássica. Ela se propõe a democratizar a propriedade da terra, a eliminar o latifúndio, a transformar os camponeses em produtores de mercadorias para o mercado interno e, ao mesmo tempo, consumidores de mercadorias da indústria para que eles melhorem de vida, porém comprando bens industriais: máquina de lavar, televisão, moto, carro, etc. Então, a concepção da reforma agrária clássica é uma reforma agrária desenvolvimentista e conjugada com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Porém, para ela se viabilizar politicamente – já que ela é uma ação do Estado –, depende de uma aliança da burguesia industrial com o campesinato. Essa aliança nunca houve aqui no Brasil. Não que o campesinato não queira. É que a burguesia industrial brasileira não quis, porque ela sempre foi subordinada ao capital estrangeiro. Ela nunca pensou a nação como um projeto desenvolvimentista, a burguesia brasileira nunca foi nacionalista.
Nós nunca tivemos uma burguesia nacional?
Nós nunca tivemos uma burguesia nacional, apesar de ela ser brasileira. Isso quem nos ajudou a compreender foi o Florestan Fernandes. E então nos faltou a força de uma burguesia nacionalista para implementar a reforma agrária. Mas nós, quando nascemos como o MST, com a redemocratização do país, o nosso programa era de uma reforma agrária clássica, com a ideia de ‘vamos enfrentar o latifúndio e vamos desenvolver as forças produtivas no interior, aumentar a produção, comprar trator, se desenvolver’. Com isso, a nossa turma sairia da pobreza.
Com o passar dos anos, nós fomos percebendo que isso não era suficiente. Então, aquele ideário que marcou o campesinato em toda a América Latina – e, como você bem disse, teve origem na influência do Emiliano Zapata, quando ele resumiu a proposta de reforma agrária mexicana, que nem tinha o nome de reforma agrária, eles chamaram de Plan D’Ayalla – era terra para quem nela trabalha. Portanto, era uma visão bem camponesa. Nem sequer era ainda a reforma agrária clássica. O MST, quando nasceu, fazia esse misto entre a visão mexicana, mas nós nos demos conta que não tinha viabilidade nem econômica nem política no Brasil. Tanto que ela não se realizou, apesar da crise da década de 1960. Fomos amadurecendo, debatendo e, com base na prática, nas contradições reais que fomos vivendo, com base no estudo das experiências históricas que nós chegamos a essa formulação nova de uma reforma agrária popular.
Ela começou a ser gestada no movimento lá por 2010, e daí a formulação ainda embrionária do Congresso do MST de 2014 já vai na direção de uma reforma agrária popular. E a essência da reforma agrária popular é que ela coloca no centro não mais o trabalho do camponês, mas a produção de alimentos para toda a sociedade. Coloca no centro o respeito à natureza, o desenvolvimento de agroindústrias, mas na forma cooperativa. E evidentemente que, para ela se realizar de uma forma universal no Brasil, ela teria que conjugar um governo popular e um movimento camponês forte – e essas condições ainda não se deram. Então, por isso que, apesar de ser uma formulação teórica, desde 2014 as condições objetivas ainda não se realizaram. Porque uma reforma agrária popular depende dessa conjugação.
Em vez de burguesia industrial, agora é um governo popular que está interessado em resolver o problema da fome, da pobreza, da desigualdade que tem na sociedade, no Brasil, em qualquer parte. E, ao mesmo tempo, ela se realiza não por vontade só do governo, mas ela precisa de movimentos camponeses muito fortes – não só o MST, mas outros setores do campesinato. E é nisso que ela se diferencia da clássica, porque a reforma agrária popular não é apenas uma reforma camponesa, não é só para resolver o problema de pobreza do sem-terra. É uma reforma agrária que pensa a sociedade, que pensa a nação e, por isso, ela tem que se preocupar em resolver o problema de todo o povo – daí o nome popular.
“É uma reforma agrária que pensa a sociedade, que pensa a nação e, por isso, ela tem que se preocupar em resolver o problema de todo o povo – daí o nome popular”.
Você afirma que há três modelos de agricultura. O que chama de latifúndio predador improdutivo, o agronegócio e a agricultura familiar. Gostaria de entender quem consideram como inimigo. Porque antes se falava só no latifúndio improdutivo, mas o agronegócio pode ser altamente produtivo…
É verdade. Mesmo na esquerda ou nos movimentos camponeses, historicamente só aparecia a grande propriedade e o latifúndio como, digamos, um fantasma de classe, ideológico. Porém, a realidade do Brasil foi evoluindo e nós chegamos hoje, então, a três modelos que atuam na agricultura: dois do capital e um dos trabalhadores. A denominação desses modelos é ainda um exercício político. A academia brasileira nunca se debruçou sobre isso. Nós, então, de forma militante, estamos adotando essas denominações. Primeiro, há uma forma de explorar a agricultura brasileira, que é o chamado latifúndio predador, que são as grandes propriedades do latifúndio, mas que só se dedica a acumular capital, se apropriando de forma privada dos bens da natureza. Ele não se preocupa com o desenvolvimento capitalista das forças produtivas. Não contrata gente, mas eles enriquecem naquilo que os clássicos [Karl] Marx, Rosa Luxemburgo explicaram como acumulação primitiva. Então há o setor que nós classificamos como latifúndio predador no Brasil, de grandes proprietários que vão lá para a natureza e se apropriam. Em geral, eles atuam na fronteira agrícola. Mas a fronteira agrícola não é só lá na Amazônia, nós temos em todos os Estados, ou seja, onde estão os bens da natureza em cada estado.
Por exemplo, aqui em São Paulo, quando o governador Tarcísio [de Freitas] entrega terra pública praticamente de graça, legalizando terras griladas no Pontal [do Paranapanema], ele está legitimando esse latifúndio predador que vai enriquecer com terras públicas aqui. Ou quando nós pegamos a Nestlé, que se apropria de água do lençol freático, ela está se apropriando de um bem da natureza que devia ser de todo mundo, e acumula um lucro extraordinário. Depois, nós temos o modelo do agronegócio, cantado em verso e prosa todas as noites no Jornal Nacional. Quem financia a propaganda do “agro é pop” é banco e empresa automobilística estrangeira. Esse é o modelo do agronegócio e há uma grande aliança dos bancos com as empresas transnacionais, que aplicam na grande propriedade e também na média propriedade.
Então, nós temos hoje 30 mil fazendeiros acima de mil hectares que adotam o agronegócio. E nós temos também uns 300 mil fazendeiros pequenos e médios, de 100 a mil hectares, que também adotam o modelo do agronegócio. O cara só se especializa num produto, faz uso intensivo de agrotóxico, o uso de sementes transgênicas que ele compra de uma multinacional lá, o uso de mecanização intensiva, que também ele compra de uma multinacional e ele produz commodities para o mercado externo.
Então, é um modelo extemporâneo às necessidades da população. Aí o pessoal fica dizendo que a economia brasileira depende do agronegócio. Tenha a santa paciência! É a economia brasileira, o Estado brasileiro que financia o agronegócio. E quem ganha dinheiro?
Esses fazendeiros, o poder político deles é tão grande que eles não pagam nada de imposto. Nós, nos nossos exercícios teóricos, pegamos o caso do milho e o caso da soja no agronegócio. Porque a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] faz o custo de produção todos os anos por região. Se tu pegar uma média, da soja, por exemplo, 68% da renda produzida volta para as empresas transnacionais que fornecem os insumos, que são os que mais ganham.
Recentemente, veio a público que o capital acessado pelo agronegócio no mercado financeiro chega próximo a R$ 1 trilhão. Então esse dinheiro do Plano Safra é uma merreca. Eles não dependem mais dele, não. Mas revela a total dependência do agronegócio com o capital financeiro, porque daí as empresas adiantam os insumos, adiantam a semente e depois cobram a renda em produtos.
E o terceiro modelo?
O terceiro modelo é o da agricultura familiar, que remonta à nossa reforma agrária popular. A agricultura familiar, que é o modelo dos trabalhadores e não do capital, não é um modelo para acumular capital. E evidentemente que nesse modelo a classe social mais interessada é o campesinato, não é? Então, a agricultura familiar é o modelo que os camponeses se dedicam e que priorizam a produção de alimentos para o mercado interno. O agronegócio produz cinco produtos, cinco commodities: soja, milho, algodão, cana de açúcar e a pecuária extensiva. A agricultura familiar produz 367 tipos diferentes de alimentos. Qual é a biodiversidade que tem no Brasil? Esses 367 tipos de alimentos a Conab chegou a comprar no mandato do Lula, que agora está ainda patinando. Então, são produtos reais – são mercadorias, se quiser – que vão para o mercado interno. E dada a diversidade dos nossos biomas e o nosso tamanho, faz com que nós tenhamos uma culinária tão rica. E os agricultores em geral usam a sua própria semente. E ele sabe que tem que respeitar a natureza, que se ele derrubar, se não respeitar as fontes de água, não vai produzir. Então, a agricultura familiar é um modelo muito respeitoso, que procura produzir em equilíbrio com a natureza. E hoje ela dá emprego para 16 milhões de trabalhadores da forma familiar. Já o agronegócio emprega 4 milhões, sendo 2 milhões temporários, que trabalham três ou quatro meses na colheita ou no plantio. E o latifúndio praticamente não emprega ninguém, [tem] ao redor de uns 20 mil fazendeiros que seriam classificados como latifundiários predatórios.
Então esse é o cenário do Brasil. Lamentavelmente, a academia brasileira não se dedica a estudar essas diferenças. E, lamentavelmente, pela natureza do atual governo do Lula, de composição de classe no governo, não tem consciência dessas diferenças, dos interesses e das contradições. Então eu estou cansado, já perdi a paciência de ouvir ministro dizer que não há incompatibilidade entre a agricultura familiar e o agronegócio. Tu pode conviver na sociedade brasileira. O sujeito tem mil hectares e o agricultor familiar tem dez hectares. Não é essa incompatibilidade, a incompatibilidade é no modelo. O agronegócio usando agrotóxico é incompatível com o vizinho de dez hectares que não usa, porque ele vai contaminar, vai matar a biodiversidade. Então, a incompatibilidade é de interesses. O agronegócio quer commodities, quer lucro. O agricultor familiar quer alimentos. E há uma incompatibilidade do modelo tecnológico que não pode conviver. Não há como. Então, são regras da natureza que, infelizmente, a maioria dos ministros não têm consciência e não têm conhecimento dessa realidade. Então, quando vão defender políticas públicas misturam tudo.
Em janeiro de 2024, o MST completou 40 anos de vida. Foto: Juliana Adriano/MST
Você chama a atenção para o fato de que dentro do agronegócio, existe um agro que seria mais inteligente, o agro que está produzindo de forma agroecológica. Considerando que ao produzir de forma agroecológica esse agro visa o lucro e não desapropriação de terra e nem a discussão sobre produção de alimentos, você acha que é possível uma aliança tática com eles?
Primeiro, vamos caracterizar quem são eles. É difícil quantificar, até porque são poucos: 30 mil fazendeiros com mais de mil hectares; depois, tem aquela outra parcela do agronegocinho, que são 300 mil. É muito difícil quantificar quantos deles se separaram.
Mas há uma divisão política e ideológica dentro deles – e uma parte apoiou o Lula, [o] que resultou no ministro [da agricultura Carlos] Fávaro. Ele é legítimo representante dessa parcela do agronegócio. Agora, por que eles migraram? Não é pelos belos olhos do Lula. E, sim, porque as contradições econômicas, agronômicas do modelo do agronegócio começaram causar prejuízo. E os mais espertos, como o Fávaro, o Blairo Maggi e outros, se deram conta. Esse modelo não tem futuro do ponto de vista agronômico e econômico. Mas eles se dão conta que 68% da renda vai para as multinacionais. Eles só ficam com 13%. Então, há uma contradição real aí que os mais espertos se deram conta. Então tenho que repartir, então aumenta o tamanho da área. Eu comecei com 10 mil hectares, vou para 11 ou para 12 mil, até chegar ao Blairo Maggi, com 200 mil hectares.
Eu vou te dar um exemplo: toda laranja aqui de São Paulo é monocultivo do agronegócio. Não é um setor tão importante para a economia. Por isso que não está entre os cinco [mais produzidos no Brasil], até porque está muito concentrada aqui São Paulo e Sul de Minas. A laranja, há dois, três anos teve um prejuízo enorme, mas eles perderam dinheiro na safra. Sabe por quê? Porque faltou chuva. E por é que faltou aquela chuva normal? Porque os outros do agronegócio lá na Amazônia, lá no Mato Grosso, lá no Goiás, desmataram e afetaram o regime de chuvas que trouxe como consequência prejuízo aqui de São Paulo. Eles começam a analisar. Então, agora eles estão procurando conceitos. Leio com frequência o Valor Econômico,por exemplo, que é o jornal deles. Que agora precisamos de uma agricultura regenerativa. Essa palavra é nova, regenerar o quê? Mas é uma fantasia que eles estão criando para tentar ajustar o modelo do agronegócio a essas contradições.
Bom, é possível uma aliança do campesinato com esse setor que quer migrar? É possível. A nossa sorte do Brasil é que do ponto de vista da distribuição de terra, há muita terra. Então, o que nós dizemos, inclusive no discurso político para a sociedade? Vamos começar pelo latifúndio predador, pelas maiores propriedades que não produzem, desapropriando esses. Com isso, tu já incorpora milhões de trabalhadores e com aquele agronegócio que quer migrar para a agroecologia, que quer produzir alimentos saudáveis, sejam bem-vindos. Não é uma aliança por conta do tamanho da propriedade, a aliança é pelo modelo. Se eles fizerem autocrítica e virem para um outro modelo que produz alimentos saudáveis, que não agrida a natureza, nós podemos fazer muitas coisas em comum.
Com o modelo tradicional, há uma incompatibilidade. Por isso que nós debatemos com os ministros. Isso é incompatível. Não é porque eu tenho raiva ou não. É porque é a realidade. Você não pode achar que mil hectares com agrotóxico, semente transgênica, com máquina, sem nenhum trabalhador, tem nada que ver com o vizinho de dez hectares. São dois modelos incompatíveis, eles não conseguem conviver.
Eu queria pedir para você falar um pouco do governo Lula. Há dois meses, em entrevista ao programa Tutaméia, você deu nota sete para o governo Lula e cinco para o ministro do Desenvolvimento Agrário Paulo Teixeira. Depois disso, teve o anúncio do programa federal de reforma agrária “Terra de Gente”, que define prateleiras de terras e você até brincou que faltavam os pregos, madeiras. Queria pedir para você comentar o programa e falar se mantém as notas.
O governo Lula foi eleito por nós e temos que defendê-lo frente aos seus inimigos. Os inimigos do governo Lula são as multinacionais e o capital financeiro. O latifúndio predador e parte do agronegócio. Eles são os inimigos do Lula. Agora, o governo como um todo está aquém da nossa expectativa, da classe trabalhadora em geral. Por quê? Primeiro, é um governo que entra num Estado dilapidado. A rigor, desde o segundo mandato de Dilma [Rousseff] para cá, toda a política da burguesia que controlou o Estado foi reduzir a Estado mínimo. Tanto tirando direitos dos trabalhadores, quanto reduzindo a máquina pública.
Em dez anos, agora que vão fazer um concurso. Se tu for olhar as necessidades que tem para o Incra, vão dar 700 funcionários. O Incra já teve 12 mil funcionários na época da ditadura, agora tem 4 mil – e mil deles se aposentando. Então, fazer um concurso para 700, é enxugar gelo.
O governo Lula tem esse problema da herança maldita que recebeu. Tem o problema da composição, que é um governo onde a Frente Ampla que está presente conseguiu derrotar o Bolsonaro – e que foi muito importante. Mas ele está com dificuldades de implementar políticas públicas para resolver os problemas da população. Por isso que não decola o aumento da popularidade. Ao contrário, está diminuindo. Qual é a razão? É porque não está chegando a política pública para resolver os problemas dos trabalhadores.
No campo, as nossas críticas eu acho que até são amenas. Eu não estou mais na direção do movimento, então eu tenho que me cuidar para não substituir os verdadeiros porta-vozes que o movimento tem. Mas o governo não está fazendo nada na reforma agrária. É uma vergonha. Nós já estamos há um ano e meio, não avançamos. Desapropriação não avançou. O crédito para os assentados não avançou, nem o Pronera. O Pronera é o negócio mais civilizatório que qualquer governo de direita pode fazer porque é viabilizar o acesso dos jovens camponeses à universidade. Então é uma vergonha. Não pode dizer que falta dinheiro. Então, se antes eu dei [nota] cinco porque era amigo do Paulo Teixeira, agora para o programa de reforma agrária, eu dou [nota] três.
Para essa prateleira?
Ou para tudo isso aí, porque é uma vergonha o que está acontecendo. Virou um governo de eventos e redes sociais. Isso não resolve o problema. O povão quer ver problema resolvido tanto na periferia da cidade quanto no meio rural.
E em relação às políticas de combate à fome, como é que você está vendo as políticas do governo Lula?
É uma merreca. A insegurança alimentar, os níveis de pobreza nas cidades estão a olho nu. São Paulo com 70 mil pessoas morando na rua, isso nunca tinha acontecido. Então, a fome e as necessidades do povo são gritantes. E qual é a saída para isso? Também não é nenhuma novidade, nem é coisa do MST. Do lado do consumo, o Bolsa Família, a emergência. Mas não é a solução. A solução é emprego e renda. Uma medida mais perene é a reforma agrária, porque se pega áreas improdutivas e começa a produzir. Nós, inclusive, defendemos que as áreas a serem desapropriadas daqui para diante ou comprados tem que ser perto da cidade, para o alimento vir rápido para a cidade, mais barato e em melhores condições. A Amazônia é a fronteira agrícola. Tem que deixá-la intocável. As desapropriações têm que ser perto da cidade para o problema da produção de alimentos. Mas o principal instrumento que o governo tem – e é fruto da experiência histórica – é o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Então, o PAA de antigamente, no segundo mandato do Lula, chegou a administrar R$ 2 bilhões. Se tu corrigir a inflação daria R$ 5 bilhões agora.
Então, para de fato atuar no mercado e fornecer comida barata, tem que ter bilhões no PAA. E isso o governo não está fazendo no primeiro ano. Tá bom, reativou o programa, que já é uma coisa boa. Botou lá R$ 300 milhões, mas não dá pra nada: 44 mil famílias de agricultores familiares tiveram acesso ao PAA; nós somos 4 milhões. Então o PAA tem que chegar aos 4 milhões. Tudo o que se produzir, eu vou comprar e vou comprar a preço justo. Então espero que alguém do governo leia essa entrevista.
O PAA é fundamental, tem que botar bilhões. E se não botar agora, vai botar depois, como aconteceu com o Rio Grande do Sul. O Rio Grande vai custar R$ 40 bilhões para a sociedade brasileira. Se nós tivéssemos estimulado uma agricultura familiar lá, em vez da monocultura de soja, não teríamos chegado a isso. E assim pode reproduzir em outros Estados.
Há dez anos atrás você falou que o governo Dilma era bundão em relação à reforma agrária. O governo Lula também é bundão?
Essa é uma expressão meio pejorativa. O segundo mandato da Dilma não fez nada. O governo dela não fez nada da reforma agrária. Agora eu repito que o governo está em dívida. Está aí há um ano e meio e não entregou nada. Não estou culpando a figura do presidente. Eu estou culpando o conjunto do governo que não está atuando e os problemas vão aumentando. E a base começa a reclamar e diz: “Nós lutamos quatro anos para derrotar o Bolsonaro.”
Para além da desapropriação de terras, o que o MST precisa para aumentar sua produção de alimentos?
A agricultura familiar enfrenta muitos desafios para o futuro. A agroecologia exige mais mão de obra, exige sementes crioulas. Mas para essa agroecologia chegar nos 4 milhões de agricultores familiares e produzir muita comida para todo mundo, tem que produzirem escala. Como é que se produz em escala em dez hectares?
Os dois grandes desafios que nós temos são máquinas agrícolas para camponês e fertilizantes orgânicos. E isso não está resolvido. Por isso que o MST está fazendo uma parceria com a China, para ver se nós trazemos a tecnologia que os chineses têm, porque eles já adotaram, sobretudo nos últimos 30 anos. Então, o grande desafio que nós temos nesse próximo período, e não é o desafio só do governo, é o desafio das forças produtivas. Nós temos que colocar fábrica de máquina para camponês.
Essa parceria com a China é para a produção de fertilizante orgânico?
As duas coisas. Os chineses desenvolveram uma tecnologia de fertilizante orgânico, que é assim: tu pega a matéria orgânica que tem na cidade, os restos da nossa comida, do restaurante ou de uma feira ou do supermercado. A compostagem pelas forças da natureza leva um ano, um ano e meio para virar adubo. Os chineses descobriram em laboratório como acelerar as bactérias que transformam a matéria orgânica. Então eles conseguem em 12 dias fazer o que a natureza faz em um ano e meio. Isso resolve o problema do aterro sanitário e produz fertilizante. E os chineses estão dispostos a passar essa tecnologia pra nós.
E as máquinas nós estamos testando. A primeira chegou em novembro de 2023, e testamos no arroz do Rio Grande do Norte, que coincidiu com a safra e agora levamos para o Maranhão. É uma maravilha. O camponês do Maranhão deixou de plantar arroz, porque não tem quem colha. Para colher a mão o cara fica louco, morre. E é uma maquininha pequenininha. Nós queremos trazer a fábrica. Inclusive, o próprio governo do Maranhão está disposto a entrar nessa parceria. Tem pelo menos umas dez máquinas que vão ser muito úteis para nós. Então, aos nossos olhos, agora é trazer essa tecnologia, vai ser uma revolução para aumentar a escala da agroecologia e da produção de alimentos saudáveis.
Assentado maranhense durante treinamento com equipe chinesa em Apodi (RN). Foto: Arquivo Pessoal/MST
Nesses 40 anos de MST, o que de ideias você, pessoalmente, deixou para trás e o que você incorporou de novo? Você continua a ser um católico, corinthiano e socialista?
Mais que católico eu acho que sou é cristão porque eu acredito nas ideias do Evangelho. As igrejas em geral são uma porcaria, elas viram um instrumento de poder, que não tem nada que ver com a tua fé. Para mim, para acreditar numa coisa eu não preciso de uma igreja.
E como eu disse na primeira pergunta, é difícil fazer um balanço mais preciso. Eu acho que nós poderíamos ter botado mais energia na formação de militantes. O número de escolas que nós temos ainda é pouco, nós poderíamos ter botado mais energia no Pronera. Seis mil alunos para o Brasil é pouco. Tinha que ser um programa, botar cem, 200 mil jovens que moram nos assentamentos, com direito a entrar na universidade. Acho que nós demoramos também em adotar a agroecologia. No início, naquela ideia produtivista da reforma agrária clássica, achávamos que bastava ter trator e a agroindústria já resolvia. Não resolve.
E eu lamento que haja pouca elaboração teórica sobre a defesa da natureza, sobre a ecologia. Há poucos quadros a nível mundial que contribuem para isso. Porque nós temos poucos quadros nessa área de defesa da natureza e defesa da agroecologia, com conhecimento científico e com esse olhar classista.
“Vence o discurso de que vale tudo para produzir mais soja, enquanto o povo passa fome na fila do osso”, enfatiza Alan Tygel, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
Por Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
Por 301 a 150, a Câmara dos Deputados aprovou o Pacote do Veneno (PL 6299/2002), na noite desta Por 301 a 150, a Câmara dos Deputados aprovou o Pacote do Veneno (PL 6299/2002), na noite desta quarta-feira (09), em menos de 4 horas de debate entre a aprovação do pedido de urgência e a votação do projeto de lei. Sem participação popular, o projeto agora segue para apreciação pelo Senado.
O projeto flexibiliza ainda mais o uso de agrotóxicos no país e substitui o atual marco legal (Lei 7.802), vigente desde 1989. Com violação a diversos artigos da Constituição e acordos e tratados que o Brasil ratificou, o projeto prevê a liberação de agrotóxicos cancerígenos; maior poder ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), e desautorização da Anvisa e Ibama; e abre espaço para uma “indústria” de Registros Temporários.
A aprovação do PL na Câmara marca um retrocesso histórico, diante do contexto de crise econômica e de crescimento da fome pelo qual o Brasil atravessa. Mais de 116,8 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, organizado pela Rede PENSSAN.
Para Alan Tygel, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a aprovação do Pacote do Veneno é “uma verdadeira derrota civilizatória”. E completa: “Num momento em que o mundo está buscando menos poluição, menor uso de recursos naturais, menos contaminação e emissões de produtos poluentes e tóxicos, o que fazemos aqui? O oposto: libera geral para os agrotóxicos. Vemos um grupo de supostos representantes da população decidindo algo completamente oposto ao verdadeiro desejo da sociedade. Além disso, vence o discurso de que vale tudo para produzir mais soja, enquanto o povo passa fome na fila do osso. Somos os campeões da soja e da fome. A quem interessa isso?”, questiona Tygel.
A posição da maioria das e dos parlamentares ignora dezenas instituições científicas públicas, órgãos técnicos, entidades representantes do Sistema Público de Saúde, e de organizações da sociedade civil, que se manifestaram contra o PL 6299 por meio de notas públicas ao longo dos últimos dois anos. Entre elas estão a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto Nacional do Câncer (INCA), Organização das Nações Unidas (ONU), Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e do Trabalho.
Karen Friedrich, pesquisadora da Fiocruz e membro GT Saúde e Ambiente da Abrasco, afirma que as modificações previstas no PL permitirão a liberação de agrotóxicos ainda mais danosos sejam autorizados no Brasil. “Agrotóxicos com maior risco de câncer, de problemas reprodutivos e hormonais e malformações em bebês terão mais facilidade para serem registrados. Os danos são imprevisíveis, para quem mora próximo das lavouras ou de indústrias fabricantes e principalmente para quem trabalha nesses locais”.
Para a pesquisadora, além das graves consequências diante da aprovação do Projeto de Lei, se somam a um cenário de desmonte das políticas de agroecologia, desestruturação dos órgãos de assistência técnica, fiscalização e vigilância em saúde. “Seguiremos a luta no Senado, e por todos os meios possíveis para barrar este retrocesso. Não vamos desistir de construir um Brasil soberano, agroecológico, e livre de agrotóxicos e transgênicos”, garante o porta-voz da Campanha Contra os Agrotóxicos. A plataforma abaixo-assinado “Chega de Agrotóxicos” soma mais de 1,7 milhão de apoios, e segue aberta a adesões.
Modernização às avessas
O PL avança em um contexto de aumento recorde de liberação de agrotóxicos durante o governo Bolsonaro, parte deles extremamente tóxicos e muitos proibidos na União Europeia. Foram mais de 1.500 novos produtos liberados desde o início da gestão, 641 apenas em 2021.
Nilto Tatto, deputado federal pelo PT-SP, enfatizou a ineficácia do aumento do uso de veneno na agricultura: “Depois de liberado mais de 1500 agrotóxicos, o curto prazo para a produção de agrotóxicos continuar aumentando”.
O parlamentar questiona quem, de fato, se beneficia do avanço do PL: “Eu pergunto para os liberais que querem aprovar:, vocês querem atender aos interesses do povo brasileiro ou das grandes corporações e dos grandes latifúndios, que é quem ganha dinheiro com a agricultura brasileira?” São esses grandes produtores que se apropriam de 60% do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] e utilizam na produção de soja para exportação, e não para a produção de alimentos”. Os produtores e distribuidores de veneno receberam cerca de R$ 4,2 bilhões em incentivos fiscais em 2021, por meio da Lei Kandir, de 1996.
O pedido de urgência para a votação do PL partiu dos parlamentares Aécio Neves (PSDB-MG), Wolney Queiroz (PDT-PE), Reginaldo Lopes (PT-MG), Adolfo Viana (PSDB-BA), Alex Manente (CIDADANIA-SP), Wellington Roberto (PL-PB), Efraim Filho (DEM-PB) , Bira do Pindaré (PSB-MA), Cacá Leão (PP-BA), Vinicius Carvalho (REPUBLIC-SP), Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL).
O PL da comida de verdade
Centenas de outros projetos foram apensados ao original, proposto há 20 anos. Parte deles buscava ampliar o controle sobre o uso de substâncias tóxicas na produção de alimentos e incentivo à redução do uso. No entanto, a versão votada nesta quarta é amplamente focada na ampliação do uso de agrotóxicos.
Entre os projetos que ainda não ganharam espaço na Câmara está o que propõe a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, a PNARA (PL nº 6.670/2016). Construída por centenas de entidades do campo e da cidade, ligadas à produção e à defesa da agroecologia, da saúde pública, da ciência e da natureza, a PNARA vai na contramão do Pacote do Veneno.
O PL 6.670 quer a redução gradual do uso de agrotóxicos e o estímulo à transição orgânica e agroecológica; a reavaliação periódica de registro das substâncias (na legislação atual, o registro é eterno); a proibição da aplicação de veneno próximo a áreas de proteção ambiental, de recursos hídricos, de produção orgânica e agroecológica, de moradia e de escolas; e a redução da pulverização aérea.
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Cícero Guedes, lider do MST no Norte Fluminense, foi assassinado no dia 26 de janeiro de 2013 e os responsáveis pela sua morte continuam impunes e livres
Neste 26 de janeiro se completam nove anos desde o assassinato covarde de Cícero Guedes, liderança regional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Norte Fluminense. Também se completa hoje a completa falta de justiça para a morte de um trabalhador rural que dedicou parte da sua vida à luta pela reforma agrária. É que em 2019 em um julgamento relâmpago, o suposto mandante do assassinato de Cícero foi considerado inocente. Curiosamente, de lá para cá pouco se ouviu de qualquer outro esforço investigativo para retomar as apurações dos responsáveis pela morte de Cícero.
É importante enfatizar que a morte de Cícero Guedes e a consequente falta de punição para os responsáveis expressa bem o papel que o latifúndio ainda exerce na violência contra os pobres nas áreas rurais e todo aquele que se predispõe a organizar a luta pela reforma agrária. Aliás, essa é uma luta que deverá estar entre os principais elementos que qualquer um que espere uma mudança de rumo na situação política brasileira. Do contrário, continuaremos sentados em cima de um imenso barril de pólvora, e, pior, com o latifúndio armado até os dentes graças às ações pró liberação de armas adotadas pelo governo Bolsonaro (liberação para os latifundiários, é preciso que se frise).
Por outro lado, é sempre bom lembrar que Cícero Guedes teve contribuições que iam muito além da luta pela reforma agrária e pelo correto financiamento dos assentamentos criados a partir da luta dos trabalhadores rurais. Cícero era uma pessoa sempre disposta a contribuir com todos aqueles que se dispunham a questionar o “status quo“, estivessem essas pessoas dentro das universidades ou nas comunidades pobres urbanas. Por isso, a sua morte foi tão significativa para todos os que receberam o seu apoio.
Que neste aniversário de sua morte, Cícero Guedes seja lembrado pela grande e generosa figura, e que sua luta seja mantida acesa por todos os que desejam um Brasil mais justo, fraterno e democrático.
A agência Publica vem publicando uma série de reportagens sobre os efeitos avassaladores que o amplo uso de agrotóxicos, muitos deles banidos em outras partes do mundo, está causando na cadeia agrícola brasileira. No dia 07 de julho, uma reportagem assinada por Pedro Grigori mostra o extermínio de algo em torno de 0,5 bilhão de abelhas apenas em quatro estados brasileiros(RS, SC, MS e SP) por causa do contato com agrotóxicos à base de neonicotinoides e de Fipronil, produto proibido na Europa há mais de uma década
Mas nem a mortandade de abelhas ou as crescentes evidências de que os brasileiros estão sendo paulatinamente envenenados por resíduos de agrotóxicos que estão contaminados até o lençol freático em áreas agrícolas com menor intensidade de uso destes venenos agrícolas estão servindo para conter a sede por novos venenos por parte do latifúndio agro-exportador que tem hoje na soja a sua principal fonte de renda.
Apenas para que se tenha uma ideia da amplitude do crescimento exponencial de venenos agrícolas disponíveis no mercado brasileiro, em 2012 publiquei um artigo científico na revista Crop Protection dando conta que estavam disponveis 1.079 produtos formulados registrados no Brasil, o que representaria um crescimento de 197% em apenas 7 anos. E o pior é constatar que apenas nos primeiros dois meses de governo Bolsonaro foram aprovados 74 novos agrotóxicos, a maioria nas faixas consideradas mais perigosas para a saúde humana e o meio ambiente.
A verdade é que em vez de se buscar um maior aperfeiçoamento nos sistemas de manejo de culturas agrícolas que contemplasse a diminuição no uso de fertilizantes sintéticos e agrotóxicos, os latifundiários optaram pelo caminho aparentemente mais fácil de aumentar a quantidade do uso destes insumos altamente poluentes.
O problema é que esse modelo viciado em venenos cedo ou tarde (talvez mais cedo do que tarde) vai ter sua compra barrada em outras partes do mundo onde a tolerância à quantidade existente de resíduos de venenos agrícolas na produção agrícola é menor, a começar pela União Europeia, mas certamente isto não ficará restrito a este bloco comercial, como ficou bem claro na ameaça feita pela Federação Russa de barrar a compra de soja brasileira em função do alto nível de resíduos de herbicidas produzidos a partir do glifosato.
Mas enquanto o inevitável não chega, há que se discutir como impedir o avanço da Tsunami de venenos que está sendo desencadeada pelo governo Bolsonaro sob pena de termos uma catástrofe humana e ambiental no Brasil. Os sinais de alerta já estão claros, e será de bom senso não desprezá-los. Simple assim!
Os multimilionários e polêmicos investimentos da Universidade de Harvard em terras na América Latina
Harvard é considerada uma das melhores universidades do mundo e também é a mais endinheirada. Getty Images
Luis Fajardo Da BBC News Mundo
Alguns discutem se Harvard é a melhor universidade do mundo. Mas ninguém duvida de que seja a mais endinheirada.
Seu patrimônio próprio, superior a US$ 36 bilhões (o equivalente a R$ 142 bilhões), ultrapassa o PIB de países como Paraguai, Honduras ou El Salvador.
Harvard é, em si, uma potência não apenas em termos de prestígio, mas também econômica. E nos últimos anos decidiu investir em terras na América Latina (Brasil incluído), uma opção que lhe tem trazido dores de cabeça – algumas delas por causa de terras que comprou na Bahia.
Críticos acusam a instituição de má gestão ambiental, de adquirir imóveis com irregularidades nos títulos de propriedade e, no melhor dos casos, de ter feito um mau negócio.
Tudo começou com o colapso financeiro global de 2007, quando os mercados de ações despencaram em todo o planeta.
Como muitos dos destinos tradicionais de seus investimentos estavam em dificuldades por causa da crise econômica, os especialistas financeiros que administram o patrimônio de Harvard decidiram embarcar em uma estratégia de compra de terras agrícolas em países em desenvolvimento, inclusive a América Latina, esperando que essas fazendas mantivessem a rentabilidade que não se via mais em Wall Street.
Harvard investiu em terras rurais no Uruguai, no Chile, na Argentina e no Brasil, entre outros países da região.
Venda de terras
Mas o investimento se justificou? Em muitos casos, parece que não.
Em outubro de 2017, a Harvard Management Company, empresa que administra os investimentos da universidade, anunciou que reduziu em US$ 1 bilhão (R$ 3,94 bilhões) o valor estimado de sua carteira de investimentos em recursos naturais em todo o mundo, ante o fraco desempenho desses negócios.
Foi então anunciada, entre outras medidas, a venda de uma fazenda no Uruguai, cujo valor se estimava em US$ 120 milhões (R$ 473,35 milhões) e incluía 20 mil hectares de plantações de eucalipto.
Vista aérea do interior do Brasil: terras no país e em outros da América Latina foram compradas por Harvard
Mas a rentabilidade insatisfatória dessas propriedades poderia ser apenas um dos problemas de Harvard como proprietária de terras na América Latina.
Há vários anos, entretanto, a instituição também enfrenta uma controvérsia legal por causa de sua propriedade na Bahia, com 140.000 hectares e comprada por intermédio de uma subsidiária, a Caracol Agropecuária.
De acordo com a agência de notícias Bloomberg, alguns questionam em Harvard se o negócio foi feito, de fato, com os legítimos proprietários.
Algum tempo atrás, vários agricultores da região foram à Justiça brasileira argumentar que, há mais de uma década, eles praticavam agricultura de subsistência nessas fazendas, que eram então propriedade do Estado.
Os agricultores afirmam que foram expulsos irregularmente da área por um grupo de latifundiários brasileiros, supostamente com títulos de propriedade, e então a venderam a Harvard.
As autoridades brasileiras estudam há anos essas supostas irregularidades.
Um relatório apresentado em 2014 por uma comissão estadual argumentou, segundo a Bloomberg, que sua recomendação era revogar títulos de propriedade – descritas como resultado de um “festival de procedimentos irregulares e ilegais que resultaram na usurpação de terras públicas”, situação sucedida pela compra o terreno pela Caracol, a empresa associada a Harvardo.
As autoridades do Estado da Bahia “estão decidindo se entrarão com uma ação para reivindicar a propriedade dos títulos”, observou a Bloomberg no final de abril.
Mas não há notícias de medidas legais concretas tomadas contra Harvard, apesar de a disputa estar em curso há tantos anos.
Questionada sobre o caso pela BBC News Mundo, a Harvard Management Company informou que adota a política de não comentar “investimentos específicos”.
Queixas ambientais
Com muitos dos destinos tradicionais de seus investimentos em dificuldades por causa da crise econômica, Harvard direcionou seu foco a áreas agrícolas de países da América Latina. Getty Images
As polêmicas não param por aí. Harvard também foi acusada por ativistas em pelo menos dois países latino-americanos de comportamentos inadequados em relação ao meio ambiente.
No Chile, o governo local de Chiloé anunciou ações legais contra a Agricola Brinzal, pertencente a Harvard, acusando-a de derrubar florestas nativas e reflorestá-las com espécies estrangeiras.
Segundo o CIPER, Centro de Investigação Jornalística do Chile, “desde 2004, a Universidade de Harvard criou pelo menos 11 empresas no Chile para explorar o negócio florestal”.
“Uma delas é a Agrícola Sapling e Pólo, que enfrenta dois processos judiciais,” supostamente pelo corte ilegal de 76 hectares de mata nativa, afirma o Centro.
Na Argentina, de acordo com reportagem do jornal Clarín, “Harvard possui terras no país e seus alunos a acusam de explorá-las mal”. O jornal acrescenta que a instituição “tem 87 mil hectares na cidade de Corrientes, onde produz madeira”.
A despeito da polêmica sobre seus investimentos, Harvard continua sendo muito rica. E seu prestígio acadêmico se mantém avassalador. Getty Images
Grupos de ativistas, alguns deles alunos da universidade, acusaram a empresa de ter iniciado uma atividade de exploração florestal que poderia ser prejudicial ao meio ambiente.
A propriedade em questão era usada na plantação de pinheiros e eucaliptos em uma área ambientalmente sensível perto da reserva natural de Ibera, na província argentina de Corrientes.
Quando questionada sobre as queixas que suas propriedades no Chile e Argentina enfrentam, a Harvard Management Company repetiu, em nota à BBC News Mundo, que não comentaria sobre investimentos específicos.
Independentemente das controvérsias ambientais que enfrentou no passado, Harvard parece ter tomado a decisão de reduzir sua participação nos negócios agrícolas na América Latina e em outras regiões do mundo.
Como afirma o jornal britânico Financial Times, em reportagem recente sobre as explicações que os administradores financeiros da universidade têm apresentado, “a mensagem é que era difícil avaliar corretamente os ativos, que era fácil pagar demais por eles no início, que a rentabilidade podia ser ilusória e reposicionar a carteira de investimentos poderia levar anos”.
A Organização Não-Governamental Greenpeace acaba de lançar um interessante relatório que analisa o modelo agrícola brasileiro onde são levantadas as diferentes consequências ambientais e sociais que decorrem das suas práticas.
Um elemento que é tratado com especial atenção se refere ao uso intensivo e abusivo de agrotóxicos para a sustentação de um modelo fortemente ancorado em monoculturas voltadas para a exportação.
Pelo que pude analisar do conteúdo do relatório, o mesmo é daqueles que merecem uma cuidadosa leitura e mesmo disseminação ampla. É que bombardeadas pela propaganda enganosa do “Agro é pop”, a maioria dos brasileiros está diariamente consumindo alimentos contaminados por substâncias com alta toxicidade e que podem trazer graves consequências para ecossistemas naturais e para seres humanos.
Quem desejar baixar o arquivo contendo este relatório, basta clicar [Aqui!]
Governo libera votação do Licenciamento Ambiental com graves retrocessos
São Paulo, 15 de agosto de 2017– O projeto de lei nº 3.729/2004 e apensos que trata da Lei Geral do Licenciamento Ambiental poderá ser votado amanhã na Câmara dos Deputados, por meio de um texto controverso que está na 12ª versão apresentada na última semana na Comissão de Finanças e Tributação, pelo relator deputado federal Mauro Pereira (PMDB/RS). O texto do relator é um retrocesso à legislação ambiental e um risco para o país, que pode acarretar em insegurança jurídica, em perdas ao patrimônio socioambiental e à biodiversidade, além do não cumprimento das metas assumidas pelo Brasil no Acordo do Clima.
A liberação para que esse substitutivo, ainda desconhecido da sociedade, seja votado em Plenário veio como uma das moedas de troca dos partidos à não investigação do Presidente da República. É inadmissível que um projeto de lei de interesse nacional, que afeta diretamente a vida de todos os brasileiros, seja votado sem que a sociedade e a comunidade científica sejam ouvidas.
Após nove meses de negociação com o Ministério do Meio Ambiente, Ibama, setores produtivos e mais de dez ministérios, o texto se transformou em uma enorme colcha de retalhos, cheia de facilidades e liberações pontuais e, com isso, perdeu a característica de ser uma norma geral, capaz de direcionar e harmonizar o rito do licenciamento ambiental no país.
A questão locacional do empreendimento ou da atividade foi desconsiderada na definição do rito para o licenciamento ambiental. Assim, cada ente da federação poderá definir os critérios, com maior ou menor grau de exigências e complexidade. Com isso, a União perde discricionariedade e abre-se espaço para conflitos entre estados e municípios, a exemplo da conhecida “guerra fiscal”. Um estado poderá exigir EIA/Rima para determinado empreendimento, enquanto outro adotará o procedimento simplificado da licença por adesão e compromisso. Isso criará conflitos e a transferência de impacto ambiental de uma região para outra, por exemplo, em casos de atividades minerários em rios que atravessem um ou mais estados.
O novo substitutivo fere preceitos conquistados pela sociedade na Constituição Federal em relação aos biomas brasileiros, aos recursos hídricos e aos patrimônios socioambientais. A Constituição diz que eles devem ser geridos por normas gerais que podem ser complementadas, de forma mais restritiva e específica pelos estados e municípios, porém, sem que sejam mais flexíveis e permissivos.
O texto mantém a dispensa do licenciamento ambiental para atividades agropecuárias e amplia a isenção para imóveis “em processo de regularização” no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e para aqueles que estão cumprindo as obrigações assumidas em termo de compromisso decorrente da regularização prevista na nova Lei Florestal. Nas versões anteriores, a dispensa estava limitada às propriedades regularizadas.
A Fundação SOS Mata Atlântica repudia a forma como os grandes temas de relevância para o país vêm sendo conduzidos e convoca os cidadãos para que contatem os deputados federais e senadores de suas regiões com o objetivo de impedir a votação desse retrocesso.
Até agora circulava como piada nas redes sociais a possibilidade de que os apoiadores do governo “de facto” Michel Temer tentariam anular a Lei Áurea que simboliza o fim da escravidão legal no Brasil em 1888! Pois bem, a julgar pela matéria publicada pelo jornal Valor Econômico (Aqui!e abaixo), essa possibilidade não pode ser mais tratada como piada em função de uma contra-reforma específica que está sendo preparada pela bancada ruralista, com a benção de Temer, para os trabalhadores do campo.
Entre outras coisas, a proposta inclui a possibilidade de jornadas de trabalho de 12 horas, o fim do repouso semanal e, pasmemos todos, a possibilidade de que o trabalhador possa ser “remunerado” com alimentos e local de moradia!
Ora, quem como eu, já teve a possibilidade de circular pela Amazônia sabe que a “remuneração” por alimentos e local de moradia são as duas formas mais clássicas de escravidão por dívida. Assim, o que a bancada ruralista está propondo é simplesmente oficializar a escravidão dos trabalhadores do campo! E que normalmente moradia nos rincões significa barracos cobertos com palha e comida, restos de lavagem que até os porcos recusaram.
Alguém mais ingênuo poderá pensar que absurdos como esse não vão ser aprovados. Mas isso era o que se dizia sobre a terceirização total e a destruição das cláusulas de proteção que constavam da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Assim, não há porquê se desprezar essas mudanças, pois a proposta é extremamente danosa aos trabalhadores do campo, e sinalizam objetivamente um franco endurecimento por parte do latifúndio agro-exportador contra seus trabalhadores.
Finalmente, o que fica explícito em mais esse ataque ao pouco de modernização nas relações do trabalho no campo é que as oligarquias rurais brasileiras querem que o Brasil volte para 1888, no que pode ser efetivamente se transformar num imenso salto para trás.