Informação exclusiva: Observatório dos Agrotóxicos divulga lista completa dos 2.030 agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro

tereza bolsonaro

Soba batuta firme da ministra Tereza Cristina e do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil realizou uma das maiores ondas de aprovações de agrotóxicos da sua história, com resultados imprevisíveis sobre a saúde humana e o meio ambiente

Após um longo e exaustivo trabalho de compilação, o Observatório dos Agrotóxicos do Blog do Pedlowski divulga com exclusividade a base completa contendo os 2.030 agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022.  Além disso, divulgo outras seis planilhas relativas aos atos promulgados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) entre os meses de setembro e dezembro de 2022 (46, 50, 53, 63 e 64). A divulgação desses dados é voltada para informar a população e pesquisadores que estejam neste momento com sua atenção voltada ao estudo da economia política dos agrotóxicos em nível global e no Brasil, bem como seus efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente.

Uma nota de precaução é que apesar de todos os esforços, algumas informações mudaram e mudarão ao longo do tempo, especialmente no que se refere à condição de permissão dos agrotóxicos na União Europeia, pois os órgãos reguladores europeus estão constantemente ajustando padrões de segurança e observando datas limites de permissão de determinados agrotóxicos, o que implica em que alguns produtos que estejam habilitados a uso possam passar à condição de proibidos. Além disso, o fato de que apenas em dezembro de 2022 foram publicados 2 atos (aparentemente em correria pelos avaliadores) que apresentaram uma série de lacunas técnicas que deixam claro que há que se usar a base levando a presença de inconsistências. Entretanto, esse fato não diminui a riqueza de informações que foram compiladas a partir dos atos publicados pelo MAPA.

agrotoxicos ap

O Brasil se tornou o destino de agrotóxicos altamente perigosos que já estão proibidos em outras partes do mundo

Como já observei em postagens anteriores, o estudo inicial da base geral e das planilhas individuais mostra que o Brasil se tornou o destino de agrotóxicos altamente perigosos que já se encontram proibidos em outras partes do mundo, a começar pela União Europeia. Dentre estes produtos proibidos e que estão sendo amplamente utilizados no Brasil, ainda mais após o governo Bolsonaro, e que já estão tendo repercussões sobre a saúde humana e os ecossistemas naturais. A questão é que estas substâncias, apesar de estarem sendo usadas de forma ampla, geral e irrestrita, as conexões entre a sua presença e os impactos sobre a saúde humana não ainda estão claramente identificadas, o que gera um ambiente social de menosprezo das consequências com o contato, seja ele agudo ou crônico.

Um fato claro que emerge dos dados sobre os agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro é que a maioria se destina a aumentar o uso já dominante em agriculturas de exportação, principalmente a soja, o milho, a cana de açúcar e o algodão. Isto não apenas reforça o caráter de economia dependente do Brasil, pois o principal fornecedor de agrotóxicos é também o principal comprador de diversas commodities agrícolas brasileiras, mas também o fato de que para sustentar o modelo agrícola exportador, o Brasil e sua população são transformados em uma latrina química para onde são enviados produtos que já estão rejeitados em países que recusam determinados agrotóxicos que são considerados altamente perigosos.

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Representantes de empresas brasileiras fabricantes de agrotóxicos participam de conferência na China

Outro aspecto que fica claro é a dependência crescente do Brasil em relação à indústria chinesa de agrotóxicos, principalmente no fornecimento de agrotóxicos pós-patente ou genéricos onde estão concentradas as substâncias mais perigosas. Entretanto, empresas alemãs como a Basf e a Bayer foram beneficiadas com a aprovação de centenas de produtos, muitos deles proibidos na Europa onde as empresas estão sediadas. 

Por outro lado, há que se frisar que houve a aprovação de um grande número de agrotóxicos biológicos, a maioria deles produzidos por empresas brasileiras ou de subsidiárias de multinacionais sediadas no Brasil. Esse é um elemento que deverá merecer uma análise mais profunda, na medida em que parece estar em curso um giro na indústria dos venenos agrícolas para fazer frente ao processo de crescimento de resistência aos agrotóxicos químicos. 

Findo o governo Bolsonaro, o Observatório dos Agrotóxicos continuará seu trabalho

Apesar do governo Bolsonaro ter terminado, o Blog do Pedlowski continuará acompanhando a aprovação de agrotóxicos, pois a previsão é de que a pressão do latifúndio agro-exportador e das multinacionais produtores de veneno continuará sendo grande para que se aprovem ainda mais agrotóxicos.  

Ainda que o presidente Luís Inácio Lula da Silva tenha apontado para um compromisso com o fortalecimento de um modelo agrícola de base ecológica e menos dependente de agrotóxicos, o fato é que o latifúndio agro-exportador es seus representantes no Congresso Nacional continuarão comprometido com um modelo agrícola dependente e altamente viciado em agrotóxicos. Assim, a avaliação é de que na questão do modelo agrícola repousa um dos maiores desafios do governo que assumiu em janeiro de 2023.

Acesse e baixe a base do Observatório dos Agrotóxicos

Para quem estiver interessado em acessar a base completa dos agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro, basta clicar [Aqui!]. Já quem estiver interessado em baixar as planilhas individuais dos atos atos publicados entre setembro e dezembro de 2022, pode clicar [Ato No. 46 de 13 de setembro 22, Ato No. 50 de 21 de outubro de 2022, Ato No. 53 de 23 de Novembro 22Ato No. 63 de 27 de dezembro 22,  Ato No. 64 de 28 dez 22]

Uso indiscriminado de agrotóxicos: desafio para o governo Lula

cana agrotóxicosA cana-de-açúcar, juntamente com a soja e o milho, são as três principais culturas agroindustriais que mais utilizam agrotóxicos em sua produção. No Brasil, juntos, eles usam 80% de todos os pesticidas aplicados. Crédito da imagem: Andrés Garzón/Flickr , sob licença Creative Commons (CC BY 2.0)

 Por Washington Castilhos para a SciDev

[RIO DE JANEIRO]. Um dos grandes desafios de Luís Inácio Lula da Silva, que assumiu a presidência do Brasil em 1º de janeiro, será reduzir o uso indiscriminado dos chamados “defensivos agrícolas”, intensamente promovidos pelo governo de seu antecessor.

Só nos últimos quatro anos, 1.800 agrotóxicos foram introduzidos no mercado brasileiro, a maioria (59%) de origem chinesa, segundo dados de um novo estudo publicado na revista Third World Quarterly .

Um primeiro passo para o novo governo enfrentar essa situação seria revogar o decreto presidencial de 2021 , que antecipa disposições contidas no projeto de lei 6.299 , ainda em tramitação no Congresso Nacional, conhecido como “Lei do Veneno”.

É o que aponta ao SciDev.Net a toxicologista Karen Friedrich, pesquisadora do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz.

Ela garante que, se o projeto for aprovado, parte da legislação atual que proíbe o registro de substâncias que causam câncer, mutações ou distúrbios hormonais será eliminada e reduzirá o poder de órgãos de controle, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Para o geógrafo Marcos Pedlowski, as alternativas ao uso de agrotóxicos seriam a reforma agrária e o incentivo à agricultura familiar e à policultura.

“Estamos priorizando as monoculturas de exportação altamente dependentes de agrotóxicos. Precisamos sair dessa dependência do ciclo do veneno”, diz Pedlowski, pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) no Rio de Janeiro e um dos autores do estudo junto com pesquisadores da Universidade de Helsinki, ao SciDev. Net . Finlândia.

E Friedrich complementa: “O país precisa adotar um novo modelo agrícola baseado nos valores agroecológicos e na produção orgânica”.

Se forem considerados países com o mesmo padrão agrícola e dimensões territoriais comparáveis, e com base na razão de quilos de agrotóxicos por hectare (kg/ha), que é a metodologia utilizada pela Agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o Brasil –com 2,77 kg/ha– ocupa o segundo lugar entre os maiores consumidores do mundo, precedido apenas pela China (10,93 kg/ha) e seguido pelos Estados Unidos (2,38 kg/ha) e Argentina (2,37 kg/ha).

O uso de agrotóxicos no Brasil passou de 16 mil toneladas por ano para quase 500 mil em cinco décadas, segundo o referido estudo.

“Uma das consequências do uso dessa quantidade de agrotóxicos altamente nocivos é o aumento da exposição das pessoas a resíduos de produtos conhecidos por causarem diversos tipos de doenças ”, destaca Pedlowski.

Pesticidas e a UE

Do conjunto de agrotóxicos aprovados pelo governo anterior, um terço são proibidos na União Europeia. No entanto, muitos alimentos brasileiros tratados com agrotóxicos proibidos pela UE chegam ao mercado europeu, para o qual o Brasil é um dos mais importantes fornecedores de produtos agrícolas.

Pedlowski explica que a UE tem critérios muito mais restritivos para limites de resíduos em alimentos do que o Brasil, então, quando esses resíduos ultrapassam o permitido, os governos emitem alertas ou até suspendem a entrada de alimentos altamente contaminados. E lembre-se que há alguns anos a Rússia emitiu um alerta sobre o excesso de glifosato na soja brasileira.

Em seu relatório anual de 2022 sobre resíduos de pesticidas em alimentos, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos revelou que metade das frutas e vegetais no mercado europeu está contaminada com resíduos de pelo menos um pesticida, enquanto um quarto deles contém um coquetel de até 15 resíduos de agrotóxicos.

“Em breve, os parlamentos nacionais europeus terão que ratificar uma lei muito mais restritiva em relação aos alimentos contaminados com agrotóxicos. Essa será uma questão para a qual o Brasil deve se preparar”, prevê o pesquisador.

No entanto, entre os agrotóxicos introduzidos no Brasil nos últimos quatro anos, 4% vêm de empresas europeias. Ou seja, embora esses produtos sejam proibidos em países com regulamentações mais exigentes, eles continuam sendo vendidos em países do hemisfério sul com economias baseadas em grandes áreas de monoculturas de exportação, como Argentina e Brasil.

É o caso do glifosato e da atrazina, herbicidas que, apesar de proibidos na Europa, são os mais utilizados nos países tropicais “onde ocorrem 99% das intoxicações agudas associadas”, revela o estudo.

O efeito devastador do uso indiscriminado de agroquímicos na agricultura é retratado no minidocumentário argentino O custo humano dos pesticidas , que mostra as mutações genéticas e outras condições associadas à exposição ao glifosato que afetaram populações em várias províncias desse país.

Oito intoxicações diárias

No Brasil, de acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação Obrigatória (SINAN ), 25.106 pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos entre 2007 e 2014, uma média de oito intoxicações por dia.

E de acordo com o mais recente relatório da rede ambiental Friends of the Earth – Europe, a cada dois dias no Brasil uma pessoa morre por envenenamento por agrotóxicos. 20 por cento das vítimas são crianças e adolescentes até 19 anos de idade.

Os casos de intoxicação se concentram no centro e sul do Brasil, justamente onde estão as principais culturas do agronegócio, como soja, milho ou cana-de-açúcar. Juntas, essas três culturas usam 80% de todos os pesticidas aplicados.

Vários estudos nessas regiões apontam maior incidência de câncer, problemas reprodutivos, infertilidade masculina e malformações em bebês, principalmente devido à exposição ocupacional de trabalhadores rurais.

“A população em geral consome agrotóxicos tanto na água quanto nos alimentos. Estamos comendo e bebendo nossa dose diária de veneno.”

Karen Friedrich, Centro de Estudos em Saúde Ocupacional e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

Karen Friedrich, que não participou do estudo do Third World Quarterly , lembra que pesquisas recentes encontraram vestígios de pesticidas não apenas nos alimentos, mas também na água, por meio da contaminação do solo e das águas subterrâneas.

“A população em geral consome agrotóxicos tanto na água quanto nos alimentos. Estamos comendo e bebendo nossa dose diária de veneno”, disse Friedrich ao SciDev.Net.

A pesquisadora alerta que corremos o risco de consumir alimentos que contenham agrotóxicos em doses acima do permitido (que são calculadas para cada agrotóxico), bem como um grande número de substâncias diferentes em um mesmo alimento.

“Ao longo do tempo, doses repetidas desses coquetéis constituem um alto risco à saúde da população”, acrescenta o médico biomédico.

Segundo os pesquisadores, a crença de que sem agrotóxicos é impossível manter o nível de produtividade agrícola exigido pela população humana é um mito.

“Trata-se mais de uma mudança na forma de produção do que de proteção contra pragas”, destaca Pedlowski. “Além disso, os altos custos desses insumos impactam na produção de alimentos”, conclui.

Link para o resumo do artigo no Third World Quarterly


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Este artigo escrito originalmente em espanhol foi produzido pela edição América Latina e Caribe de  SciDev.Net e publicado [Aqui!].

Preterir Marina Silva por Simone Tebet no Meio Ambiente significará giro mais à direita do futuro governo Lula

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 A forte chance de que a ainda senadora Simone Tebet possa ocupar o cargo de ministra do Meio Ambiente do terceiro mandato do presidente Lula é uma indicação de que, se confirmada, haverá um giro ainda mais à direita do que muitos esperavam do novo governo federal. É que se Tebet for confirmada, isso sem nenhuma dúvida será um aceno para o latifúndio agro-exportador do qual ela é uma das expoentes políticos.

Ainda que a trajetória recente da outra candidata, Marina Silva, para ocupar o Meio Ambiente não seja exatamente de uma pessoa de esquerda, não há como negar que sua indicação representaria um sinal mais claro de que haveria um giro em relação ao que foi praticado nos últimos quatro anos. É queTebet seria uma espécie de garantidora dos interesses do latifúndio agro-exportador, o que Marina Silva não seria, apesar de todas as suas contradições recentes.

Mas o simples fato de que se está tentando colocar Simone Tebet em um cargo para o qual ela nunca mostrou qualquer inclinação já é um sinal claro de que a política de frente ampla (amplíssima eu acrescentaria) está indo além muito além do que se anunciou durante a campanha eleitoral.

Resta saber o que Marina Silva irá fazer, caso ela seja mesmo preterida em favor de Tebet. Mas é bem possível que ela encare isso como mais uma traição cometida contra quem prometeu um novo tipo de relação política. 

E não nos enganemos, o destino desta cadeira ministerial vai nos dizer muito mais sobre o futuro governo do que a de outras que são tidas como mais importantes.

Ronaldo Caiado, logo ele, dá pistas sobre quem são os segmentos “radicalizados” do agronegócio

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O governador de Goías, o latifundiário Ronaldo Caiado, deu uma interessante entrevista ao colunista Chico Alves do Portal UOL acerca dos responsáveis pela invasão do plenário da Assembleia Legislativa goiana que votava um projeto de lei que criava um imposto de 1,65% sobre os lucros auferidos pelo latifúndio agro-exportador cuja renda será aplicada na melhoria de estradas que escoam a produção do referido.

Segundo Caiado, que um dia liderou a famigerada União Democrática Ruralista (UDR), os responsáveis pela invasão do plenário da Aleg seriam empresários ligados a tradings (empresas que fazem negociações na Bolsa de Valores de curtíssimo prazo).

Caiado ainda acrescentou que ” são pessoas querendo ganhar cada vez mais e não querem contribuir com nada”, afirma. “A conversa desses caras é: ‘Eu troquei o meu helicóptero monoturbo por um biturbo, comprei mais um jato’…as pessoas entram numa paranoia que é inimaginável. Se sentem acima do Estado, acima da lei“.

O governador de Goiás ainda acrescentou que  “considera inadmissível que uma parcela de radicais leve todo o setor para a clandestinidade.”Pela ganância de alguns, a barbárie pode fazer perder toda a credibilidade que o agro conquistou“,

A minha conclusão dessa fala é a seguinte: de pop o agro não tem nada. O que o “agro” entende mesmo é de desmatamento, agrotóxicos, violência e frivolidades.

Em face do que aconteceu em Goiás e em outras partes do Brasil como reação desse setor aos resultados das eleições presidencias, fica ainda mais evidente a necessidade de uma ampla reforma agrária que democratize o acesso à terra e que faça cumprir a função social estabelecida como condição básica na Constituição Federal de 1988.

No país construído por Bolsonaro e Guedes, a fome avança que nem boiada estourada

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A notícia mais escondida dessas eleições apareceu de forma tímida em uma reportagem do portal G1 nesta 4a. feira: 30% dos brasileiros estão passando fome, sendo que 15% deles no nivel mais grave de insuficiência alimentar.  E isso ocorre enquanto o latifúndio agro-exportador associado às grandes multinacionais produtoras de venenos agrícolas e sementes geneticamente modificadas lavam a burra exportando grãos e carne produzidos em regiões recentemente desmatadas da Amazônia e do Cerrado.

O avanço da fome no Brasil é acima de tudo uma vitória do projeto de desnacionalização das nossas reservas estratégicas e dos nossos bercários de biodiversidade que tem à frente a dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes.  É esse projeto que causa fome em milhões de brasileiros enquanto a biodiversidade da Amazônia e do Cerrado, bem como os povos originários, são alvo de todo tipo de saqueador que hoje corre livre por causa do desmanche das frágeis estruturas de comando e controle que existiam até o golpe parlamentar orquestrado contra a presidente Dilma Rousseff em 2016.

Pode ser uma imagem de 1 pessoa, criança e texto que diz "Crianças aprendem desde cedo ο que é sentir fome Pesquisa mostra que 7,89 com crianças sofrem com alta do que comer No Luana da Silva alimenta os comida que ganha na rua. PÁGINA 10"

O curioso é que esse projeto de fome foi escancarado pela ação mal enjambrada de um apoiador do presidente Jair Bolsonaro, o “agroempresário” Cássio Cenali, que teve a magnífica ideia (especialmente para a campanha eleitoral do ex-presidente Lula) de produzir um vídeo onde comunicava que iria suspender a entrega de marmitas a uma trabalhadora pobre após descobrir que ela não votaria em Jair Bolsonaro no dia 02 de outubro.

Sem querer, Cenali trouxe à tona o que os efeitos das políticas de fome da dupla Bolsonaro/Guedes e pode ter acelerado uma derrota eleitoral que estava aparecendo no horizonte, mas que agora ganhou tintas fortes.  O espectro da derrota até produziu uma versão chorosa de Jair Bolsonaro cujas lágrimas são tão legítimas quanto uma nota de 2 dólares.

Entretanto, a principal questão que se oferece aos brasileiros não é nem sobre a necessidade de impor uma dura derrota eleitoral a Jair Bolsonaro, pois esta é mais do que óbvia.  O problema é de como colocar o combate à fome que hoje aterroriza milhões de brasileiros no centro da pauta política para o pós-eleição. É que o combate à fome hoje (aliás como sempre sintetizou desde Josué de Castro escreveu o clássico Geografia da Fome) sintetiza todo o desafio de se construir uma nação democrática onde a maioria pobre do seu povo possa ter acesso à condições dignas de existência, e não viver apenas com as migalhas que caem das mesas dos ricos.

A fábula do “agronegócio” como salvador da pátria esconde a necessidade de uma ampla reforma agrária de base ecológica no Brasil

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Ao contrário dos que propagam a fábula do agronegócio, a produção de alimentos ocorre é na agricultura familiar

No ano passado comentei aqui o término da minha leitura do livro de Caio Pompeia, publicado pela editora Elefante, intitulado “Formação política do agronegócio” cujo principal mérito é mostrar que o agronegócio é algo que foi formulado na década de 1950 na Universidade de Harvard, mas que só foi tardiamente adotado no Brasil no início da década de 1990 a partir de esforços realizados por uma espécie de parceira público-privada envolvendo o Instituto de Estudos Avançados da USP.

Desta forma, o conceito de agronegócio é nascido nos EUA e apenas está em uso no Brasil por força de uma ação diligente para esconder a face mais retrógrada do padrão de concentração da terra que foi formalizado no Brasil a partir da promulgação da chamada de Lei de Terras em 1855. 

De cara o que o conceito de agronegócio se presta a esconder os aspectos mais danosos não apenas da alta concentração de terras, mas também aqueles que acompanharam a chamada Modernização Conservadora que foi executada pelo regime militar de 1964 para impedir a realização de uma ampla reforma agrária no Brasil.

Mas voltando ao conceito de agronegócio como formulado pelo economista John H. Davis, agronegócio significaria a “soma de todas as operações da fazenda, mais a manufatura e a distribuição de produção agrícola providos pelos negócios, mais o total das operações realizadas em conexão com a manipulação, a estocagem, o processamento e a distribuição de commodities”.

Em outras palavras, assumida ao pé da letra, a definição de agronegócio de Davis coloca tudo o que se refere ao plantio, produção, estocagem, comercialização e transporte dentro de uma mesma sacola, como se fosse possível igualar agentes do tamanho da Bayer e da Cargill com um assentado de reforma agrária em algum lugar perdido na Amazônia brasileira. Apesar da impossibilidade óbvia de tudo cair sob este guarda-chuva gigantesco, o conceito de agronegócio serve exatamente ao propósito de se juntar gregos e troianos, escondendo as diferenças de escala de poder que envolve a produção e circulação de produtos agrícolas no planeta.

Agronegócio e meio ambiente são compatíveis?

Na entrevista realizada no Jornal Nacional com o ex-presidente Lula, a jornalista Renata Vasconcellos tentou jogar uma casca de banana para seu entrevistado ao afirmar, algo na linha de que o “agronegócio não é incompatível com a proteção meio ambiente“. 

Apenas examinando quem cai dentro da categoria de agronegócio é evidente que apesar de todas as campanhas da “governança sócio-corporativa e ambiental” que corporações como a Bayer, Basf e Syngenta possam fazer, a dependência de produtos danosos ao meio ambiente (os agrotóxicos) para a geração de lucros impede um compromisso real com a proteção ambiental.

Entretanto, olhando ainda mais de perto o que ocorre no Brasil deixado da lona do “agronegócio” é possível encontrar facilmente exemplos de como os agentes do agronegócio (latifundiários, por exemplo) estão envolvidos diretamente no desmatamento ilegal de terras públicas, uso abusivo de agrotóxicos e no emprego de mão de obra escrava. 

E não adianta tentar separar como fez o ex-presidente Lula o “bom agronegócio” do “mau agronegócio”, pois é da natureza desse amplo segmento incorrer em custos ambientais altíssimos para gerar lucros fabulosos. Aliás, tentar criar tal dicotomia só contribui para que a verdadeira natureza (anti-ambiental e anti-social) do agronegócio seja colocada à luz do dia.

Reforma agrária como base da transformação ecológica da agricultura brasileira

Eu não tenho nenhuma dúvida de que não há outra saída para o fim da condição de economia dependente do Brasil que não se realizar uma ampla reforma agrária no Brasil. Essa reforma seria capaz de liberar uma energia produtiva inédita na história do Brasil, criando empregos em escala inédita e ampliando a produção de alimentos que, estes sim, poderiam servir para diminuir o número de brasileiras e brasileiros que passam fome todos os dias. 

Mas uma reforma agrária não poderá ser feita para manter o mesmo tipo de padrão viciado em insumos poluentes como o que foi estabelecido a partir da chamada Revolução Verde. A modificação da estrutura da propriedade terá de ser acompanhada por uma profunda alteração nas bases da produção agrícola, saindo do modelo atual para outro que respeite os limites ecológicos e produza a partir deles. Aliás, para quem acha que isso é utópico demais, basta dizer que a atual forma de produção agrícola nos leva claramente para um mundo distópico. Além disso, um modelo agroecológico é algo que cientistas como a indiana Vandana Shiva e o chileno Miguel Altieri já têm se ocupado por várias décadas.

 

Por pressão do agronegócio, Anvisa bane Carbenzadim no estilo “pero no mucho”

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 Foto por Nathalia Ceccon. Idaf/ES

Mesmo em face de robustas informações científicas de que o fungicida Carbendazim causa graves consequências para a saúde humana (incluindo câncer e má formação fetal),  a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu banir este agrotóxico utilizando um calendário mais do que generoso para os seus fabricantes e usuários. Esta decisão da Anvisa representa óbvia desconsideração com os danos causados sobre trabalhadores rurais e de quem vai ingerir os produtos contaminados com resíduos de um produto banido pela União Europeia desde 2014 após o reconhecimento de que o produto era altamente tóxico e perigoso.

Ao modo de que já aconteceu com o herbicida Paraquat, as concessões feitas ao agronegócio para que o Carbendazim continue sendo efetivamente utilizado por pelo menos mais dois anos (ou até que os estoques existentes se esgotem) são uma afronta ao direito dos brasileiros de não terem que consumir produtos contaminados com substâncias altamente perigosas, como nos casos desses dois agrotóxicos.

É sempre importante notar que os plantadores de laranja tiveram que suspender o uso do Carbendazim a partir de 2012 em função da proibição dos importadores dos EUA onde este agrotóxico foi não apenas banido, mas como proibido de estar na composição de alimentos importados.  O que esse caso mostra é que quando colocados sob pressão objetiva para mudar, o latifúndio agro-exportador atende de forma pronta e obediente, o que apenas reforça a importância de que haja um movimento vigoroso para obrigar os líderes do agronegócio a serem compromissados com a saúde dos brasileiros.

Mas o que está ruim sempre pode piorar

O problema é que mesmo em face das evidências que a forte dependência de venenos agrícolas para tocar um modelo agrícola viciado, os grandes fabricantes de agrotóxicos e as entidades representativas do latifúndio agro-exportador seguem pressionando o Senado Federal para que conclua a aprovação do chamado “Pacote do Veneno” que não só irá flexibilizar a liberação, produção e comercialização de agrotóxicos altamente venenosos, mas como irá dificultar ainda mais o banimento de produtos sendo rejeitados em outras partes do mundo. 

A verdade é que se o “Pacote do Veneno” for aprovado, haverá uma consolidação do Brasil enquanto uma latrina tóxica onde os grandes fabricantes de venenos agrícolas (por exemplo a Bayer, a Basf e a Syngenta) irão despejar todos aqueles agrotóxicos que forem proibidos em outras partes do mundo. E tudo isso em um momento em que o sistema público de saúde estão sendo claramente enfraquecido.

É por essas e outras que eu digo que o “Agro não é pop”, o “Agro é tóxico”!

Siga a trilha do dinheiro público e verás a verdade: o Brasil caminha de volta para o passado

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Conheço diversas pessoas que acreditam piamente no fato de que o simples retorno do ex-presidente Lula à cadeira presidencial irá levantar o Brasil do pântano em que se encontra neste momento, em uma espécie de reedição das fábulas contadas pelo Barão de Von Munchausen, que seria como base para um livro que considero excelente escrito pelo teórico marxista Michel Löwy que se intitula “As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Von Munchausen“.

A verdade, entretanto, é um pouco mais complexa do que os anseios de mudanças rápidas que embalam a decisão de votar em Lula já no primeiro turno para “derrotar o fascismo”.  A figura abaixo ilustra bem as dificuldades que serão encontradas por qualquer que suceda o presidente Jair Bolsonaro, pois mostra que as políticas ultraneoliberais executadas pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes, atingiram o setor industrial brasileiro em cheio, simplesmente por concentrar investimentos no latifúndio agro-exportador (a.k.a. agronegócio)

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A questão é que essa aposta no latifúndio agro-exportador não é uma criação da dupla Bolsonaro/Guedes, mas vem sendo meticulosamente aplicada, a despeito de quem foi o presidente, desde que o hoje bolsonarista Fernando Collor iniciou o desmantelamento das políticas desenvolvimentistas herdadas do regime militar de 1964 que, por sua vez, as buscaram das reformas iniciadas no primeiro governo de Getúlio Vargas.

O que mais fica evidente é que após o golpe parlamentar executado contra a presidente Dilma Roussef, ao menos no âmbito do BNDES, a opção preferencial tem sido financiar o latifúndio agro-exportador, o que explica não apenas o avanço do processo de destruição dos biomas florestais amazônicos, o uso abusivo de agrotóxicos perigosos e de trabalho escravo; mas também a crise de empregos que o Brasil vive hoje, na medida em que as áreas de produção de commodities empregam pouca gente, o que aumenta o desemprego estrutural, já que o setor de serviços não possui capacidade para assimilar todos os que procuram emprego no país neste momento.

Desta forma, ao contrário do que se pode imaginar inicialmente, a ação mais radical que o próximo presidente poderá tomar não vai ser em áreas que se tradicionalmente espera, como no caso de uma ampla reforma agrária, mas nas opções de uso dos financiamentos públicos. É que está demonstrado pelos dados do BNDES que não será fácil operar um giro nos investimentos públicos, hoje priorizando a produção de commodities agrícolas, para retomar uma política industrial que dê a devida dinâmica à economia brasileira para, pelo menos, estancarmos a volta para o Século XVI que estamos vivendo neste momento.

 

Brasil campeão mundial do agronegócio: com a fome batendo na porta ou dentro de casa

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Quem não vive de olhos fechados para a realidade já tem a perfeita noção de que a fome transbordou para fora dos seus redutos tradicionais das áreas rurais mais pobres da região Nordeste para alcançar todo o território nacional. Agora, o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) veio confirmar isso com números dramáticos.

Como pode ser verificado pela figura abaixo, o Brasil possui hoje algo em torno de 33 milhões de pessoas passando fome, e o pior é que o ritmo de pessoas que estão entrando nessa condição é muito alto, o que significa dizer que ao final de 2022 o número de famélicos será ainda maior, já que inexistem políticas públicas que sequer tentem minimizar as causas estruturais do problema.  Além disso, os números mostram que 125,2 milhões de pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar, o que representa simplesmente a metade da população brasileira.

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Se olharmos as tendências regionais das diferentes categorias que expressam existência ou ausência de segurança alimentar veremos que embora os níveis mais altos de fome estejam nas regiões Norte e Nordeste, o problema continua avançando nas demais regiões, inclusive na mais rica que é a Sudeste.

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Como chegamos a esse quadro é relativamente simples de detectar, na medida em que a piora coincide com o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff e a aprovação da chamada PEC do Teto de Gastos que exterminou a maioria das políticas sociais que precariamente mantinham a comida na mesa dos brasileiros pobres. 

Os dados mostram ainda que a fome é mais grave entre pessoas negras e é pior ainda para mulheres negras. Esse dado não é um dado acidental, pois o Brasil continua sendo um país que nega direitos elementares a negros e mulheres, mas deixa ainda mais clara a relação entre uma sociedade hierarquicamente voltada para atender os interesses da minoria rica (e majoritariamente branca) da população.

A fome de metade da população deveria deixar os que ainda comem dentro dos níveis considerados seguros com um forte nível de indignação e preocupação. Mas não é o que verifico na maioria dos casos, pois a fome de tantos continua sendo tratada como elemento secundário nos debates políticos e no princípio de campanha eleitoral que já está ocorrendo.  Não debater uma questão tão fundamental em troca de generalidades como a necessidade de defender uma democracia que inexiste na prática para mim é o melhor caminho de garantir que nada vai mudar, independente de quem for eventualmente eleito.

Alguém mais atento poderá se perguntar após ler este texto sobre como é possível que o mesmo país que é um dos campeões mundiais na exportação mundial de commodities agrícolas seja também um que tenha tanta gente passando fome. O problema, meus caros, é que o latifúndio agro-exportador não produz alimentos, mas ração para alimentar rebanhos animais em outras partes do mundo, principalmente na China. Quem produz comida para ser colocada na mesa dos brasileiros é a agricultura familiar.  O problema é que enquanto o latifúndio tem sido generosamente financiado com subsídios públicos, a agricultura familiar foi fortemente sabotada a partir de 2016 quando se deu a ascensão via golpe parlamentar do presidente “de facto” Michel Temer.

Quem desejar ler o documento completo com os resultados da pesquisa feita pela Rede Penssar, basta clicar [Aqui!].

 

O lucro acima de tudo. Sucesso de exportação do agronegócio causa carestia dos alimentos dentro do Brasil

Para o economista José Baccarin, produtor nacional não abre mão de obter, cobrando em reais, mesmos lucros que aufere ao comercializar em dólar. Disparada de gastos com alimentação é turbinada também por fatores externos, como a pandemia e a guerra na Europa. “Mas não basta achar que este é um problema que veio de fora, e contra o qual não se pode fazer nada. Pode-se sim, e deve-se”, defende

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Por Pablo Nogueira para o Jornal da UNESP

A vertiginosa subida nos preços dos alimentos, que vem ocorrendo desde o começo do ano, colocou de novo na pauta dos noticiários assuntos que já se acreditava superados no dia a dia do brasileiro, como inflação alta,   insegurança alimentar e escassez de determinados produtos. Para tornar o cenário mais complicado, essa subida ocorre em meio a uma série de crises e choques que varrem a economia nacional e mundial, incluindo a instabilidade causada pela guerra na Europa entre Rússia e Ucrânia, a desaceleração econômica gerada pela pandemia de covid-19, a subida, igualmente desmedida, no preço dos combustíveis etc. Não é de se admirar, então, que na hora de identificar as causas para a disparada nos preços da comida no mercado interno muitas autoridades estejam apontando o dedo para fora do Brasil.

Porém, como explica o engenheiro agrônomo e economista José Giacomo Baccarin, há outros fatores igualmente importantes atuando dentro do Brasil para inflacionar os preços. Desde 2019, Baccarin, que é professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, campus de Jaboticabal, está à frente de um projeto de pesquisa, com apoio do Ministério da Saúde, via CNPq, para acompanhar os efeitos da internacionalização da agricultura brasileira sobre os preços dos alimentos ao consumidor. Nesta entrevista ao Jornal da Unesp, ele explica de que forma a condição de grande exportador de alimentos do Brasil contribui para que os preços disparem. E aponta iniciativas que poderiam ser adotadas pelas autoridades políticas e econômicas, de forma a preservar a segurança alimentar no país.

Por que o preço dos alimentos no Brasil explodiu nos últimos meses?

José Baccarin: De fato, estamos passando por um momento muito grave. Não diria só no Brasil, no mercado mundial também. Os índices de preços da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) no mês de março atingiram um patamar recorde, igualando-se a um patamar anterior lá de 1974, e inclusive superando um patamar recente muito alto também que foi de 2011.

Isso repercute muito fortemente no Brasil porque nosso país tem grande participação no mercado internacional. Somos exportadores de vários produtos, estamos envolvidos em várias cadeias produtivas. Em algumas, somos o principal exportador. Por isso o preço internacional acaba refletindo aqui.

Além disso, tivemos um problema muito sério nos últimos anos que foi a desvalorização da moeda nacional, especialmente em 2020. O real foi uma das moedas que mais perderam valor no mundo em 2020. E isso acirra a transmissão dos preços externos para o mercado interno, porque quanto mais desvalorizada estiver a moeda, mais reais os exportadores vão receber por venda em dólar e mais reais os importadores pagam nas compras em dólar. E, portanto, mais reais o consumidor interno acaba pagando pelos alimentos. Então, temos um problema sério no Brasil. Que está ligado à situação internacional, mas também à nossa política cambial, feita sem intervenção nenhuma e que deixou que esta desvalorização fosse repassada ao consumidor interno.

E temos que considerar o poder de compra. O preço está alto para quem é pobre ou muito pobre, para os ricos não. Os mais ricos gastam 5%, 10% da sua renda com alimentação. Entre os pobres o gasto é da ordem de 40%. Esse efeito tem um caráter social muito danoso, que atinge os mais pobres que passam a sofrer de mais insegurança alimentar. Estamos vendo no Brasil uma queda da renda da população, junto com aumento de desemprego, da informalidade no mercado de trabalho. A renda dos brasileiros vem caindo. Isso representa uma dupla pressão sobre a segurança alimentar: preços mais altos e renda em queda.

Isso acirra a transmissão dos preços externos para o mercado interno, porque quanto mais desvalorizada estiver a moeda, mais reais os exportadores vão receber por venda em dólar e mais reais os importadores pagam nas compras em dólar. E, portanto, mais reais o consumidor interno acaba pagando pelos alimentos.

José Baccarin

Há inflação alta em outros setores também, como no preço dos combustíveis. Qual a ligação entre esses fenômenos?

Baccarin: Em parte há sim uma conexão. O combustível, por exemplo, é um fator muito importante no transporte de alimentos no Brasil. Nossa matriz de transporte é muito baseada no caminhão, que usa o  diesel, um derivado do petróleo. Se pegarmos o período entre janeiro de 2020 e março de 2022, o índice de preços ao consumidor amplo no Brasil, o IPCA, subiu 18,7%. No ano passado ele subiu muito, 13%.  Enquanto o IPCA subiu 18,7%, o campo de alimentação e bebidas, que é um dos componentes do IPCA, subiu 29,2%.

E a alimentação no domicílio teve uma subida equivalente a quase o dobro do IPCA: 35,9%. O impacto do preço dos alimentos sobre o IPCA foi maior em 2020. Esse impacto diminuiu um pouco no ano passado mas foi alto ainda. No ano passado outros preços subiram também, especialmente pela pressão dos combustíveis. Isso gera mais um comprometimento da renda das pessoas., Por exemplo, o caso do gás de cozinha: além da comida, o combustível usado para preparar comida em casa fica mais caro. Então alimentação é afetada por outros preços, como o preço do petróleo ou o preço dos fertilizantes.

Mas eu diria que grande parte desse aumento que vemos se deve ao mercado mundial de alimentos, que passou por tantos acontecimentos recentes. Primeiro com a pandemia, e agora a guerra entre Rússia e Ucrânia. Tudo isso tem agravado a situação.

De que forma a pandemia e mais recentemente a guerra estão promovendo essa subida dos preços?

Baccarin: Vamos falar da pandemia. Ainda no começo, houve gente que disse o seguinte, e eu mesmo fui uma dessas pessoas: a pandemia vai produzir uma quebra de renda. As pessoas vão ter menos dinheiro, vão consumir menos. Logo não vai ocorrer pressão sobre o preço dos alimentos.

O que aconteceu é que os preços dos alimentos foram muito pressionados depois que a pandemia começou. Neste século, esses preços haviam atingido um pico em 2011, depois caíram um pouco. O índice da FAO mostra isso: até 2018 os preços vinham se mantendo em um patamar mais baixo, embora mais alto que no começo do século. A partir de 2020, os preços explodiram.

As explicações que temos para os efeitos da pandemia são preliminares ainda. Primeiro houve problemas de abastecimento. As cadeias de suprimentos quebraram, tivemos problemas de transporte devido às restrições de deslocamento entre países. Alguns países começaram a reter produção, seguraram suas exportações. E certos países importadores começaram a aumentar seus estoques de alimentos. Tudo isso gerou um abalo na cadeia de suprimentos. A oferta não cresceu tanto quanto deveria crescer.

E eu penso que aconteceu também outro efeito, que ainda não foi bem medido mas que no Brasil ficou evidente. Durante a pandemia, as pessoas sofreram restrições nas suas possibilidades para gastar dinheiro. Não puderam viajar e ainda ficaram mais em casa. Então, quem manteve a renda transferiu para a alimentação o dinheiro que gastava com outras despesas. Se você pegar os dados das vendas de supermercados em 2020 vai constatar que foram as maiores do século. Elas capturaram dinheiro que antes era gasto com a chamada alimentação fora de casa, em restaurantes. Nesse período os gastos com alimentação em casa cresceram35,9% e a alimentação em bares, restaurantes e lanchonetes cresceu 13,6% apenas. Quase um terço, ou seja, cresceu bem menos. E as pessoas transferiram gastos para a comida.

Isso provavelmente aconteceu em outros países também, essa transferência de outros gastos para gastos em supermercado, para comida. Pode parecer algo um pouco contraditório porque, durante a pandemia, houve crescimento do desemprego no mundo todo. Mas não dá para esquecer que o alimento é um bem essencial. Numa crise, as pessoas cortam outros gastos e tentam manter alimentação, esse é um padrão do consumo de alimentos. Nos tempos de bonança, a tendência é que se aumentem muito os demais tipos de gastos, e as despesas com alimentos cresçam pouco. Nas crises, cortam-se muitos os gastos nas outras áreas, mas os gastos com alimentos pouco diminuem.

Em relação à guerra da Rússia com a Ucrânia, o que temos? Existem hoje dois continentes exportadores de alimentos. As Américas, especialmente os Estados Unidos, Brasil e Argentina. E o outro é a Europa, embora exporte bem menos do que a América. E a Ásia e a África são basicamente continentes importadores.

E no contexto da Europa, Ucrânia e Rússia são exportadores de alimentos. No caso da Rússia isso é recente. Na primeira década do século a Rússia importava muitos produtos alimentícios do Brasil, assim como acontecia com a China. Só que a China continua a ser um grande importador, enquanto a Rússia parou, porque recuperou a sua produção agrícola e começou a produzir muito, assim como a Ucrânia. Ambos são países de grande extensão territorial, e a Ucrânia possui algumas das melhores terras para agricultura do mundo, com alta fertilidade. Eles são fornecedores de alimentos para outras nações da Europa.

Outra questão é a da produção de fertilizantes, pois esses dois países também desempenham um papel importante. O Brasil apresenta uma grande dependência da importação de fertilizantes, o que é um erro. Como é que um setor agrícola tão forte como o nosso pode apresentar uma dependência de 85% da importação do insumo básico para agricultura, que são os fertilizantes? No passado, essa dependência já foi bem menor. No meu modo de entender, a estratégia que o Brasil adotou para essa área foi equivocada.

Nós dependemos da importação de fertilizantes, e dois países que nos fornecem são Rússia e Ucrânia. A guerra afetou essa importação, e o preço do fertilizante ficou mais caro. Além disso, o preço do petróleo também encareceu, algo que costuma acontecer em momentos de crise, e ainda mais considerando-se que a Rússia é um grande produtor de petróleo também, e de gás. Ou seja, os preços da energia subiram também.

Então houve diminuição na exportação de alimentos, na exportação de fertilizantes e um aumento do preço de petróleo e do gás combustível. Tudo isso impactou os custos de produção dos alimentos, trazendo uma pressão adicional. O salto nos preços dos alimentos agora, de fevereiro para março de 2022,  foi impressionante, ficando entre 12% e 15%.

E somando-se à guerra surge um clima de instabilidade mundial. Os países começam a tomar atitudes defensivas, tais como reter produção. O Egito fez isso, reteve a exportação de alguns produtos, por exemplo. Tudo isso acaba gerando impactos, criando instabilidade e aumentando o preço dos alimentos.

Mas o Brasil é um dos principais exportadores de alimentos. Como é possível que o impacto aqui esteja sendo tão forte?

Baccarin: Acho que é justamente por isso. Eu digo aos meus alunos que o problema do preço dos alimentos no Brasil não se deve à falta de produção, mas sim ao fato de que o Brasil tem uma alta produção em muitas cadeias. Exportamos carnes, soja e derivados, açúcar, milho… De maneira geral, nós temos uma produção acima do consumo nacional. ‘Seria possível pensar, então, que isso é garantia de que sempre vai sobrar produto para o mercado interno.

Mas, se não for feita uma intervenção pelo poder público, os preços internos não se desvinculam dos preços internacionais.

Vamos imaginar um produtor brasileiro com uma tonelada de açúcar em estoque. Naquele momento, o preço no mercado internacional seria mil dólares a tonelada. Esse produtor vai cobrar, no mercado interno, o correspondente a mil dólares. Se o câmbio estiver quatro por um, ele vai cobrar R$ 4 mil. Se o câmbio se valorizar, e passar a cinco por um, ele vai cobrar R$ 5 mil. Então, o que ele receber lá fora, repassa aqui dentro. Se o preço lá fora subir, passar de mil dólares para mil e quinhentos dólares, o produtor vai repassar o aumento de preço lá fora aqui dentro.

Esse é o problema geral do consumidor brasileiro: nossa grande vinculação aos preços internacionais pelo lado das exportações. Segundo a racionalidade do empresário, não há por que vender aqui dentro mais barato do que vende lá fora.

Esse é o problema geral do consumidor brasileiro: nossa grande vinculação aos preços internacionais pelo lado das exportações. Segundo a racionalidade do empresário, não há por que vender aqui dentro mais barato do que vende lá fora.

José Baccarin

Existe outro grupo de produtos que são pouco expressivos no mercado internacional. Nós nem os exportamos muito, nem importamos muito. Entram aí o arroz, o feijão, as hortaliças… Nesses casos, pode acontecer uma insuficiência de produção em alguns anos. Estamos passando por isso agora.

O que mais chamou atenção neste começo de ano? Eu vi cenoura, tomate, com preço lá em cima…Isso não se deve ao mercado internacional, são deficiências na produção interna. Às vezes, a recuperação pode ocorrer até no mesmo ano. Daqui a pouco, chega o inverno, os produtores vão plantar mais tomates, mais cenouras, a oferta vai crescer e o preço vai cair.

Então, existe um grupo de produtos cujos preços estão mais vinculados às condições internas. Mas o mais geral, que vejo pelos números que eu analiso, é que o Brasil exporta muito, e o brasileiro não consegue se ver livre dos preços internacionais. Isso não é algo de todo ruim, tem um aspecto positivo.  É uma forma de obter renda, incentivar novos investimentos, fazer a agricultura crescer e tudo mais. Agora, num momento emergencial, quando vemos os preços irem lá para cima, não dá para entender por que o governo não intervém. Eu acho que temos que intervir nos momentos emergenciais.

O que poderia ser feito?

Baccarin: Existem mecanismos para isso, por exemplo, via imposto de exportação, ou via intervenção no câmbio, O Brasil tem reservas internacionais vigorosas hoje. US$ 350 bilhões. É possível valorizar a moeda nacional se ela se desvalorizar muito, como aconteceu em 2020. Ou criar um imposto sobre as exportações, para fazer com que parte do valor a ser recebido pelo produtor lá fora seja retido. Tudo isso está previsto na legislação brasileira. Não seria preciso criar uma lei nova. Nós temos as leis mas não as aplicamos desde a década de 1990.

Não podemos considerar que o agronegócio brasileiro seja um sucesso se ele contribui para aumentar a insegurança alimentar e nutricional do país. Somos de fato um grande exportador de alimentos e não atendemos a população brasileira? Isso está errado.

E os brasileiros estão cortando o consumo de proteínas e consumindo cada vez mais calorias vazias.  Cortam-se proteínas, carnes. A carne bovina foi campeã. Nesse processo de troca de produtos diminui a qualidade nutricional. Até porque os produtos ultraprocessados não subiram tanto quanto os produtos minimamente processados. Então os preços agem também contra a melhoria da qualidade nutricional da refeição.

Então não é falta de produção, é uma grande vinculação ao mercado internacional que é interessante ao longo do tempo mas nesses momentos nós devíamos ter um mecanismo público para impedir que esses aumentos lá fora sejam repassados para o mercado interno.  Algumas pessoas criticam, dizendo que isso implica adotar políticas econômicas que não são liberais. Bom, neste momento todos os países estão adotando políticas não liberais, certo? E o Brasil tem que pensar nos interesses da sua população.

Além disso, deve haver políticas para aumentar a demanda, fazendo com que a renda do brasileiro se recupere. Isso demora mais. O auxílio emergencial, que foi liberado a partir do segundo semestre de 2020, teve um impacto muito forte para o aumento do consumo. A população em situação de pobreza no Brasil caiu de vinte e sete milhões pra nove milhões num prazo de um ou dois meses. Então, há também que se pensar em ações mais contundentes pelo lado da transferência de renda e do aumento da demanda dos brasileiros e brasileiras.

E também controle de preço daqueles produtos que pressionam o custo de produção. O Brasil não tem que seguir o mercado internacional no preço do petróleo. O lucro da Petrobras vem do custo da gasolina e do diesel para o brasileiro. A lucratividade que a Petrobras teve agora em 2021 é recorde mas serviu pra quê? Para novos investimentos na Petrobras? Ou para beneficiar investidores em grande parte moradores dos Estados Unidos? Se controlarmos alguns preços no país, e eu diria que o diesel e a gasolina e o gás de cozinha são os mais importantes, também haveria diminuição de preços de alimentos.

Agora, depende de vontade política, evidentemente. Não me parece que, nesse momento no país, haja vontade de política de agir nessa direção. Mas acho que é nessa direção, e na recomposição da renda do brasileiro, que deveríamos estar trabalhando nesse momento. E não achar que o que está acontecendo é uma fatalidade, um problema que vem de fora, criado por russos e ucranianos, e contra o qual não se pode fazer nada. Sim, podemos fazer algo. E temos que fazer

E lá fora, será que o preço dos alimentos pode baixar novamente?

Baccarin: Vi um artigo recentemente dizendo que o patamar dos preços da alimentação não vai voltar ao que era antes. Eu não diria isso. Em 1974 aconteceu uma subida extrema do preço dos alimentos, como se fosse uma subida de montanha-russa, e depois os preços despencaram igual à descida na montanha-russa. Então não dá para afirmar que atingimos outro patamar nos preços. Entendo que há possibilidades de que o mundo possa voltar a registrar preços bem menores. Vamos tomar um pouco mais de cuidado com essas previsões tão alarmistas. Temos a ciência e a tecnologia para podermos voltar a equilibrar mais a produção com o necessário crescimento do consumo de alimentos pelos mais pobres. Para ocorrer, vai depender de preços melhores.

Imagem acima: Deposit Photos


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Este texto foi inicialmente publicado pelo Jornal da UNESP [Aqui!].