Investigação da Repórter Brasil desvela aquilo que o “greenwashing” da Klabin S/A tenta esconder

Klabin atrai investidores com papel e celulose ‘verdes’, mas dissimula atividade de mineração milionária. Klabin não declara, mas tem interesses minerários registrados em 194 áreas localizadas em 3 estados brasileiros e, na última década, extraiu o equivalente a quase R$ 83 milhões em minerais. Pesquisa está sendo feita em áreas de preservação sem o conhecimento de órgãos ambientais

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Sede do Parque Ecológico da Klabin S/A em Telêmaco Borba (PR)

Maiara Marinho e Naira Hofmeister

Com o slogan “Invista na Klabin e construa um futuro sustentável” e uma extensa lista de premiações por seu compromisso com a preservação do meio ambiente, a produtora de papel e celulose brasileira Klabin S/A tem atraído atenções e recursos no mercado financeiro – no final de 2022, a empresa detinha pelo menos 680 milhões de dólares em ações e títulos vendidos a dez dos seus maiores financiadores globais e viu o número de pessoas físicas que compram seus papéis na bolsa brasileira saltar de 10 mil para 252 mil.

O que seus investidores provavelmente ignoram é que a Klabin é também uma empresa de mineração, que tem interesses minerários registrados em 194 áreas em três estados brasileiros e, na última década, extraiu do solo substâncias com valor de mercado equivalente a R$ 82,8 milhões – sem contar a correção da inflação. E que parte das jazidas exploradas ou requeridas pela papeleira coloca em risco áreas de preservação ambiental, mananciais hídricos e territórios de povos tradicionais brasileiros.

Klabin quer minerar dentro da maior extensão de Mata Atlântica preservada no Brasil, o Vale do Ribeira (Foto: Manoela Meyer/ISA)

Pelas normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), segmentos que aportem menos de 10% das receitas de uma empresa listada na bolsa de valores não precisam ser declarados publicamente. Por isso, nem os balanços financeiros, nem os relatórios de sustentabilidade ou os prospectos de títulos que a Klabin coloca no mercado mencionam a mineração entre suas atividades – esses são os principais canais de informação para investidores.

“Não há qualquer vínculo [da mineração] com os negócios e a receita financeira da empresa”, argumenta a Klabin – e, por isso, não haveria “indicação de divulgação” da atividade nos relatórios financeiros. Apesar disso, é a própria companhia que diz que usa cascalho, saibro e brita extraídos de jazidas minerais na pavimentação e manutenção de estradas para melhorar o tráfego de caminhões em suas áreas operacionais. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui. A Klabin também observa que a mineração está listada no Estatuto Social da empresa como uma de suas atividades.

Ainda assim, observadores do mercado financeiro criticam o que consideram falta de transparência. “Quando o investidor vai comprar um título emitido pela Klabin, ele está comprando de quem? Da área de celulose ou da área de mineração? Como é que a pessoa vai avaliar se a empresa tem ou não políticas sustentáveis se uma parte das suas atividades não está explicitada?”, pondera Luiz Macahyba, especialista em regulação financeira e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Áreas requeridas pela papeleira podem colocar em risco ecossistemas e comunidades tradicionais no Brasil (Foto: Maurício de Carvalho Nogueira / ISA)

Segundo o Observatório da Mineração, o setor é um dos maiores emissores de CO2 do país. Mas o inventário de gases de efeito estufa da Klabin tampouco aponta qual o tamanho da contribuição de emissões feita por seu braço minerador. “As emissões da Klabin são calculadas dentro das categorias definidas pela metodologia, não sendo trabalhada a separação por tipologia de processos”, explica a empresa, acrescentando que há auditoria de terceira parte, “o que garante a veracidade e credibilidade das informações”.

“Sob a perspectiva das mudanças climáticas, dos direitos dos povos tradicionais e da transparência, divulgar informações de todos os segmentos operacionais de uma empresa é muito melhor do que não informar”, pondera Moira Birss, Diretora de Clima e Finanças da Amazon Watch, uma organização internacional de proteção da floresta amazônica e de seus povos.

Pesquisa sem licenciamento

Os requerimentos ativos de mineração registrados pela Klabin estão concentrados no Paraná (136) e em Santa Catarina (57), segundo os dados públicos disponíveis na Agência Nacional de Mineração (ANM). 

No Paraná, pelo menos duas regiões de interesse minerário da Klabin estão sobrepostas a uma importante área de preservação, embora o órgão ambiental regional, chamado Instituto Água e Terra (IAT) não tenha conhecimento.

A APA Serra da Esperança, no município de Guarapuava, protege o entorno do Parque Estadual Salto São Francisco da Esperança, no centro-sul do estado. Foi criada para assegurar a integridade dos mananciais de abastecimento público de água e abriga espécies florestais raras ou em risco de extinção, como a araucária, árvore símbolo do Paraná.

APA onde Klabin prospecta minerais protege parque onde fica a queda mais alta do sul do Brasil, parte do sistema hídrico que abastece a região (Foto: Paraná Turismo/Divulgação)

É ali que a Klabin busca minérios de construção civil, conforme registrado em dois pedidos diferentes – para um deles, já obteve autorização de pesquisa e efetivamente iniciou as atividades, sem, entretanto, obter licenciamento do IAT: “É impossível que tenhamos feito liberação para a atividade, pois não há análise de nenhum estudo de impacto ambiental pelo estado”, informou o órgão, através da assessoria de imprensa. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.

Requerimentos minerários da Klabin sobrepostos à APA Serra da Esperança, que protege o Parque Estadual Salto São Francisco da Esperança, no Paraná (Mapa: Rodolfo Almeida/Repórter Brasil)

A pesquisa é uma etapa prévia à extração, mas inclui perfuração de poços e sondagem. Fundador do Observatório da Mineração – site especializado no monitoramento da atividade no Brasil – Maurício Angelo alerta que, embora usualmente a pesquisa não seja uma atividade com grandes consequências, quando feita em região ambiental sensível, o impacto pode ser “relevante justamente pela área de influência”.

Segundo a chefe das duas unidades de conservação, Alline Hlatki, o Plano de Manejo da APA não permite mineração dentro da área. “Qualquer atividade de mineração, por mínima que seja, irá sim impactar o meio ambiente”, justifica.

Mata Atlântica em risco

Em 2022, a empresa expandiu seus interesses minerários para o estado de São Paulo de forma inédita, e obteve autorização para pesquisa mineral dentro do Vale do Ribeira, região que se estende até o norte do Paraná e concentra a maior área de Mata Atlântica contínua preservada no Brasil.

A pesquisa foi autorizada em uma área de 1.586 hectares, que recaem, em sua maioria, sobre a parcela paulista do território verde, onde também há um importante manancial hídrico e inúmeras Áreas de Preservação Permanente (APP) que protegem rios e nascentes de cursos d’água, além de parcelas de terreno privadas registradas como Reserva Legal de propriedades rurais, que, pelo Código Florestal Brasileiro, não podem ser tocadas.

Vale do Ribeira abriga muitos cursos d’água, alguns deles dentro da área requerida para mineração pela Klabin (Foto: Claudio Tavares/ISA)

A Klabin não informa em que pontos do perímetro autorizado está realizando a pesquisa, mas diz que “não possui jazidas ocupando qualquer área de preservação permanente”. Segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), só é necessária autorização específica para pesquisa mineral na região se houver “supressão de vegetação ou intervenção em áreas de preservação permanente”. Até o fechamento desta reportagem, a Klabin não havia registrado nenhum pedido nesse sentido. Leia a íntegra aqui.

Área onde Klabin busca minerais possui diversidade de recursos hídricos e ambientais onde atividade é vedada por lei (Mapa: Rodolfo Almeida/Repórter Brasil)

A empresa diz reconhecer o valor ambiental do Vale do Ribeira, mas salienta que a região “não é composta de Mata Atlântica em todo o seu território” e que possui “áreas de mineração garantidas pela força dos licenciamentos, de acordo com o que prevê a legislação”.

Uma contradição que não passa despercebida para ambientalistas. “É muito ruim uma empresa que se diz ecológica, mas está aí tentando viabilizar projetos de mineração em espaços protegidos”, condena o pesquisador do ISA (Instituto Socioambiental), Antonio Oviedo.

Vale quilombola

A maior parte da área onde a Klabin pesquisa minérios no Vale do Ribeira está na porção paulista do território que abriga a Mata Atlântica, mas é o fragmento do lado do Paraná que preocupa os moradores do Quilombo do Varzeão, vizinho do empreendimento e também de uma base florestal da Klabin, no município paranaense de Doutor Ulysses. A comunidade reúne 35 famílias de descendentes de escravizados que reivindicam a regularização do território desde 1999, segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo e o Mapa de Conflitos da Fiocruz.

Quilombo do Varzeão está localizado em Doutor Ulysses, no Paraná, e é vizinho de empreendimentos da Klabin (Mapa: Rodolfo Almeida/Repórter Brasil)

Morador do quilombo, Claudinei Rodrigues testemunhou a transformação da área, em anos recentes, provocada pela circulação de caminhões da papeleira. “Para passar os ‘bitrem’ [tipo de caminhão que tem dois eixos de carga acoplados à carroceria] eles precisam abrir, reformar, fazer ponte, reestruturar a estrada. Daí uma estrada que tinha 6 metros de largura, eles transformam em 20 metros”, revela. A empresa confirma apenas a ampliação de 5 quilômetros de uma via de acesso local, feita em 2019, em parceria com a prefeitura, além da realização de obras de manutenção em estradas da região.

A comunidade também se sente lesada porque a Klabin utilizou em seus trabalhos o cascalho extraído de uma pedreira inserida dentro da área reivindicada pelo quilombo. “Essa cascalheira passa no caminho da minha casa, é nossa”, observa Rodrigues, que gostaria de ter usado o material para melhorar o acesso da própria comunidade “porque tá difícil de ir pra lá”.

Moradores da comunidade gostariam de ter aproveitado o cascalho da comunidade para pavimentar as ruas internas (Foto: Claudinei Rodrigues)

A Repórter Brasil consultou as bases de dados da ANM e não localizou nenhum título minerário para cascalho com autorização de extração na área reivindicada pelos quilombolas. Mas a Klabin diz que, na época (2019), o órgão responsável pela concessão da autorização de extração de cascalho para esta modalidade era o IAT, e que a cascalheira estava regularizada. Por outro lado, encontramos 12 requerimentos minerários de outras empresas sobrepostos ao território.

Investidores silenciam

Em seus esclarecimentos, a Klabin diz que a mineração “é uma atividade comum a outras indústrias do setor florestal para o revestimento de estradas não pavimentadas” (íntegra aqui), porém, enquanto a empresa possui 194 requerimentos ativos registrados na ANM, Suzano e Fibria (que se fundiram em 2019), tem, cada uma, apenas um pedido de mineração protocolado.

A Klabin também é uma das maiores arrecadadoras nacionais do imposto sobre mineração, chamado CFEM, (sigla para Compensação Financeira para Exploração Mineral) para cascalho – superando várias empresas que têm a mineração como atividade principal.

Em 2022, a empresa declarou ao governo ter extraído pouco mais de R$  9,9 milhões em minérios – acima da média de extração obtida entre 2012 e 2022, que foi de R$ 8,1 milhões. Nesses dez anos, o pico de extração ocorreu em 2019, quando a operação alcançou quase R$17 milhões em cascalho, diabásio, saibro e outras substâncias semelhantes. Conforme a ANM, esses valores servem de base para o cálculo da CFEM devida – e podem ter “como fato gerador a venda ou o consumo do bem mineral”, ou seja, não necessariamente é um valor obtido com a comercialização do material. Veja os esclarecimentos da ANM aqui.

De acordo com levantamento da plataforma Florestas & Finanças, os maiores investidores da Klabin S/A são o Bank of New York Mellon, que detinha investimentos da ordem de US$ 220 milhões na papeleira, em 2022, a gestora de investimentos BlackRock (US$ 170 milhões) e diversos fundos de pensão de funcionários públicos e trabalhadores de países como Noruega (Government Pension Fund Global), Holanda (Pensioenfonds Zorg en Welzijn e Algemeen Burgerlijk Pensioenfonds), Japão (Government Pension Investment Fund e Japan Mutual Aid Association Of Public School Teachers) e outros. 

A reportagem entrou em contato com as empresas que detêm investimentos na Klabin e perguntou se tinham conhecimento das atividades de mineração da companhia. A BlackRock diz que não comenta sobre empresas de maneira individual “devido ao seu papel fiduciário”. Esta é a maior gestora de ativos do planeta e detém 4,23% das ações da companhia no Brasil, sendo listada pela CVM como uma das suas principais acionistas.

O Government Pension Investment Fund do Japão diz que “90% dos investimentos em ações da GPIF adotam o método de investimento passivo”, ou seja, que eles delegam a gestoras de ativos a escolha das empresas onde vão colocar seu dinheiro. Mas acrescentou que cobra compromissos Ambientais, Sociais e de Governança (ASG) nessas operações.

íntegra dos esclarecimentos está aqui. Os demais fundos não enviaram comentários, mas o espaço permanece aberto.


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Esta reportagem foi originalmente publicada pela Repórter Brasil [Aqui! ].

Crime organizado e extrativismo na América Latina

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Por Raúl Zibechi para o “La Jornada”

O crime organizado, a delinquência paraestatal e o narcotráfico, são as formas assumidas pela acumulação por espoliação/extrativismo na zona do não-ser, ou seja nos territórios dos povos originários, negros e camponeses da América Latina. Embora costumem ser apresentados separadamente, como se não tivessem nenhuma relação, a violência criminal, os estados-nação e o modelo econômico formam o mesmo quadro para a desapropriação dos povos.

Esta conclusão deve-se ao trabalho do pesquisador Emiliano Teran Mantovani em um recente ensaio em que ele vincula as três modalidades assinaladas*. Sabemos que o crime organizado espolia bens comuns dos povos, rompe os tecidos comunitários, explora e assassina pessoas, além de degradar o ambiente com suas iniciativas “econômicas”, com o apoio tanto das empresas privadas como dos estados. O que mais me interessa do trabalho de Teran é sua análise que considera o crime organizado como extrativismo, desde o deslocamento e intimidação de populações ao controle de minas e territórios produtivos, finalizando na gestão dos “processos e rotas de comercialização de commodities”.

Em sua opinião, devemos pensar o crime organizado como “uma clara expressão da política do extrativismo no século XXI”, portanto, muito além da dinâmica econômica que representa. Neste ponto, vejo uma estreita relação com o pensamento de Abdullah Öcalan, quando argumenta que “o capitalismo é poder, não economia”. Em sua fase decadente, o capitalismo é violência armada e genocídio, por mais difícil que seja aceitar.

Em uma de suas páginas mais brilhantes, Teran estabelece uma gradação do modo de atuar do crime, que nos remete aos primórdios do capitalismo descrito por Karl Polanyi: subjugando a população local através do terror; controle das formas econômica buscando o monopólio; incorporar parte da população à economia “criminosa”, proteção desse setor com serviços próprios, naturalização da violência e, finalmente, converter “parte da população em máquinas de guerra” ao integrá-la “subjetiva, cultural, territorial, econômica e politicamente a suas lógicas de violência organizada”.

Os pontos de confluência entre crime organizado e extrativismo são evidentes: enfrentam a população que resiste ou não se dobra, se baseiam na mesma economia da desapropriação e buscam a proteção das armas, as do Estado e as próprias. Há algo mais, muito perturbador: o crime organizado “tem conseguido ser cada vez mais um fator de canalização de descontentamento e mal-estar popular, podendo também captar uma parte das pulsões contra-hegemônicas, de sublevação, de antagonismo com o poder, e potencialmente dar forma a essas possíveis insurgências”, argumenta Teran.

Terrível, mas real. O que nos deve levar a refletir, nós que ainda desejamos mudanças profundas, anticapitalistas, que cota de responsabilidade nos cabe nesta decisão de tantos jovens de somar-se à violência criminal. Uma primeira é romper com o afã de mascarar a realidade, de não querer ver que o capitalismo realmente existente é guerra de desapropriação ou quarta guerra mundial, como a nomeiam os zapatistas. O crime e a violência, para chegar a ser o principal modo de acumulação do capital, devem contar com o apoio e a cumplicidade dos estados, que vão se transformando em estados para a desapropriação.

Por isso o problema não é a ausência do Estado, como diz o progressismo. Nada ganhamos com ampliar sua esfera, sendo o primeiro responsável pela violência contra os povos. Uma segunda questão é compreender que “os tecidos sociais são em si mesmos um campo de batalha, um campo em disputa”, como aponta Teran. O crime, o narcoparamilitarismo (indisociável dos aparatos armados do Estado), estão empenhados em romper as relações sociais para reconstruí-las em função de seus interesses, daí a violência racista e os feminicídios.

Por isso tornaram-se imprescindíveis as autodefesas ancoradas nas comunidades que resistem. Não só devem defender e cuidar da vida e da natureza, mas também das relações humanas. Por último, não poucos intelectuais falam das “alternativas ao extrativismo”, sempre pensando em termos tecnocráticos e que serão implementados desde cima. Impossível.

Hoje as alternativas reais são as Guardas Indígenas, Quilombolas e Camponesas do Cauca colombiano, os governos autônomos e as demarcações autônomas da Amazônia, as retomadas de terras mapuches; o Exército Zapatista de Libertação Nacional, o CNI [Conselho Nacional Indígena], as fogueiras de Cherán, as guardas comunitárias e as múltiplas formas de autodefesa. Não há atalhos, só a resistência abre caminhos.

*Emiliano Teran Mantovani, “Crimen organizado, economías ilícitas y geografías de la criminalidad: otras claves para pensar el extractivismo del siglo XXI en América Latina”, en Conflictos territoriales y territorialidades en disputa, Clacso, 2021.


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Este artigo escrito inicialmente em espanhol foi publicado pelo jornal “La Jornada” [Aqui!].

Bolsonaro promove garimpo em terras indígenas e “delega” mineração empresarial ao MDB, aponta dossiê

Quarto relatório da série Dossiê Bolsonaro mostra que áreas invadidas nas terras Munduruku e Yanomami triplicaram desde 2019, enquanto o presidente criou resoluções para facilitar o garimpo; no Congresso, bolsonaristas financiados pela mineração tentam legalizar extração criminosa em reservas e garantir benefícios ao setor

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Por Luís Indriunas para o “De olho nos ruralistas”

— Eu tenho vontade de garimpar. Eu já garimpei também.  Eu tinha um jogo de peneira, tinha uma bateia, sempre estava no meu carro e não podia ver um córrego que caia de boca lá.

Dossiê mostra atuação direta de bolsonaristas em benefício de garimpeiros e mineradores

A frase do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), dita para apoiadores em abril de 2020, mostra sua obsessão pelo garimpo. A candidato à reeleição já expressou, mais de uma vez, seu desejo de ressuscitar os tempos de Serra Pelada, no Pará, quando, nos últimos anos da ditadura militar, um verdadeiro formigueiro humano de mais de 100 mil garimpeiros se formou para extrair metais preciosos do seio da terra, trabalhando em condições degradantes e, por vezes, sub-humanas.

Mas, ao mesmo tempo em que trabalha para beneficiar cooperativas e grupos criminosos atuando no garimpo ilegal na Amazônia, Bolsonaro mantém os incentivos às grandes mineradoras e atende aos interesses do MDB na composição de cargos da Agência Nacional de Mineração (ANM).

Essa política dual adotada no setor minerário é o tema do relatório “As Veias Abertas”, o quarto da série Dossiê Bolsonaro, do De Olho nos Ruralistas, que explora a política fundiária do atual governo.

Os três primeiros documentos da série detalham a face bananeira do presidente, o loteamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a ocupação do Ministério do Meio Ambiente (MMA) pelo setor privado, respectivamente.

Na sua articulação pelo avanço do garimpo, Bolsonaro tem o apoio do Grupo de Trabalho da Mineração na Câmara dos Deputados, cujo relator, Joaquim Passarinho (PL-PA), defende a exploração mineral em terras indígenas. Enquanto a lei não vem, o presidente assinou oito decretos que beneficiam pequenas e médias mineradoras e facilitam o garimpo ilegal. Entre eles, está o nº 10.965, de 11 de fevereiro de 2022, que prevê que a ANM estabeleça “critérios simplificados para análise de atos processuais e procedimentos de outorga”, principalmente no caso de empreendimentos de pequeno porte. A normativa beneficia garimpeiros e a indústria de construção civil, que se utiliza de minerais como argilas, cascalhos, brita, calcário, cálcio e rochas ornamentais.

Clique aqui para baixar o dossiê na íntegra.

Invasões tripiclam entre os Yanomami e os Munduruku 

Durante o governo Bolsonaro, houve um aumento de 334% na área de mineração destinada ao garimpo de ouro e estanho nas terras dos Munduruku, no sudoeste do Pará. Os dados são provenientes da plataforma MapBiomas e foram compilados com exclusividade pelo De Olho nos Ruralistas para o relatório “As Veias Abertas“.

Bolsonaro foi o primeiro presidente a visitar um garimpo ilegal, em RR. (Foto: Reprodução)

A área destinada somente ao estanho teve um aumento exorbitante de 4.215,5%. Em 2018, o garimpo deste minério ocupava 53,6 hectares, passando a 2.314 hectares em 2021. No mesmo período, a Terra Indígena (TI) Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), apresentou um aumento de 475,9% na área garimpada por ouro. O garimpo na TI Yanomami, na divisa entre Amazonas e Roraima, teve aumento de 328,6%.

Na TI Munduruku, no Pará, a exploração ilegal de minerais tem provocado uma série de problemas para a etnia, como a contaminação de rios, peixes e pessoas por mercúrio, além de ampliar os conflitos por terras. Um estudo publicado em 2021 por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a ONG WWF-Brasil, mostrou que, de cada dez indígenas participantes, seis apresentavam níveis de mercúrio acima de limites seguros. Entre as consequências da contaminação pelo metal estão a malformação em bebês, doenças neurológicas, problemas de visão e audição e problemas de neurodesenvolvimento — este último afetando 15,8% das crianças do território.

Pará e Roraima foram os estados onde o garimpo em escala não-industrial mais avançou durante o governo de Jair Bolsonaro. A área em Roraima, que era de 462,5 hectares em 2018, passou a 1.657,9 hectares em 2021 – um aumento de 258,5%. Estão nesse local boa parte dos 20 mil garimpeiros que os Yanomami estimam haver em seu território, minerando ouro e cassiterita.

Foi em Roraima, em outubro de 2021, que Bolsonaro se tornou o primeiro presidente da República a visitar uma área de garimpo ilegal, localizada dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol. Ali, perante dezenas de garimpeiros, ele defendeu a aprovação no Congresso do Projeto de Lei (PL) nº 191/2020, de autoria do Poder Executivo, que estabelece condições simplificadas para a pesquisa e a lavra de recursos minerais em terras indígenas.

Garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku. (Foto: Cristhian Braga/Greenpeace)

Na Câmara, bolsonaristas lideram grupo de trabalho

Diante da ofensiva da exploração mineral em todo o território nacional, a abertura de um Grupo de Trabalho (GT) para a revisão do Código de Mineração tornou-se um dos principais instrumentos de aliança entre o lobby do setor minerário — tanto da mineração industrial quanto do garimpo — e os interesses dos parlamentares.

Na Câmara, o deputado Joaquim Passarinho (PL-PA) defende os mesmos interesses que Bolsonaro (Foto: Reprodução/Facebook)

Instituído em 16 de junho de 2021 pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o GT Minera surgiu uma semana depois da polícia reprimir um protesto de indígenas contra a entrada em votação do PL 490/2007, que institui o marco temporal, e também contra o PL 191/2020, que muda as regras da mineração e possibilita a exploração em terras indígenas.

Entre os parlamentares que atuam na articulação do lobby do garimpo, os mais expressivos são o deputado federal Joaquim Passarinho, hoje relator do GT, e o senador Zequinha Marinho, ambos do PL do Pará. Passarinho defende a legalização da atividade garimpeira e a oferta de áreas públicas onde o impacto ambiental seja menor. Ele também é um interlocutor frequente de políticos locais, como o vereador de Itaituba (PA) Wescley Tomaz (MDB), considerado o “vereador dos garimpeiros” e com acesso livre à alta cúpula do governo federal, conforme revelado pela Agência Pública.

Um setor que tem apresentado mobilidade importante no governo Bolsonaro é vinculado à mineração de rochas ornamentais e construção civil. O Sindicato da Indústria de Rochas Ornamentais, Cal e Calcários do Espírito Santo (Sindirochas-ES), o Centro Brasileiro dos Exportadores de Rochas Ornamentais (Centrorochas) e a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) estão entre as organizações recebidas pelo Ministério de Minas e Energia (MME). O principal articulador junto ao governo Bolsonaro é o deputado ruralista Evair de Melo (PP-ES), que chama a atenção pela interlocução com o setor minerário. Candidato à reeleição, o deputado bolsonarista, que costuma receber doações do agronegócio, obteve R$ 30 mil de Gustavo Probst, um dos diretores da Colores Mármores e Granito, exportadora de rochas ornamentais.

Ex-relatora e membro do GT, deputada é financiada por mineradoras

Em Minas Gerais, o bolsonarismo conta com Greyce Elias para a revisão do Código de Mineração. Logo que iniciou seu mandato, ela atuou junto à ANM, promovendo audiências, reclamando da falta de estrutura em visitas às instalações da agência e solicitando informações sobre o trabalho dos servidores. A deputada defende a fusão da agência com o Serviço Geológico do Brasil (antiga Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), empresa pública responsável por gerar e disseminar conhecimento geocientífico. Seu objetivo era aumentar os quadros da ANM para acelerar as autorizações de lavra.

Deputada bolsonarista é uma das articuladoras das mineradoras junto ao GT Minera. (Foto: Reprodução)

O interesse pela ANM não é novo para Greyce. Seu marido, Pablo Cesar de Souza, foi indicado por Aécio Neves (PSDB-MG) para ocupar a superintendência de Minas Gerais, em 2017, ainda no governo Temer, enquanto Aécio era senador. Sua nomeação provocou o pedido de demissão de 21 servidores, que a consideraram “temerária ou, no mínimo, desconfortante” pela falta de conhecimento técnico do marido da deputada. Hoje Pablo é assessor da presidência do Senado e doou R$ 20 mil para a campanha de sua mulher à reeleição.

A deputada mineira também está bastante presente nas discussões das barragens, enquanto seu maior doador da campanha, seu irmão Frederico Elias, é proprietário da PCH Dourados Usina Ltda, que possui licença de operação para barramento do Rio Dourados, no município de Abadia dos Dourados (MG). Ela, Frederico e outros dois irmãos são sócios do Recanto das Cerejeiras Empreendimentos Imobiliários Ltda, onde a família atua em parceria com os empresários Paulo e Baltazar Moreira Alves, proprietários da Sevimol, uma das maiores distribuidoras de ferro e aço do Alto Paranaíba, Triângulo Mineiro e Noroeste do estado.

Em 2018, Greyce recebeu R$ 10 mil de Tales Pena Machado, vice-presidente do Sindicato da Indústria de Rochas Ornamentais, Cal e Calcários do Espírito Santo (SindiRocha) e dono da exportadora de rochas ornamentais Magban.

Bolsonaro conservou influência do MDB sobre o setor minerário

Há catorze anos o MDB está presente no Ministério de Minas e Energia (MME), mais especificamente na estrutura da mineração. Essa influência se manteve praticamente a mesma desde os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, do PT, e ganhou projeção durante a gestão de Michel Temer. Embora Jair Bolsonaro tenha indicado um ministro militar, não houve alteração na distribuição de poderes dentro da pasta. 

MDB de Michel Temer manteve influência sobre MME durante governo Bolsonaro. (Foto: Marcos Corrêa/PR)

O atual diretor-geral da ANM, Victor Hugo Froner Bicca, é um servidor de carreira, que já trabalhou para os governos dos emebedistas Luiz Henrique da Silveira e Eduardo Pinho Moreira, em Santa Catarina, e foi assessor da Diretoria-Geral do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em 2011, durante a gestão de Edison Lobão (MDB-MA) no MME. Seu irmão João Manoel Froner Bicca foi vereador pelo MDB em São Borja (RS). Sua mulher, Rosana Márcia Conde Bicca, candidata a vereadora em São José (SC) em 2004, também é integrante do partido.

Ele será substituído em dezembro, de acordo com as regras da agência, pelo maranhense Mauro Henrique Moreira Sousa, advogado da União e consultor jurídico do MME desde a primeira gestão de seu conterrâneo Edison Lobão, em 2009. Dessa vez, o aspirante a diretor-geral da autarquia teve sua indicação relatada por Chico Rodrigues (União-RR), ex-líder do governo no Senado, fazendeiro, réu por invasão de terras públicas e conhecido nacionalmente por tentar esconder dinheiro na cueca durante operação da Polícia Federal que investigava desvios de verbas direcionadas à compra de testes rápidos para Covid.

O senador é defensor do que chama de “garimpo artesanal” e da imposição de limites à atuação de fiscais ambientais na abordagem aos garimpeiros.

Luís Indriunas é roteirista e editor do De Olho nos Ruralistas|


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Este texto foi inicialmente publicado pelo ‘De olho nos ruralistas” [Aqui!].

Impactos indiretos da mineração aumentam a extensão do desmatamento

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O Brasil responde por 10% da perda direta de florestas tropicais relacionada à mineração (327 km2), causada principalmente pela extração de minério de ferro e ouro. Crédito da imagem: Josue Marinho/Panoramio , sob licença Creative Commons (CC BY 3.0)

Por: Washington Castilhos para  o SciDev

O desmatamento causado pela mineração ocorre muito além dos limites da área de concessão, e a extensão total dos impactos ambientais é subestimada e pouco levada em conta, alerta artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

De acordo com o estudo, 3.264 km2 de floresta tropical foram perdidos diretamente devido à mineração industrial, e 80% da perda ocorreu em apenas quatro países, dois deles latino-americanos: Indonésia, Brasil, Gana e Suriname.

A Indonésia sozinha foi responsável por 58% do desmatamento tropical causado diretamente pela atividade (1.901 km2), especialmente devido à mineração de carvão.

O Brasil responde por 10% da perda direta de florestas tropicais relacionadas ao setor (327 km2), causada principalmente pela extração de minério de ferro e ouro. Enquanto isso, a mineração de bauxita e ouro impulsionaram o desmatamento em Gana e Suriname, que ocupam o terceiro e quarto lugar, respectivamente, no novo estudo.

“Embora a mineração industrial não seja o principal fator de desmatamento, deveria fazer parte da equação. Nos próximos 20 anos, muito mais minerais serão necessários para tecnologias de energia renovável, como cobre, lítio e níquel. Se nada for feito, a mineração terá um impacto cada vez maior na perda de florestas.”

Anthony Bebbington, Clark University School of Geography (EUA)

Um dos autores do estudo, o geógrafo Anthony Bebbington, professor de meio ambiente e sociedade da Escola de Geografia da Clark University, diz ao SciDev.Net que, embora o impacto do desmatamento da mineração industrial seja pequeno em comparação com a agricultura , é importante avaliar seus efeitos para aumentar a atenção ao setor.

“Embora a mineração industrial não seja o principal fator de desmatamento, deveria fazer parte da equação. Nos próximos 20 anos, muito mais minerais serão necessários para tecnologias de energia renovável, como cobre, lítio e níquel. Se nada for feito, a mineração terá um impacto cada vez maior na perda florestal”, alerta.

Além da perda florestal direta, que ocorreu dentro da área autorizada para atividade industrial, os pesquisadores também analisaram o desmatamento fora dos locais designados, principalmente induzidos pela infraestrutura de acesso.

Assim, constataram que em 18 dos 26 países investigados há maior desmatamento próximo às minas. Portanto, os especialistas estimam que para cada metro de expansão da mina haverá quilômetros de perda adicional de floresta.

Embora tenham sido mais visíveis no Brasil e na Indonésia, esses efeitos também foram observados com particular intensidade em países como Guiana, Colômbia, Congo, Gabão e Zâmbia.

“Os impactos indiretos variam entre os países. Com este estudo também queremos mostrar que esses impactos são significativos”, acrescenta Bebbington.

Para Luis Enrique Sánchez, professor de engenharia de minas da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo, os dados são importantes porque chamam a atenção para os impactos indiretos da mineração como impulsionadores do desmatamento.

“As perdas indiretas não são levadas em consideração na realização dos estudos de impacto ambiental para a concessão de licenças. Assim, os impactos indiretos são pouco reconhecidos e não há medidas mitigadoras”, diz ele ao SciDev.Net .

O estudo relata que as maiores taxas de desmatamento foram observadas entre 2010 e 2014, impulsionadas por fatores como aumento da demanda e má governança . Na Indonésia, por exemplo, o período foi marcado pela duplicação dos volumes de produção de carvão devido ao aumento da demanda da China e da Índia. Desde então, as reformas institucionais frearam o desmatamento.

Também no Brasil, de acordo com o estudo, as perdas florestais devido à mineração diminuíram a partir de 2014, devido à queda dos preços mundiais das matérias-primas e à crise econômica do país. No entanto, as atuais tentativas de relaxar a mineração e a prospecção são motivo de preocupação. O relatório anual do projeto Mapbiomas aponta para um aumento de 20% no desmatamento, principalmente nas áreas de mineração.

“O estudo publicado na PNAS não incluiu a mineração ilegal, então o fator de desmatamento para a mineração industrial foi um pouco menor, pois eles estão olhando apenas para a chamada mineração legal”, explica Sánchez.

No entanto, os autores reconhecem que a mineração artesanal e a prospecção geram danos ambientais que requerem atenção. O estudo destaca a necessidade de medidas mais fortes para proteger as florestas tropicais , como avaliações de licenças que considerem os impactos potenciais fora das áreas reais de mineração. Também sugere a certificação da origem dos produtos minerais, pois muitas vezes o consumidor não sabe se um item mineral vem de uma área desmatada.

Os autores estão otimistas. “Sabemos que é possível conter os impactos ambientais da mineração pela própria experiência do Brasil, que reduziu suas taxas de desmatamento entre 2000 e 2012”, diz Bebbington.

O artigo, no entanto, afirma que “dado o atual contexto político em países como Brasil e Indonésia, é questionável se políticas pró-ambientais serão implementadas em um futuro próximo”.


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Este artigo foi produzido pela edição da América Latina do  SciDev.Net em espanhol e publicado [Aqui!].

Esperançar Brumadinho/MG para a consolidação do dano-morte na jurisprudência brasileira: o paradoxo entre a relevância constitucional do direito à vida e o aparato da tutela jurisdicional

O verbo matar, nessa empresa, é conjugado no passado, presente e futuro. […] Vidas marcadas para morrer, porque a engrenagem tem que continuar. Não há respeito nem com o sangue que corre. Seria normal parar o trem, as máquinas, os caminhões. No entanto, eles estão mais vorazes. O lucro cresce em pleno crime.[…] Juízo final nem para os que se foram. Os mortos estão misturados na lama. (Dom Vicente Ferreira, Brumadinho 25 é todo dia, 2020)[2]

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Juliana Rocha Braga[1]

Esperançar[3], enquanto movimento que impulsiona a criação de ferramentas para o amanhã – como uma forma de romper a atual situação de escusa protecional no direito brasileiro. Esperançar como mecanismo de consolidação da jurisprudência. Entendendo a importância da tragédia ocorrida em Brumadinho/MG, em 25 de janeiro de 2019, e os multifacetários danos dela oriundos, nós, operadores do direito, devemos nos desacomodar, criar mecanismos de mudança, nos mobilizarmos, acreditar!

A proposta de reconhecimento do direito à compensação pela ofensa à vida surge ante a necessidade de tutelar aquele que sofreu o mais grave ataque ao direito da personalidade: a morte. Tendo em vista a extinção da personalidade civil em razão do evento morte, o cerne da questão reside na seguinte problemática: a vítima adquire um direito de indenização pelo dano da sua própria morte?

O modelo constitucional adotado pelo Brasil — constituição humanista, principiológica, multidisciplinar e analítica — autoriza a atuação judicial com finalidade de buscar a efetivação do direito disposto na Constituição Federal de 1988 (CF/88), o qual visa tutelar, por meio de seu aparato normativo e axiológico, o direito inerente a todas as pessoas, isto é, o direito à vida. Assim, adota-se a premissa básica de que o Estado tem o poder-dever de preservar a vida e, ainda, a vida digna com qualidade (art. 225, §1º e art. 1º, III da Constituição Federal).

À luz dessa concepção é que o presente estudo irá considerar o desastre de Brumadinho, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, e suas consequências jurídicas para fins de debate na práxis. Isto porque o rompimento da barragem B1 – Mina Córrego do Feijão – consolidou-se em um caso paradigmático em que, a mera aplicação do entendimento jurídico como se encontra hoje, a pura subsunção fato-norma – a interpretação literal, restritiva e reticente da jurisprudência atual, não é, por si só, capaz de tutelar os diversos danos advindos do ato ilícito perpetrado pela Vale S/A e o Grupo Tüv Süd.

A lama ceifou 272 vidas e gerou danos multifacetários à comunidade atingida. Quanto à culpa, restou constatada pelas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s), a culpa objetiva e subjetiva das empresas responsáveis. A capacidade econômica é patente, posto que o poderio financeiro das empresas é, de fato, tão considerável que sequer as reparações até hoje adimplidas foram capazes de gerar reflexos nos valores de mercado. A reincidência é notória, pois a Vale S/A também figura como uma das responsáveis por um dos maiores desastres ambientais do Brasil e deixou dezenove vítimas fatais no município de Mariana/MG. Novamente, tal dano ocorreu pelo mesmo motivo – “lucro acima da vida”[4].

Ao observar tais aspectos é que surge uma inquietação relacionada à proporcionalidade dos impactos, pondera-se acerca daqueles atribuídos às empresas responsáveis e, por outro lado, as sequelas às vítimas e atingidos da tragédia. A partir das fontes e atribuições axiológicas do Estado Constitucional e Humanista de Direito, pode-se extrair, pelo caso de Brumadinho, a manifestação expressa do paradoxo atinente à concepção do justo, proporcional e razoável, e dos bens jurídicos que carecem de tutela jurisdicional em um desastre dessa monta.

A premissa básica da Responsabilidade Civil consiste no surgimento do dever de reparar integralmente o ofendido pela ocorrência do ato lesivo danoso. Em outros termos, sobre o causador do dano, recaem as consequências jurídicas necessárias à compensação de quem teve o direito violado. A caracterização do quesito conduta, nexo de causalidade e dano são patentes no caso e, diante desse quadro, é inteligível que recaiam reflexos jurídicos proporcionais e razoáveis pela ofensa. Nesse caso, como corolário constitucional, a compensação à violação do direito à vida.

Estamos diante de uma questão urgente que precisa ser enfrentada. Diversas ações trabalhistas individuais e ações civis públicas interpeladas por entidades sindicais foram distribuídas contra a Vale S/A, em razão do rompimento da Barragem em Brumadinho.

Cabe destacar, que o Superior Tribunal de Justiça sumulou entendimento a respeito da transmissibilidade sucessória dos danos morais e, com isso, viabilizou a possibilidade do direito à reparação ser exercido pelo espólio e não padecer em prol de quem causou o dano- o que geraria benesse ao próprio causador. O direito brasileiro possui um rol aberto e prospectivo relacionado ao dano moral. Imperioso, portanto, o debate acerca da imputação de responsabilidade pela violação ao direito à vida e à existência.

Nesse sentido, mister trazer à tona o andamento da inédita ação coletiva movida pelo Sindicato Metabase Brumadinho e Região[5] em substituição dos 131 trabalhadores de sua categoria profissional falecidos em decorrência do rompimento da Barragem B1 do Complexo da Mina do Córrego do Feijão, perante o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, buscando a condenação da Vale S/A pelo dano-morte ocasionado às vítimas.

A Ação Civil Pública nº 0010165-84.2021.5.03.0027 foi distribuída por sorteio para a 5ª Vara do Trabalho de Betim/MG. No bojo da ação, a Vale ofertou contestação, suscitando inúmeras preliminares (ilegitimidade ativa, litispendência e coisa julgada, transação, etc.). No mérito, em síntese, a Vale sustenta que “a ordem jurídica brasileira nega a existência” do pleito formulado pela entidade sindical, que “não cabe indenização por dano moral ao trabalhador falecido em razão da morte”, dentre outros.

Nada obstante, em brilhantíssima decisão – imbuída de caráter vanguardista/pioneiro e humanitário – a Juíza do TRT3, proferiu sentença para julgar parcialmente procedente o pedido da entidade Sindical, condenando a Vale a pagar indenização por danos morais, no importe de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) por vítima fatal. Na decisão, destaca-se a fundamentação acerca da necessária aferição do dano moral no caso do dano-morte e ressalta-se o verdadeiro descompasso em se exigir a comprovação do dano, quando da ocorrência da violação ao maior bem jurídico a ser tutelado pelo ordenamento:

[…] Como sustentar que o dano reflexo da morte constitui violação in re ispa, mas o (mesmo) dano diretamente experimentado pelo falecido não o é?

Como poderia o morto provar seu sofrimento?

Como poderia o de cujus, humanamente, externar o que se passou na mente, no coração, se se passou tudo ou se nada se passou? Se se recordou os filhos, das preocupações específicas, dos planos de vida, da família? Se, nos segundos, minutos, poucas horas, se no tempo transcorrido entre o primeiro golpe do dano que o levaria a morte até o último suspiro, provou das repercussões decorrentes da reação pela sobrevivência até a angustia da aceitação da morte certa?

(TRT3, ACPCiv 0010165-84.2021.5.03.0027, 5ª Vara do Trabalho de Betim, Dje 07/06/2021) (Grifo nosso)

A Vale, por sua vez, interpôs recurso ordinário em face da sentença requerendo o afastamento da sua responsabilidade em indenizar os empregados substituídos. Contudo, a 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região negou provimento ao apelo e manteve os termos da sentença. Ao fundamentar a decisão, o Colegiado se valeu de direito comparado, transcendendo os meros aspectos formais interpretativos da norma e citou entendimento do direito Português acerca do dano-morte, vide:

[…]A doutrina portuguesa há muito já reconhece o direito ao dano-morte, bem como a transmissibilidade do montante relativo à sua indenização aos herdeiros da vítima fatal. A partir de julgamento ocorrido em 1971, o Supremo Tribunal de Justiça Português, pacificou a existência de três tipos de danos extrapatrimoniais: o dano pela perda do direito à vida, o dano sofrido pelos familiares da vítima em razão de sua morte e o dano suportado pela vítima antes de morrer. […]A partir do Acórdão deste Tribunal de 17.3.1971, proferido em revista alargada, mas com cinco votos de vencido (que se pode ver no BMJ n.o 205, 150), a jurisprudência nacional, confortada com a quase unanimidade da doutrina, tem sido unânime na atribuição da indenização especificamente pela perda do direito à vida. (TRT 3ª Região, 4ª Turma, Desembargadora Redatora PAULA OLIVEIRA CANTELLI, processo n. 0010165-84.2021.5.03.0027, DEJT 18/03/2022).

Desse modo, o Tribunal Regional da 3ª Região proferiu acórdão acolhendo a tese autoral do Sindicato Metabase Brumadinho e Região e confirmou o dano-morte como um dano autônomo específico, diferente dos Danos Reflexos percebidos pelos familiares das vítimas.

Ato contínuo ao Acórdão publicado, a Vale interpôs recurso de revista e a entidade sindical agiu da mesma forma, de maneira a pleitear a majoração do valor arbitrado a título de dano moral, bem como do valor fixado a título de honorários advocatícios sucumbenciais. Atualmente, os recursos interpostos pelas partes estão aguardando o juízo de admissibilidade pela douta Presidência do Tribunal Regional da 3ª Região.

Nesse contexto de discussão oportunizado pela ação coletiva intentada pelo sindicato, é preciso compreender que tragédias como o rompimento da barragem B1 –Mina Córrego do Feijão — em Brumadinho trazem à tona a insuficiência do ordenamento jurídico brasileiro na salvaguarda de direitos. É estarrecedor vislumbrar esse desastre, suas consequências e a ausência do aparato jurídico na tutela dos múltiplos danos ocasionados. O desintegrar da barragem em 2019 ceifou 272 vidas e violou o meio ambiente de maneira incalculável. A violência empregada é percebida em momento pretérito ao desastre e, também, após, pelo negacionismo da Vale S/A e do Grupo Tüv Süd frente à sua culpa e pela resistência na prestação de auxílio aos diversos atingidos.

Em que pese todos os danos possíveis de serem notados, o mais sensível, sem dúvida, é o dano da perda da vida humana. No Brasil, como evidenciado acima, é possível notar um rol aberto e prospectivo a respeito dos danos extrapatrimoniais, o que viabiliza a indenizabilidade do dano-morte. Assim, parte-se da compreensão, à luz do princípio da reparação integral, de que no direito brasileiro é possível aplicar outras modalidades de dano que não constem expressamente no regramento legal.

No que tange à discussão da transmissibilidade irrestrita, a Súmula 642 do STJ pacificou o entendimento no sentido de que o reconhecimento desse dano de natureza imaterial pode ser reivindicado por meio do espólio e herdeiros, sem a necessidade de condicionar tal direito a ação prévia movida pelo de cujus.

O argumento psicológico que atrela a incidência de danos morais à dor e ao sofrimento, talvez seja o ponto mais sensível da questão, haja vista que existem posicionamentos divergentes na doutrina e na jurisprudência atual. Todavia, como demonstrado no decorrer da decisão exarada pela Justiça Trabalhista, hoje, há de considerar os danos morais in re ipsa e conferir uma hermenêutica aberta e expansiva à aplicação do instituto da responsabilidade civil, no que concerne à proteção à vida e às integridades física e psíquica do trabalhador.

O caso de Brumadinho é fatalmente paradigmático e deve ser compreendido como tal. Com isso, conclui-se que o direito à vida é reconhecido como valor supremo a ser protegido pelo Estado e, por tal razão, seria inconcebível a não admissão do dano-morte como instituto autônomo a ser inserido na esfera jurídica do ofendido. Dessa forma, o direito deve evoluir para que os projetos de vida suprimidos por um ato lesivo sejam objeto de tutela, por meio da responsabilidade civil.

Em Brumadinho, o luto é sinônimo de luta. O Projeto Legado de Brumadinho, idealizado pela Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (AVABRUM), surge como um movimento de memória, um ato de resistência em favor da vida dos trabalhadores e das trabalhadoras vítimas fatais do crime da Vale e do Grupo Tüv Süd. O projeto possui a #amanhãpodesertarde para criar “um alerta pelo trabalho com o respeito à vida”. À vista da magnitude do desastre, da constante e incansável luta dos familiares das vítimas fatais e de todos os atingidos, vos convido a esperançar pela consolidação de um sistema jurídico mais justo, acessível e humanitário, nas palavras de Dom Vicente Ferreira, defensor de direitos humanos das comunidades invisibilizadas atingidas pelo rompimento da barragem, em seu livro, Brumadinho: 25 é todo dia:

Debaixo da terra, tem outras coisas além do minério.

É preciso comprar essa luta, custe o que custar.

Não serão mais os únicos donos.

O juiz não pode ter na mesa parecer unilateral.

Bem-vindos ao front da resistência.

A palavra única não será Vale.

(Dom Vicente Ferreira, Brumadinho: 25 é todo dia, 2020)

[1] Advogada. Moradora de Brumadinho. Pós-graduada em Direito Civil Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara, modalidade direito integral (2020).

[2] FERREIRA, Dom Vicente. Brumadinho: 25 é todo dia. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

[3]É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! (FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992)
[4] Máxima utilizada pelos atingidos pela barragem em Brumadinho em discursos relacionados ao ocorrido.
[5] Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Extração de Ferro e Metais Básicos de Brumadinho e Região

Em nova edição, revista Ambientes aborda o envenenamento de alimentos por agrotóxicos e outros aspectos da crise ambiental brasileira

ambientes capa

Ambiente: Revista de Geografia e Ecologia Política teve origem na constituição da Rede de Pesquisadores em Geografia (Socio)Ambiental — RP-G(S)A —, composta por docentes de diversas instituições brasileiras de ensino superior.  A partir de uma preocupação em valorizar os estudos de cunho ambiental, integrando conhecimentos sobre a natureza e a sociedade, a RP-G(S)A tem como foco a Geografia Ambiental, entendendo-se “ambiente” de maneira ampla: sem reduzir o conceito ao ambiente natural ou “meio ambiente”. Além disso, há um esforço para oferecer uma contribuição ao campo interdisciplinar da Ecologia Política.

Pois bem,  a Ambientes acaba de lançar sua mais nova edição, sendo composta com oito artigos, uma resenha e uma entrevista. O conteúdo da edição foi cuidadosamente apresentado no editorial intitulado “Guerra, violência e destruição” que é assinado pelo editor chefe da Ambientes, o professor do Centro de Ciências Humanas da UNIOESTE de Francisco Beltrão (PR), Luciano Zanetti Pessôa Candiotto. Logo no parágrafo de abertura, o editorial aponta que a nova edição da Ambientes aborda elementos fundamentais para que se possa entender a relação entre o processo de desregulamentação em curso no Brasil, os impactos que já estão sendo documentados sobre ecossistemas naturais e as populacionais que historicamente os usam para sua reprodução social.

Um dos artigos que deverá interessar aos leitores deste blog é de autoria da professora Shaiane Carla Gaboardi do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Catarinense, Campus Ibirama/SC, pois o mesmo aborda um tema que considero altamente relevante que é a contaminação de alimentos por resíduos de agrotóxicos usados em profusão no Brasil. O artigo traz uma série de reflexões sobre os desafios e os avanços no que se refere ao monitoramento de resíduos de agrotóxicos em alimentos no Brasil, por meio dos relatórios do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), disponibilizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O artigo traz os resultados das análises feitas em todo os relatórios disponíveis  do PARA produzidos entre 2001 a 2018), mostrando que  que, em média, 63% dos alimentos consumidos pelos brasileiros possuem algum tipo de resíduo de agrotóxicos. Além disso,  os agrotóxicos mais detectados ao longo dos anos no PARA, como o carbendazim, o clorpirifós e o acefato, são de uso proibido na União Europeia, sendo que os Limites Máximos de Resíduos estabelecidos no Brasil possuem diferenças abissais se comparados aos países da Europa.  

mapa agrotóxicos

Mas quem desejar acessar a íntegra desta edição da Ambientes, podem acessar os links a seguir:

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Barragens em risco e liberação de nova área de mineração em Minas assusta e mobiliza sociedade

Liberação de exploração na Serra do Curral e não cumprimento dos prazos da Lei Mar de Lama Nunca Mais soam como ameaças às comunidades vizinhas que temem novas tragédias como Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais

tsulama never more

A aprovação da licença ambiental para a instalação de um megaprojeto de mineração de ferro na Serra do Curral, que emoldura os municípios de Nova Lima e Belo Horizonte, mobilizou a sociedade mineira, que teme novas tragédias como as ocorridas em Brumadinho e Mariana.

Enquanto uma nova área de mineração é aprovada pelo governo estadual, o cumprimento da Lei 23.291/2019, a Lei Mar de Lama Nunca Mais, que obriga o descomissionamento das barragens de alto risco, construídas com o método a montante, como eram Mariana e Brumadinho, é adiado.

A mesma lei ainda não foi totalmente regulamentada pelo estado, mesmo tendo sido aprovada há mais de três anos. O adiamento do descomissionamento também provocou apreensão e protestos nas comunidades vizinhas às barragens de risco.

Em nota, a diretoria da AVABRUM (Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos da Tragédia do Rompimento da Barragem Mina Córrego Feijão, em Brumadinho-MG) disse que a população do estado de Minas Gerais foi surpreendido com a notícia e a decisão tira dos mineiros o direito de morar no seu território de origem.

A AVABRUM participa do Projeto Legado de Brumadinho, idealizado por familiares das vítimas do rompimento da Mina Córrego do Feijão. O projeto busca mobilizar a sociedade para que novas tragédias em ambientes de trabalho, especialmente na mineração, nunca mais aconteçam. A memória é um dos pilares do projeto, que chama atenção para que a morte de 272 pessoas não seja em vão. Segundo investigações da Polícia Federal e do Ministério Público, laudos que atestavam a segurança da barragem eram fraudulentos. A AVABRUM apoia o total descomissionamento das barragens à montante e é contrário à liberação na Serra do Curral.

Saiba mais

Das 54 barragens que deveriam ser desativadas, apenas 7 tiveram o processo concluído até 25 de fevereiro de 2022, como determinava a lei. O Ministério Público Estadual obrigou o governo do Estado e as mineradoras a assinarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), fixando indenizações milionárias por causa do descumprimento da lei, e obrigatoriedade das empresas cumprirem os novos prazos.

Já sobre a Serra do Curral, a iniciativa não teve o apoio da prefeitura de Belo Horizonte, mas foi aceita pela prefeitura de Nova Lima, onde o empreendimento está totalmente localizado. A população local também não foi ouvida. Segundo ambientalistas, por sua localização, a apenas 200 metros do ponto mais alto da serra, a dispersão de partículas é inevitável, atingindo os municípios ao redor. Além disso, apontam a derrubada da mata nativa e impacto nas nascentes da região e nos córregos Cubango, Triângulo e Fazenda. Essas águas abastecem o Rio das Velhas e o Rio Paraopeba.

Estudo da PUC/RJ revela como cooperativas de garimpeiros têm sido utilizadas para exploração mineral em escala industrial na Amazônia

Sobrevoo no Pará (Foto Marizilda Cruppe/Amazônia Real/17/09/20

Estudo divulgado pelo Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio), na sexta-feira (29/04), apresenta evidências de que cooperativas de garimpeiros têm sido utilizadas como forma de viabilizar explorações minerais de natureza industrial ou quase industrial, mas sob regime regulatório mais brando, na Amazônia. O levantamento revela que três das maiores cooperativas de garimpo de ouro na região, em termos de área de processo ativo, são individualmente maiores do que a própria Vale S.A. e que sete das 10 maiores áreas de permissão ou concessão minerária de ouro na região são de cooperativas.

Segundo o estudo Decretos Presidenciais Reforçam o Descompasso na Regulação Minerária em Prejuízo ao Meio Ambiente, a exploração de recursos minerais requer regras rígidas devido ao enorme impacto socioambiental causado pela atividade. Mais de 70% da área de mineração legal no país em 2020 esteve localizada na região amazônica, de acordo com o MapBiomas, onde o impacto é agravado pelo fato de que a atividade mineradora está sob regras de regulação complexas e ultrapassadas.

Ainda conforme os pesquisadores do CPI, o descompasso no que diz respeito à legislação é evidenciado pela forma como o garimpo é tratado: como uma atividade desempenhada por indivíduos com poucos recursos e vulneráveis, merecedores, portanto, de proteção legal. “Por conta disso, cooperativas de garimpeiros, que já atuam de forma empresarial e muito próxima à das indústrias de mineração, têm acesso a um processo burocrático mais simples e com exigências mais brandas para a sua atuação. Trata-se de atividades altamente capitalizadas, mas que se valem de benefícios legais previstos para a atividade de garimpo, inclusive em detrimento da prevenção e fiscalização de impactos socioambientais”, analisa o CPI/PUC-Rio.

Atualmente, na regulamentação, em termos de Amazônia Legal, a área máxima de uma Permissão de Lavra Garimpeira concedida a cooperativas para a extração de ouro, por exemplo, é idêntica à área máxima de uma Concessão de Lavra (mineração industrial) para a extração do mesmo mineral: 10 mil hectares por processo. Ou seja, nessa região, para uma área ser considerada garimpo, ela não precisa ser menor, mais simples e rudimentar, com impactos ambientais menores.

Conforme explica Joana Chiavari, coordenadora do estudo e Diretora Associada de Direito e Governança do Clima do CPI/PUC-Rio, a atividade de garimpo ainda está isenta na legislação de fazer uma pesquisa mineral prévia. “O que percebemos é que as cooperativas, como atuam hoje, não precisam deixar claro qual o local exato de determinada jazida e se a atividade tem viabilidade econômica, isto é, se dispõe de levantamento geológico, geoquímico, geofísico, análise das amostras etc. A ausência dessa pesquisa, segundo o próprio Ministério Público Federal já constatou, dificulta a avaliação dos impactos socioambientais e o combate à lavagem dos ativos financeiros decorrentes da exploração do minério. Isso também dificulta que sejam identificadas quais áreas devem ser objeto de fiscalização, bem como a produtividade daquela jazida”, explica.

Na regulamentação, de acordo com os pesquisadores, é prevista a possibilidade de que uma atividade de garimpo possa pedir para mudar de regime, passando a possuir uma Concessão de Lavra, exigida para mineração de natureza industrial. No entanto, não existe incentivo na regulamentação para que essa mudança de regime de fato aconteça.

Decretos

Dois decretos do Presidente da República, publicados em fevereiro de 2022 (o Decreto nº 10.965/2022 e o Decreto nº 10.966/2022), reforçam o descompasso regulatório atual e a incapacidade do Poder Público de lidar com essa questão, acentuando os benefícios concedidos à atividade de garimpagem. “A política pública falha em impedir que cooperativas de garimpeiros impactem áreas como verdadeiras indústrias de mineração”, diz trecho do estudo.

Nos termos do segundo decreto, mineração artesanal e em pequena escala é sinônimo de garimpagem, sem que haja nenhuma restrição quanto ao porte e à natureza da atividade. Conforme o primeiro decreto, a definição de empreendimento de pequeno porte deverá ficar a critério da Agência Nacional de Mineração (ANM), mas há o risco de que a agência seja igualmente permissiva. Esses decretos acentuam o descompasso regulatório entre cooperativas e indústrias, em prejuízo do meio ambiente.

Segundo o CPI/PUC-Rio é necessária a revogação imediata desses decretos e a revisão da regulamentação aplicável às cooperativas, para reverter esses desincentivos e sujeitá-las a regime jurídico compatível com a natureza de suas atividades.

Para ler a íntegra do estudo, clique aqui.

Tsulama de Brumadinho: maior acidente do trabalho da história do Brasil continua impune

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Bombeiros procuram corpos em Brumadinho. Crédito: Corpo de Bombeiros de Minas Gerais (CBMG)/Divulgação

Já se passaram três anos e três meses desde o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, da Vale, considerado o maior acidente de trabalho do Brasil, que causou a morte de 272 pessoas.

Era hora do almoço quando a barragem da Mina Córrego do Feijão se rompeu, derramando 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. A explosão formou um tsunami de lama que desceu a cerca de 100km por hora, destruindo tudo pela frente, causando o que se tornou a maior tragédia humanitária do Brasil – um desastre trabalhista que causou a morte de 251 trabalhadores (muitos deles estavam comendo no refeitório que foi colocado logo abaixo da barragem). O rompimento da barragem também matou 2 nascituros e 19 moradores da comunidade, entre moradores e turistas, somando a perda de 272 vidas humanas. A lama acabou atingindo o principal manancial da região, o Rio Paraopeba, que hoje é contaminados com metais pesados.

No Brasil, os acidentes de trabalho representam uma enorme ameaça à vida humana, bem como um grande risco de perdas ambientais. Segundo relatório divulgado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil ocupa a segunda posição em mortalidade no trabalho, com 6 óbitos por 100 mil vínculos empregatícios, entre os países do G20.

Minas Gerais é o estado com o maior número de barragens de rejeitos no Brasil. Segundo a Agência Nacional da Mineração (ANM), em 2019 foram 351, dos quais 209 estão incluídos no Plano Nacional de Segurança de Barragens e 50 são considerados de risco.

O caso de Brumadinho não é isolado, segue, há pouco tempo, o maior desastre ambiental do Brasil, quando outra mina desabou, na cidade de Mariana, também em Minas Gerais (MG). Isso foi em novembro de 2015, quando 19 pessoas foram mortas, juntamente com a destruição completa da Vila Bento Rodrigues e a contaminação de um dos mais importantes cursos d’água do estado, o Rio Doce.

A Associação de Familiares de Vítimas e Atingidos pela Tragédia do Rompimento da Barragem Córrego Feijão em Brumadinho (AVABRUM) exige uma solução para o problema:

“É revoltante ouvir as empresas dizerem que não cumprirão as etapas e o prazo para a desativação final de barragens perigosas. Eles estão mostrando que não aprenderam nada com Mariana e Brumadinho. Minas Gerais é o estado onde mais barragens desabam, e não podemos continuar matando. Esperamos proteção do nosso Governo do Estado, das Instituições de Justiça, que são rigorosas em exigir o cumprimento da Lei. O investimento em prevenção e ações concretas poderiam ter salvado vidas preciosas de pais, filhos, irmãos, avós, tios, primos e cunhados”, afirma Alexandra Andrade, presidente da Avabrum.

Em defesa de seus territórios, indígenas se posicionam contra Jair Bolsonaro

Milhares  de indígenas montaram acampamentos para protestar em Brasília.  O governo Bolsonaro quer permitir exploração de reservas por atividades de mineração

indigenasResolutamente contra o governo Bolsonaro: indígenas se manifestam em Brasília  

Por Norbert Suchanek para o JungeWelt

Por ocasião das eleições de outubro, milhares de indígenas brasileiros montaram um acampamento de protesto de dez dias na capital Brasília na quarta-feira (horário local). A convocação da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) dizia que este ano seria o último “desse governo brasileiro genocida”. O protesto visa mostrar que os povos indígenas do país estão prontos para lutar para proteger seus territórios e ganhar maior representatividade na política brasileira.

A data do acampamento de protesto, que vai até 15 de abril, foi escolhida com base em votação prevista para esta semana na Câmara dos Deputados. A iniciativa legislativa “PL 191/2020” está sendo negociada, segundo a qual a exploração de recursos minerais e a construção de usinas hidrelétricas e outras infraestruturas destruidoras da natureza devem ser permitidas mesmo em reservas já reconhecidas pelo Estado. “Estamos diante de uma legislação política que ameaça nossas vidas e nossas tradições.” A “defesa da vida” contra o programa de destruição do governo é, portanto, uma prioridade para eles, segundo o apelo da APIB. Mesmo antes de assumir o cargo em 2019, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro havia garantido a seus aliados no lobby agrícola e de mineração que nem uma única reserva indígena seria reconhecida sob seu governo.

O governo quer aprovar a nova lei o mais rápido possível e justifica isso com a guerra na Ucrânia. O agronegócio brasileiro voltado para a exportação de soja depende da importação de potássio e fertilizantes fosfatados. A maioria deles até agora veio da Rússia e da Bielorrússia. Por causa de uma iminente falta de potássio, segundo Bolsonaro, as jazidas de potássio conhecidas em áreas indígenas devem ser exploradas para salvar o agronegócio, que é importante para as receitas do Estado. No entanto, ambientalistas e indígenas alertam que a lei significaria o fim de muitos povos do país.

Entre os milhares de manifestantes que se reuniram em Brasília está Elvis Aroerê Tabajara, líder do Tabajara da Serra das Matas, no Sertão do Ceará. Seu povo está ameaçado pela mina de urânio e fosfato de Itataia, perto de Santa Quitéria, que foi planejada em 2008, mas a construção tem sido lenta desde então. Trata-se da produção anual de 1.600 toneladas de concentrado de urânio (“Yellow Cake”) e cerca de um milhão de toneladas de fosfato para produção de fertilizantes.

O órgão de proteção ambiental Ibama havia recusado sua licença em 2019. Mas sob pressão de Bolsonaro, o Ibama aprovou o projeto de mineração em março. A jazida de Itataia, a cerca de 210 quilômetros de Fortaleza, não está em uma reserva indígena demarcada, mas as consequências dessa mina, que produz milhares de toneladas de resíduos radioativos e esgoto, podem ser de longo alcance. “Estamos cientes dos vários riscos, e um deles é a contaminação radioativa do nosso país pelos ventos”, disse Aroerê Tabajara ao portal sindical ADUFC em 11 de fevereiro. Sua aldeia fica a apenas 30 a 40 quilômetros da mina, que nessa região seca também consumirá cerca de 850 mil litros de água por hora.


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Este texto foi originalmente escrito em alemão e publicado pelo jornal “JungeWelt” [Aqui!].