Ao analisarmos com mais detalhe diversos dados sobre os territórios e as populações atingidas, algumas nuances da realidade se revelam

Por André Coutinho Augusting e Paulo Roberto Soares para o Nexo Jornal
As enchentes das últimas semanas no Rio Grande do Sul são um doloroso exemplo brasileiro dos eventos extremos e das mudanças climáticas que têm alcançado uma nova magnitude em todo o mundo. Uma grande extensão do estado, incluindo a RMPA (Região Metropolitana de Porto Alegre) e seu entorno, porção do território que concentra a maior parte da população e das atividades econômicas (especialmente industriais e de serviços), foram afetadas.
Todos os gaúchos e gaúchas foram impactados de alguma forma. Alguns perderam suas casas ou seus negócios. Outros ficaram sem abastecimento de água, energia elétrica ou internet. Dificilmente alguma pessoa do estado não foi afetada ou não tenha algum conhecido afetado. Foram tantos os problemas que se torna difícil mensurar de forma objetiva as perdas de cada um. A paralisação e o isolamento rodoviário e aeroviário da capital do estado, Porto Alegre, gerou transtornos na prestação de serviços públicos, especialmente na área de saúde e em diversos serviços estaduais cujos sistemas de informação e dados encontram-se centralizados na capital. Houve perda de conexão aérea com as principais capitais. Enfim, uma situação nunca antes experimentada no estado e no país.
De acordo com o mapa elaborado, as áreas que mais sofreram com as enchentes apresentam uma concentração expressiva de população negra (pretos e pardos), geralmente acima da média dos municípios
No entanto, afirmar que a catástrofe afeta a todos e todas igualmente não é o mais correto. Ao analisarmos com mais detalhe diversos dados sobre os territórios e as populações atingidas, algumas nuances da realidade se revelam. Por isso, nós do Observatório das Metrópoles realizamos alguns cruzamentos de informações disponíveis da população das áreas afetadas diretamente pela inundação e publicamos um conjunto de mapas sobre estes temas.
Inicialmente, ao cruzar o mapa das áreas que inundaram com os dados de renda do Censo Demográfico de 2010 (ainda não há dados disponíveis para o Censo 2022), percebe-se que as regiões atingidas na RMPA concentram principalmente populações de baixa renda. É verdade que, ao contrário de outras enchentes de menor intensidade, dessa vez algumas áreas mais ricas também alagaram, como o bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Mas ainda assim não dá para dizer que todos foram atingidos da mesma forma.

Também comparamos as áreas atingidas pela enchente com a composição étnico-racial dos seus habitantes. Novamente utilizamos os dados do Censo Demográfico de 2010, uma vez que ainda não temos disponíveis os dados por setor censitário do Censo 2022. É importante ressaltar que, para o total de cada município, os dados de 2022 já foram divulgados e mostraram um crescimento significativo da proporção de negros (pretos e pardos segundo a denominação do IBGE) para toda RMPA, como mostram os seguintes municípios: Porto Alegre (de 20,2% em 2010 para 26,0% em 2022), Canoas (14,3% para 21,2%), São Leopoldo (13,7% para 21,2%), Novo Hamburgo (9,3% para 15,2%), Eldorado do Sul (18,0% para 25,4%), Guaíba (16,8% para 22,5%), Alvorada (26,1% para 33,2%). Há, portanto, uma defasagem nos dados de 2010, que são os únicos disponíveis para a análise das diferentes regiões de cada cidade.

De acordo com o mapa elaborado, as áreas que mais sofreram com as enchentes apresentam uma concentração expressiva de população negra (pretos e pardos), geralmente acima da média dos municípios. É o caso de Porto Alegre no Humaitá e Sarandi, embora também haja casos como a Restinga, que possui uma grande população negra mas está localizada longe do Guaíba. Em Canoas o bairro que mais sofreu foi o Mathias Velho, com uma forte presença negra especialmente no seu extremo oeste, próximo ao Rio dos Sinos. Em São Leopoldo, o bairro mais afetado foi o Santos Dumont e em Novo Hamburgo, o bairro Santo Afonso, ambos com maior proporção de população negra nestas cidades. Em Guaíba o bairro mais atingido foi o Santa Rita, que concentra uma grande proporção de população negra e de baixa renda.
Isto quer dizer que “a água escolhe cor” na hora das inundações? Evidentemente que não, quem “escolheu” estes espaços para a população mais pobre e negra foi a sociedade e o modelo socioeconômico historicamente estabelecido no estado e no país.
Os recortes de renda e étnico-racial são importantes (assim como o de gênero), pois eles muitas vezes se sobrepõem (isto está comprovado pelas estatísticas). Os dados gerais da população brasileira e gaúcha apontam que a população negra é a menos favorecida em termos salariais, qualificação profissional e nível de escolaridade, apesar das políticas afirmativas desenvolvidas desde a última década. Portanto, os programas de intervenção e recuperação destes territórios deverão levar em conta as especificidades da população que aí reside, caso queiram atingir resultados satisfatórios.
Também precisamos destacar que, apesar de haver alguns casos, a maioria das áreas atingidas não são de ocupação irregular. Em entrevista ao Jornal Nacional, o prefeito de Porto Alegre afirmou que as pessoas que estão nos abrigos “nunca deveriam morar onde moram”. Entretanto, para ficar em apenas um exemplo, quase 100% dos bairros do chamado Quarto Distrito (antiga região industrial próxima ao centro de Porto Alegre) ficaram debaixo d’água. Essa área tem uma ocupação centenária, presença de moradores de classe média e de classe baixa, e teve sua legislação urbanística recentemente alterada para permitir mais construções e beneficiar o mercado imobiliário. A prefeitura inclusive encomendou um “master plan” visando ampliar atividades e população (de 28 mil para 60 mil habitantes). Como que agora as pessoas “não deveriam estar onde estão”? Talvez a disputa não seja sobre onde deve haver pessoas morando, mas qual a cor e a renda dessas pessoas.
André Coutinho Augustin é economista e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.
Paulo Roberto Soares é professor do Departamento de Geografia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.
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Fonte: Nexo Jornal









