
Não há Lula sem PT, mas haverá PT sem Lula?
Por Douglas Barreto da Mata
Não é desejável, mas é aceitável que nos tornemos mais ranzinzas com o avançar da idade. Seja o desconforto com as inovações tecnológicas, que parecem alterar nossa percepção, nos dando a impressão de que falta ainda muito menos tempo que nos resta, seja com a descoberta de que tudo aquilo que acreditamos por décadas não era, exatamente, o que pensávamos (nunca é, ainda bem), ou enfim, porque tudo fica mais difícil mesmo.
Voltar ou começar a fazer exercícios físicos, abandonar velhos vícios (ou criar novos), cortar pêlos que insistem em nascer em locais horríveis, tudo é muito mais difícil pelo simples fato de que tudo acelera lá fora, enquanto ficamos mais e mais lentos.
No entanto, o tempo vivido (e vívido, parafraseando Back in Bahia de Gilberto Gil) traz uma vantagem (para alguns, não todos) de poder olhar esse período de uma perspectiva bem mais ampla, simplesmente porque você tem esse passado, que antes, era apenas uma expectativa (futuro). É o que ando fazendo com minhas crenças políticas.
Falo da militância orgânica por mais de 20 anos no Partido do s Trabalhadores, o PT, desde 1986 até meados de 2007/2008, quando passei a ser um simpatizante/militante, mais afastado, sem deixar de acreditar que aquela legenda seria a ferramenta de transformação social que o país precisava. Olhando hoje, após 38 anos, posso dizer que tenho tempo suficiente para acreditar que não é mais, e pior, pode nunca ter sido como eu acreditei.
Tenho escrito muita coisa ácida e deselegante sobre o PT nesses últimos tempos, e mais sobre Lula, cuja imagem abraçado comigo, capturada no jantar do Hotel Palace, na campanha presidencial de 1998, senão me engano, mantenho em minha sala de estar, em um porta retratos que minha filha mandou fazer para mim.
É um sentimento ambíguo, que mistura memórias afetivas com decepções, as quais me impedem de guardar o quadro, talvez para a sua exposição faça com que me recorde sempre que aquilo que eram esperanças nunca se concretizaram.
Vejam bem, decepção nem sempre é melancolia, e neste caso, é remédio amargo para os sentidos, que aguça a razão. Em algum momento, o PT, eu corrijo, nós do PT deixamos de cuidar daquilo que deveria ser a coisa mais importante.
Explico. O espectro político brasileiro, por suas injunções históricas, nunca contou com partidos políticos que materializassem a noção básica de um ajuntamento desta natureza.
Talvez o PTB de Getúlio Vargas, os partidos comunistas, os demais sempre foram agrupamentos de individualidades políticas, de personagens, onde a grande massa de filiados e militantes corressem atrás de lideranças carismáticas, com maior propensão à reunião em tempos eleitorais, e com pouca ou nenhuma densidade e penetração em movimentos sociais.
Para sermos justos, em todos os cantos do mundo, é mais ou menos assim, e o debate político mais robusto fica a cargo de poucos grupos e partidos.
O PT, nesse sentido, veio como uma novidade, apesar de contar com uma liderança de calibre, Lula. Podemos dizer que durante anos, o PT reivindicava ser o único partido cuja sigla fazia sentido, que combinava com sua trajetória política, era um partido dos trabalhadores, isto é, para os trabalhadores e feito por trabalhadores.
Esse corte de classe parecia claro. Ao contrário dos demais partidos, que levam sempre “democrático”, “social”, “progressista”, mas que nunca agiam como tais, o PT dizia guardar essa coerência como um diferencial.
Para nós, a compreensão da luta para a melhoria de vida dos trabalhadores percorria muitas vias, e também isso era a grandeza do partido, sua vida interna, pulsante, intensa, e às vezes, extremada, mas nunca omissa ou cúmplice do crime histórico praticado pelas elites, no processo que chamávamos de democracia interna.
Bem, era nisso que eu acreditava. De certa forma, não quero crer que, em algum momento, que essa visão do PT ingênua não tenha correlação com alguma porção de verdade, mesmo pequena, que seja.
É essa a questão. Era verdade, ou melhor, havia a busca por essa verdade?
Dói dizer, de onde me encontro, que o PT, a meu ver, olhando para trás, nunca foi, ou em algum momento deixou de ser um instrumento de luta da classe trabalhadora contra as elites.
Observando mais de perto a sua principal liderança, Lula, podemos afirmar que, na verdade, Lula nunca pretendeu ser esse veículo da luta de classes. Simplesmente porque Lula é, dito por ele mesmo, uma pessoa que acredita que há conciliação entre esses segmentos da sociedade, e que o Estado, através do governo representativo, pode dar conta de cimentar esse pacto através de ações políticas nessa direção, sempre equilibrando os lados em conflito. Ele, portanto, nunca negou essa condição de “amortecedor” destas disputas.
Talvez nossa ingenuidade, ou melhor dizendo, a minha, tenha sido acreditar que pudéssemos estar à sombra do líder popular, para em alguma forma de gradualismo reformista, fizéssemos a ruptura com o sistema que gera enormes desigualdades, o capitalismo.
Imaginamos (será?) que dava para “melhorar” as desumanas condições dos trabalhadores no capitalismo, enquanto lutamos para acabar com ele? Ou sequer lutamos para isso?
Ou pior, quem sabe esperávamos que algum conforto econômico proporcionado por alguns anos de consumo (churrasco de picanha, e viagens de avião, como brada o presidente) fizessem os trabalhadores, por milagre, entenderem a sua posição na luta de classes, e tomando consciência dessa condição subordinada, dedicassem o apoio político irrestrito ao PT e seu governo, para atacar a causa de seus infortúnios, a desigualdade e o sistema que a gera?
Não. O que aconteceu foi a simbiose de um partido com seu líder, que maior que a legenda, a engoliu, e sim, o matou. Como um ser político antropófago, Lula deglutiu o partido e tomou para si a sua essência, como acreditavam os povos originários, que dedicados ao ritual, quando apenas comiam aqueles que admiravam e respeitavam.
Pode ter sido tudo isso. Pode ter sido tudo isso, e algo mais. Aprendemos que é pouco provável que mudemos o passado, e o futuro que nos resta é tão escasso que nossa atenção acaba se diluindo em menos futuro, para termos mais presente.
Lula tem pouco tempo, e sabe disso também. No fim, “olhando em perspectiva”, como disse lá em cima, não tinha como dar certo, porque já nasceu errado. A sigla PT hoje não significa o que as letras dizem, e bem dizendo, não querem dizer mais nada. Lula não assusta mais ninguém, domesticado pelas elites nacionais, incensado como um bem arqueológico nas reuniões internacionais, como este porta-retratos que tenho na minha sala.
Uma lembrança incômoda de derrota. Sorte que ainda restou algum afeto. Mas de que serve afeto a esta altura das coisas?











