O tombamento da Usina Cambahyba pela Alerj é apenas o primeiro passo para a preservação da memória histórica

claudio guerra

O ex-delegado Cláudio Guerra mostrando como os corpos de oposicionistas ao regime militar de 1964  eram incinerados nos fornos da Usina Cambahyba em Campos dos Goytacazes 

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou ontem o Projeto de Lei 2360/2023 que “dispõe sobre o tombamento, por interesse histórico do estado do Rio de Janeiro, do parque industrial situado na Companhia Usina Cambahyba e dá outras providências”, de autoria, dentre outros, da deputa Marina do MST (PT) e do deputado Rodrigo Bacellar (União Brasil).

Essa aprovação é apenas o primeiro passo para um esforço de preservação da memória histórica em relação aos crimes ali cometidos durante o período do regime de 1964 que teriam incluído a incineração ilegal dos corpos de militantes de esquerda que faziam oposição armada ou não ao governo militar instalado com o golpe contra o presidente João Goulart.

Os crimes ocorridos na Usina Cambahyha foram descritos com riqueza de detalhes no livro “Memórias de uma Guerra Suja”, publicado em 2012,   a partir do trabalho de dois jornalistas, Marcelo Netto e Rogério Medeiros, que, ao colherem o depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra.

Curiosamente no período de lançamento do “Memórias da Guerra Suja” houve em Campos dos Goytacazes todo um esforço para negar os detalhes descritos por Cláudio Guerra sobre o uso dos fornos da Usina Cambahyba para incinerar os corpos de oposicionistas do regime militar.  Agora, com esse tombamento, há um reconhecimento de que os crimes que Guerra confessou ter cometido enquanto era delegado do temido DOPS realmente ocorreram, justificando assim o tombamento dos prédios que ainda restam de pé na Usina Cambahyba.

Importante lembrar que as terras no entorno da usina foram desapropriadas pelo governo federal para a criação de um assentamento de reforma agrária que deverá o nome de Cícero Guedes, liderança do MST que foi assassinada no dia 26 de janeiro de 2013 enquanto apoiava a luta de acampados no terreno da Cambahyba.

Amazônia: Modernização via desmatamento e extermínio

O legado da ditadura militar brasileira: projetos de desenvolvimento continuados e um genocídio não resolvido dos povos indígenas

195988Abrindo caminhos de destruição na floresta: construção de estradas na bacia amazônica no início da década de 1980

Por Norbert Suchanek para o “JungeWelt”

Os generais que derrubaram o governo do atual presidente João Goulart no Brasil há uns bons 60 anos, em 31 de março de 1964, com o apoio de setores da sociedade civil e com a ajuda de operações secretas da CIA, governaram o maior país do Sul América por 21 anos. A ditadura militar caracterizou-se sobretudo por graves violações dos direitos humanos; aqueles que se opunham ao regime foram sujeitos a duras repressões, incluindo tortura e assassinatos.

Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) brasileira publicado em 2014, os ditadores assassinaram ou desapareceram para sempre 434 não indígenas e 8.350 indígenas. Além disso, torturaram mais de 20 mil pessoas, segundo um estudo de 2019 da Human Rights Watch. No entanto, os historiadores assumem que o número real de pessoas assassinadas é muito maior, especialmente nas zonas rurais. A Comissão Independente da Verdade Rural do Brasil (CCV), fundada em 2012, concluiu em 2015 que pelo menos 1.196 pequenos agricultores foram vítimas do regime entre 1964 e 1985.

“Não foram apenas os opositores políticos e os activistas que sofreram com as políticas repressivas do regime”. “Toda a sociedade brasileira, talvez com exceção dos perpetradores, foi afetada por esta violência”, escreve Rogério Sottili, diretor do instituto de direitos humanos “Instituto Vladimir Herzog”, em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado pelos militares ditadura em 25 de outubro de 1975.

Derrubando a floresta tropical

O regime, apoiado pela inteligência dos EUA, não só agiu implacavelmente contra os membros da oposição do campo de esquerda, mas também contra os espaços de vida dos povos indígenas e dos grupos populacionais tradicionais. Foi o governo militar que lançou a destruição em grande escala do Cerrado central brasileiro e da floresta amazônica. Uma campanha de destruição florestal que os governos sucessores eleitos democraticamente continuaram até hoje em nome do “desenvolvimento”.

O regime incentivou a imigração de produtores agrícolas, como o futuro barão da soja Blairo Maggi, do sul do Brasil para as planícies da região do Cerrado, que antes era habitada por dezenas de povos indígenas, especialmente no estado de Mato Grosso, a fim de converter em um mar de campos de soja. Em 1965, o Brasil produziu 523,2 mil toneladas de soja. Em 1985 eram mais de 18 milhões de toneladas e hoje são quase 300 milhões de toneladas anuais. No Mato Grosso, a área cultivada com soja passou de doze hectares em 1970 para 795.438 hectares no final da ditadura. Esta área aumentou mais de dez vezes sob a nova democracia, atingindo hoje 12,13 milhões de hectares.

Outro legado vivo da ditadura militar é a construção de estradas e a destruição associada da floresta tropical na Amazônia. A mais conhecida é a construção da infame “Transamazônica” para assentar principalmente pequenos agricultores sem terra do nordeste e do sul da floresta amazônica, em vez de resolver o problema da distribuição injusta de terras. “Terra sem gente para gente sem terra” era o lema da época. O traçado de 4.260 quilômetros, oficialmente denominado BR-230 e inaugurado em 1972, foi um projeto do governo do general Emílio Garrastazu Médici.

Menos conhecida, mas ainda mais ameaçadora para a maior floresta tropical do mundo, é a rodovia federal BR-319, que deveria ligar Manaus a Porto Velho, e que corre paralela aos rios Purus e Madeira, e foi encomendada pelo regime militar no coração da região amazônica. As obras da rota da floresta tropical, inaugurada oficialmente em 1976, começaram em 1968. Mas apenas 20 anos depois, em 1988, a rodovia federal foi abandonada por razões econômicas e deixada à própria sorte. Desde 2015, esta trilha na floresta tropical voltou a ser parcialmente acessível durante a estação seca, graças a um novo programa de manutenção governamental. Se for totalmente restaurada e pavimentada, como pretendido pelo atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a BR-319 e suas estradas secundárias planejadas conectariam o infame “arco de desmatamento” do já fortemente desmatado sul da Amazônia com Manaus. Os atores da destruição florestal, como os especuladores de terras, as empresas madeireiras, os criadores de gado e a agricultura industrial, poderiam avançar ao longo da rota asfaltada. Isto ameaçaria a preservação do último grande bloco intacto de floresta tropical na bacia amazônica brasileira.

Mas sem uma floresta tropical intacta na Amazónia Central, grandes partes do Brasil poderiam ficar altas e secas, teme o investigador climático e amazónico Philip Martin Fearnside, que descreve a BR-319 como a pior ameaça atual para toda a região Amazônica e mais além. Seu asfaltamento poderia levar a um aumento de cinco vezes no desmatamento da floresta tropical até 2030 e causar o colapso de todo o ecossistema amazônico. O cientista, que pesquisa no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, INPA, em Manaus, desde 1978, tem certeza de que os prejuízos para o Brasil seriam enormes.

O lema “Ocupar para não perder” foi o fio condutor da ditadura militar para a construção das primeiras estradas terrestres amazônicas, como a BR-319, para ocupar as áreas povoadas por indígenas, mas, na opinião dos generais, “desertado” com os brasileiros e, portanto, uma possível tentativa de impedir a tomada de poder por potências estrangeiras, diz Fearnside. Ironicamente, hoje a BR-319 pavimentada facilitaria a exploração dos recursos naturais da Amazônia por interesses estrangeiros, particularmente pela empresa petrolífera russa Rosneft, que já adquiriu concessões do estado brasileiro na região da floresta tropical.

Energia hidrelétrica destrutiva

Outro legado da ditadura militar são os megalomaníacos planos hidroeléctricos e de barragens na bacia amazónica para “desenvolver” e industrializar a região. Em 1974, os generais iniciaram a construção da primeira megabarragem da Amazônia, no Rio Tucuruí. A hidrelétrica de mesmo nome, com reservatório gigante de 2.875 quilômetros quadrados, foi finalmente inaugurada em 1984, o que ecologistas e protetores de florestas tropicais de todo o mundo denunciaram na época como um dos maiores desastres ambientais da história do Brasil.

Graças à resistência obstinada e apoiada internacionalmente do povo indígena Kayapó contra a usina hidrelétrica de Altamira, no rio Xingu, que também foi planejada na década de 1970 e mais tarde rebatizada de Belo Monte, os grandiosos planos militares de barragens na bacia amazônica desapareceram novamente. a gaveta. Foi apenas Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), quem tirou do armário os planos hidrelétricos durante seu primeiro mandato como presidente brasileiro. Foi assim que foram construídas as megabarragens Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, e Belo Monte, no Rio Xingu, sob os governos petistas de Lula e sua sucessora Dilma Rousseff, financiadas com bilhões de dinheiro e dívidas dos contribuintes, apesar de todos os protestos dos indígenas. e ativistas ambientais.

Planos de energia nuclear militar

A situação é semelhante com o programa nuclear brasileiro, outro legado da ditadura, que também está intimamente ligado ao então governo federal alemão. Embora a pesquisa nuclear já existisse no Brasil desde a década de 1930, foi somente com o golpe militar de 1964 que o programa nuclear começou a decolar. Os militares não queriam apenas produzir electricidade a partir da energia nuclear, mas sim tornar-se uma potência nuclear e dominar toda a cadeia atómica: desde a extracção de urânio e o enriquecimento de urânio até aos submarinos nucleares e à bomba atómica. Para esse programa de armas nucleares, ainda secreto na época, os generais já estavam de olho e desenvolveram um local para testes subterrâneos: uma base da Força Aérea Brasileira na Serra do Cachimbo, na região amazônica do estado de Pára.

Mas para concretizar estes sonhos de grande potência, era necessário um reactor nuclear funcional. A ditadura comprou-o nos EUA em 1972 à Westinghouse com uma produção de 627 megawatts. A usina nuclear foi construída com o nome de Angra 1 no litoral sul do Rio de Janeiro, no território do povo Guaraní-Mbyá, nativo da região. Três anos depois, o então presidente brasileiro Ernesto Geisel assinou um acordo abrangente sobre cooperação nuclear com a República Federal. Dentro de 15 anos, oito usinas nucleares alemãs seriam construídas no Brasil pela Kraftwerk Union AG, uma cooperação entre AEG e Siemens. Além disso, o acordo também previa a exploração de jazidas de urânio e o desenvolvimento do enriquecimento de urânio e também considerava o reprocessamento de combustível nuclear.

A primeira mina de urânio do Brasil iniciou suas operações em 1982, no estado de Minas Gerais. A primeira usina nuclear, Angra 1, entrou em operação em 1985. A construção da segunda usina nuclear, Angra 2, iniciada em 1981, demorou um pouco mais. Devido à falta de fundos, o primeiro governo civil de transição interrompeu temporariamente o projecto em 1986. Somente no final de 1994 as obras de construção de Angra 2 foram retomadas, e a usina nuclear conseguiu gerar eletricidade pela primeira vez sete anos depois, no início de 2001. O terceiro reator nuclear planejado da Alemanha e já adquirido pelos militares, o Angra 3, foi trazido em navios de Hamburgo para o Brasil em 1984, mas nunca foi construído. A tecnologia das usinas nucleares permaneceu desativada na zona sul do Rio de Janeiro por décadas.

Lula e a energia nuclear

O presidente Lula se lembrou da central nuclear desactivada durante o seu primeiro mandato e surpreendentemente reviveu o programa nuclear congelado da ditadura a um custo de milhares de milhões – para deleite dos militares. Em 2007 anunciou que concluiria Angra 3 e construiria mais usinas nucleares. O Brasil possui todos os requisitos básicos para completar o ciclo nuclear. Não deveria mais faltar dinheiro, disse Lula da Silva à mídia na época. O Brasil se tornará, assim, um dos poucos países do mundo que domina todo o processo de enriquecimento. O presidente de esquerda até iniciou a construção do primeiro submarino nuclear sul-americano, sonho de longa data da Marinha do Brasil.

Talvez tenha sido precisamente este legado dos ditadores de direita que ele aceitou que levou Lula a colocar agora um ponto final na história e a não comemorar o 60º aniversário do golpe militar de Março passado. Ele até proibiu seu Ministério Federal de Direitos Humanos de realizar um evento memorial planejado com o título: “Sem memória não há futuro”. O presidente brasileiro disse em entrevista à televisão que não queria mais “mexer” no passado e acrescentou: “ Para ser sincero, não direi: “Continuaremos a abordar o assunto, mas sim tentaremos fazer este país avançar”. Em fevereiro anterior, Lula já havia afirmado em entrevista que o golpe era coisa do “passado” e que. ele não queria ter que se lembrar sempre disso. Segundo pesquisa do Datafolha, 59% dos brasileiros apoiaram a proibição imposta por Lula às comemorações do golpe de 1964.

No entanto, vítimas da ditadura e ativistas dos direitos humanos manifestaram-se em São Paulo e em outros locais do Brasil para assinalar o aniversário. Centenas deles gritavam “Chega de ditadura!” e “Punições para os generais!” Os manifestantes em São Paulo exigiram a punição dos golpistas, torturadores, estupradores e assassinos que ainda estavam protegidos de uma punição justa pela lei de anistia de 1979. O governo também deveria prosseguir uma política de memória e restabelecer a prometida comissão especial para os mortos e desaparecidos da ditadura.

Genocídio impune

Um capítulo particularmente sombrio e ainda não resolvido da ditadura é o genocídio dos povos indígenas do Brasil, especialmente na região do Cerrado e na Amazônia. Até hoje, os crimes cometidos contra os povos indígenas naquela época permanecem em grande parte obscuros e os perpetradores permanecem foragidos e impunes. Por exemplo, a construção da rodovia federal perimetral BR-210, que liga os estados do Amapá, Amazonas, Pará e Roraima, no norte da Amazônia, teria trazido “devastação, violência, fome, doenças e a morte de milhares de Yanomami”. ”. O número exato de vítimas não é conhecido. A Comissão Nacional da Verdade estima vários milhares de vítimas entre o povo Yanomami.

O mais importante e primeiro documento até o momento que lista inúmeras violações de direitos humanos contra os povos indígenas durante o governo militar é o chamado Relatório Figueiredo de 1968, que ficou perdido 45 anos após sua conclusão. O relatório original de 7.000 páginas do procurador-geral Jader de Figueiredo Correia foi encomendado pelo ministro do Interior, general Albuquerque Lima, durante a ditadura, com o objetivo real de expor a corrupção na Autoridade Indígena da Funai.

Correia viajou mais de 16 mil quilômetros pelo Brasil com sua equipe de investigação. Eles viram um horror de proporções bíblicas. Nas cerca de 5 mil páginas do relatório, redescobertas no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 2013, Figueiredo Correia escreve sobre o extermínio de povos inteiros, torturas e todo tipo de atrocidades cometidas contra a população indígena, principalmente por grandes proprietários de terras e funcionários do Estado: assassinatos, prostituição forçada, trabalho escravo. O promotor também relatou caçadas humanas, com indígenas sendo metralhados de aviões ou explodidos com dinamite. Diz-se que populações indígenas isoladas foram deliberadamente infectadas com varíola mortal ou envenenadas com açúcar misturado com estricnina.

Segundo documentos do Congresso Nacional, segundo Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo de pesquisa paulista “Chega de Tortura”, havia cerca de 300 mil indígenas no Brasil em 1963. Cinco anos depois, em 1968, havia apenas 80 mil. O que aconteceu com os 220 mil indígenas não registrados?

Não está incluído nessas estatísticas de 1968 o sofrimento dos Waimiri Atroari, que se autodenominam Kinja: sua área tribal fica entre os estados do Amazonas e Roraima, no norte da Amazônia, exatamente onde os militares bloquearam a rodovia federal BR-174 de Manaus a Boa Vista e Venezuela, a exploração de minerais e a “absurda” hidrelétrica econômica e ecologicamente “absurda”. Os povos indígenas atrapalharam o “modelo progressista” dos ditadores e, portanto, mataram quase 90 por cento desses povos indígenas. Segundo o cofundador do Conselho Missionário Indígena Católico (Cimi), Egydio Schwade, que atuou na região na década de 1970, a planejada hidrelétrica de Balbina, da Eletronorte, e a pretendida exploração de minérios na região pela mineradora Mineração Taboca , fundada em Pitinga em 1968, teve participação ativa no genocídio do povo Waimiri Atroari.

Os estudos do projeto da barragem de Balbina, concluído em 1987, tiveram início em 1968. Naquela época, existiam pelo menos oito aldeias indígenas na parte sul do território indígena, na área do atual reservatório de Balbina, com 2.360 quilômetros quadrados, diz Schwade. Outras nove aldeias Kinja desapareceram na área da atual mina de Pitinga, na zona norte. Em 1972, a Funai contava com cerca de três mil Kinja em seus territórios ao norte de Manaus. Em 1983, apenas 350 deles ainda estavam vivos porque não se deixaram expulsar voluntariamente das suas áreas tribais. O que exatamente aconteceu entre 1968 e 1983 ainda não foi totalmente revelado.

O certo é que os indígenas resistiram desde o início às obras de construção de estradas, como se pode ler no livro “História da Amazônia” do historiador brasileiro Márcio Souza. Em 1973, uma tentativa de contato teria culminado na morte de quatro funcionários da Autoridade Indígena da Funai. Um ano depois, os Kinja teriam matado quatro madeireiros contratados do Maranhão, no Nordeste do Brasil, porque estavam derrubando árvores em seu território para a construção de estradas. Na época, a mídia noticiou o “massacre dos Maranhenses”. Mesmo assim, os militares não desistiram do projeto da BR-174. A estrada era importante e precisava ser concluída a todo custo, disse na época um coronel do sexto batalhão de engenharia e construção da ditadura. Como resultado, os indígenas rebeldes foram simplesmente bombardeados e baleados, de acordo com o primeiro relatório publicado em 2012 pela Comissão Estadual da Verdade do estado federal do Amazonas. De acordo com relatos de sobreviventes, as aldeias Waimiri Atroari também foram bombardeadas com pólvora “semelhante a poeira” de aeronaves.

Os afetados tinham medo de falar sobre os massacres; era proibido, diz o antropólogo Stephen Grants Baines. Mesmo assim, os indígenas relataram aviões voando sobre suas cabeças e poeira caindo. E que eles respiraram essa poeira e como resultado pessoas morreram. “Portanto, é muito provável que tenham jogado veneno ou gás para destruir a população”, disse Baines em entrevista de 2019 à Universidade Estadual de Roraima (UFRR). O antropólogo iniciou suas pesquisas em 1982 na área Waimiri Atroari até ser proibido pelo governo e pela Funai. Baines: “Quando cheguei (para a região) em janeiro de 1982, a Mineração Taboca já estava lá explorando e minerando as jazidas de minério. Já vi a poluição do rio Alalaú e seus afluentes que vinha da área de mineração da Taboca. Os resíduos da mina Pitinga amarelaram o Alalaú. Hoje Pitinga é considerada um dos maiores produtores mundiais de estanho”. Além da matéria-prima primária estanho, também produz tântalo, nióbio e urânio em mineração a céu aberto, segundo o relatório “Matérias-primas estratégicas, projetos e oportunidades de negócios para empresas alemãs” da Câmara de Comércio e Indústria Teu-Brasileira de São Paulo. Paulo e a Agência Alemã de Matérias-Primas (Dera-BGR) o ano de 2019. A produção de estanho em Pitinga em 2018 foi de cerca de 7 mil toneladas.

Assim como os Kinja, muitos outros povos indígenas foram um obstáculo desagradável à colonização e ao desenvolvimento industrial e, sobretudo, aos grandes proprietários de terras e empresas agrícolas que se apropriavam cada vez mais de terras no centro e norte do Brasil, razão pela qual, além de assassinatos , o reassentamento forçado também fazia parte da tarefa dos generais. Talvez o exemplo mais marcante disso seja o dos Xavante de Marãiwatsédé, no Mato Grosso. Em 1966, por atrapalharem o grande proprietário paulista Ariosto da Riva, que se apropriara de cerca de 800 mil hectares de terras na região, os militares obrigaram os últimos 263 Xavantes de Marãiwatsédé a embarcar em um avião de transporte da Força Aérea e os levaram na estação missionária da Ordem Salesiana de São Marcos, a 400 quilômetros de distância. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, 83 deles morreram pouco depois de chegarem à missão, em consequência de um surto de sarampo. Um pouco mais tarde, em 1971, Ariosto da Riva vendeu com lucro as terras agora “livres de índios” para a empresa italiana Liquifarm.

Alguns dos Xavante de Marãiwatsédé sobreviveram à ditadura e ao proselitismo. Hoje, em 2024, eles lutam contra a continuação e asfaltamento da rodovia federal BR-080, de Brasília ao Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, porque ameaça um de seus lugares mais sagrados. O agronegócio, porém, considera a BR-080 necessária para escoar a safra crescente de soja da região do Araguaia.

*Norbert Suchanek viajou ao Brasil pela primeira vez em 1987, durante o período de transição da ditadura militar para a democracia. Um dos primeiros relatórios que publicou na Alemanha foi sobre o desmatamento e a destruição da floresta amazônica nessa época. O jornalista, autor e cineasta de Würzburg trabalha como correspondente estrangeiro no Rio de Janeiro desde 2006.


compass black

Fonte: JungeWelt

SBPC realiza hoje debate “60 anos do golpe militar: sem memória não há futuro”

Evento será nesta segunda-feira, 1º de abril, a partir das 14h, com transmissão ao vivo pelo canal da SBPC no YouTube. Sob a coordenação de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, especialistas e testemunhas oculares dos acontecimentos participarão da atividade

ditadura

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realiza nesta segunda-feira, 1º de abril, o debate “60 anos do golpe militar: sem memória não há futuro”. A iniciativa visa a aprofundar a compreensão sobre os eventos de 1964 que marcaram a história do Brasil e repercutiram em suas instituições e na vida de milhares de cidadãos até os dias de hoje.

O evento será transmitido ao vivo pelo canal da SBPC no YouTube (www.youtube.com/canalsbpc) a partir das 14h. Sob a coordenação de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, especialistas e testemunhas oculares dos acontecimentos participarão do debate: Cid Benjamin, jornalista e líder estudantil nos movimentos de 1968; Rosa Freire D’Aguiar, jornalista e exilada política; Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador sobre a ditadura militar; e Helena Serra Azul Monteiro, professora titular da Universidade Federal do Ceará (UFC), presa e torturada pelo regime militar em 1968 e 1972.

Renato Janine Ribeiro ressalta a importância de manter viva a memória dos períodos sombrios da história brasileira. “A SBPC considera muito importante não deixar cair no esquecimento a ditadura que o Brasil viveu e que muitas pessoas que hoje estão na vida ativa vivenciaram, tendo limitadas as suas liberdades, tendo menos condições de se expressar, menos condições de utilizar sua inteligência para o bem comum, uma vez que a ditadura não apenas reprime, tortura, como também censura a expressão do conhecimento.”

O Golpe Militar de 1964, que se iniciou em 31 de março daquele ano e que deixou o país nas trevas da violência ditatorial por duas décadas, é um marco histórico que deve ser revisitado e compreendido sob diversas perspectivas. Especialmente quando vemos no Brasil manifestações pedindo o retorno da ditadura no País e ataques às instituições democráticas, como testemunhamos em 8 de janeiro de 2023, a análise crítica desses eventos passados contribui para a consciência sobre o valor da democracia e para a garantia de que atrocidades como as ocorridas durante a ditadura não se repitam jamais.

“Por isso mesmo, nós entendemos que a sociedade brasileira precisa ajustar constantemente as contas com o passado, especialmente com o nosso passado, que nos deixa um legado que passa pela colonização, escravidão, oligarquias, ditaduras, enfim, um passado que precisa ser exposto à luz do sol para que a gente possa garantir um ‘nunca mais’ bastante forte a tudo isso. Esta é a razão pela qual recordaremos esta data com atividades acadêmicas, como é de nosso feitio. É uma ocasião de reflexão, porque acreditamos que é do pensamento que podem nascer as grandes propostas, que pode nascer um Brasil solidamente democrático”, ressalta o presidente da SBPC.

Sobre os participantes

Líder estudantil nos movimentos de 1968 e dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), Cid Benjamin foi preso no dia 21 de abril de 1970 e torturado nos porões do DOI-Codi. Passou quase dez anos no exílio, entre Argélia, Chile, Cuba e Suécia. De volta ao Brasil, participou da fundação do PT e, depois, da criação do PSOL. Publicou livros sobre a ditadura, entre eles “Gracias a la vida: memórias de um militante”; e organizou a obra “Meio século de 68. Barricadas, história e política”.

Rosa Freire Aguiar é uma jornalista e tradutora carioca que, perseguida pela ditadura militar, exilou-se na França em 1973. Lá, atuou como correspondente internacional e conheceu intelectuais e tantos outros brasileiros exilados, entre eles, o economista Celso Furtado, com quem foi casada por 20 anos. Da Europa, cobriu para a revista Isto É momentos marcantes da história, como o período de redemocratização da Espanha após os 40 anos da ditadura do general Francisco Franco.

Carlos Fico é professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Dedica-se aos estudos sobre a ditadura militar no Brasil e na Argentina, a memória e a violência. Sobre o período em que os militares estiveram no poder no Brasil, escreveu quatro livros: “Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (1969-1977)”; “Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política”; “O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira”; e “O golpe de 1964: momentos decisivos”.

Helena Serra Azul Monteiro, professora titular do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), foi presa pela ditadura em 1968, grávida de apenas dois meses de seu filho Manuel, junto ao marido, o ativista Francisco Monteiro. No Dops de Recife, sofreu todos os tipos de torturas e quase perdeu o bebê que esperava.  Manuel Monteiro nasceu no presídio e passou ali os primeiros oito meses de vida. Quatro anos depois, em 1972, Helena e o marido foram presos novamente. Parte de sua história é contada no livro “Brasil Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns.

Serviço:

“60 anos do golpe militar: sem memória não há futuro”

Data: 1º de abril de 2024, segunda-feira,14h

Transmissãowww.youtube.com/canalsbpc

SBPC

Petrobras participou de torturas e monitorou até orientação sexual de funcionários

Documentos exclusivos mostram que na ditadura a estatal também criou órgão de vigilância para reprimir “subversivos”

unnamed (21)

Amanda Miranda/Agência Pública

Por Dyepeson Martins, da Agência Pública

A dificuldade de acesso a uma refinaria de petróleo, em São Francisco do Conde, no interior da Bahia, levou à construção de alojamentos para os funcionários da unidade, gerenciada pela Petrobras entre 1953 e 2021. Um dos espaços que deveria ser usado para descanso no intervalo de trabalho, no entanto, foi transformado num centro de torturas de pessoas consideradas “subversivas”, após o golpe que inaugurou a ditadura militar no Brasil, em março de 1964.

Carlos Alves* foi uma das vítimas na Bahia. O ex-operador de máquinas que à época tinha 27 anos fazia parte das “listas de subversivos” elaboradas a partir da investigação de militares infiltrados na estatal. Nos anos de ditadura (1964-1985), Carlos era filiado ao Sindipetro-BA (Sindicato dos Petroleiros da Bahia) e hoje, com 87 anos, reside em Manaus (AM). Ele convive com problemas de saúde que dificultam a sua comunicação; o episódio de tortura, contudo, foi relatado pelo ex-colega de cela. “Ele deitou no chão e eles com calcanhar de coturno arrancaram as unhas desse colega. Até quando eu falo fico emocionado porque foi um ato de covardia. […] além das unhas arrebentaram ele todo”.

Carlos teria recebido dos próprios militares as unhas arrancadas durante a tortura. A refinaria estava em pleno funcionamento no momento da agressão, ocorrida em 1964, e o fluxo de militares dentro da empresa era constante, conforme entrevistas as quais a Agência Pública teve acesso em um material que faz parte do projeto“A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, um trabalho de pesquisa que envolveu 55 pesquisadores e foi conduzido pela Universidade Federal de São Paulo, através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) em parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo.

Os dados coletados no caso Petrobras apontam que a companhia e o Exército atuaram juntos na instauração de inquéritos e no levantamento de 3 mil suspeitos, com abertura de cerca de 1,5 mil processos de investigação e indiciamento de 712 operários.

Os relatos apontam ainda a participação da Petrobras em casos de tortura, operações do regime militar, monitoramento e perseguição aos trabalhadores, sobretudo sindicalistas.

Edson Teles, o coordenador do projeto pelo CAAF/Unifesp avalia que “é preciso fazer dessas informações um ato de justiça”. “O acesso a essas histórias é fundamental pra gente entender o que nós somos enquanto país, enquanto sociedade, o que nós somos enquanto estado de direito”, e reforça: “Agora, insisto, só vai ter efeito se a gente juntar o direito à memória e à verdade com o direito à justiça”.

Simulação de fuzilamento

A violência não era só física, descreveu João Paulo*, ex-funcionário da Petrobras. Ele disse ter sido levado, ainda em 1964, ao quartel do Exército localizado no bairro Amaralina, em Salvador (BA). No local, passou por uma simulação de fuzilamento para “falar” — não especificou quais informações os militares buscavam.

“Me ouviram e perguntaram se eu não estava disposto a falar. Eu disse que não. Então eles disseram que eu ia ser fuzilado. Me levaram para um negócio todo de fuzilamentos, botaram o pelotão, exatamente o pelotão. Aí começam vai ou não vai. Eu falei: ‘não’. Aí os caras com aquela ‘apresentar armas, atirar e bummm!’ Aquele tiro de pólvora seca, né?”, narrou.

O trauma o fez perder parte do movimento das pernas por uma semana. “Quando eu terminei, rapaz, as pernas estavam que eu não conseguia andar. Eu não conseguia andar. (…) Fui recuperando aos poucos, eu pegava assim, ia levantando [a perna] até que me levantei, né?”.

Relação com a ditadura Pinochet

Um telegrama do consulado brasileiro no Chile enviado ao MRE (Ministério de Relações Exteriores) a respeito de um chileno que concorria a uma vaga de emprego na Petrobras diz: “Segundo informações do departamento de investigações do Ministério da Defesa Nacional do Chile nada consta sobre”.
 

Telegrama do consulado brasileiro no Chile ao MRE aponta a investigação de um chileno que concorria a vaga de emprego na Petrobras. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública

O documento é datado em 30 de março de 1981, quando as terras governadas atualmente pelo democrata Gabriel Boric viviam na autocracia de Augusto Pinochet, o ex-ditador que esteve no poder entre 1973 e 1990.

A solicitação de dados passou pelo Ministério de Minas e Energia antes de chegar ao MRE e ser recebida pelo consulado, detalhou Luci Praun, pesquisadora da Universidade Federal do Acre e uma das responsáveis pelo relatório da CAAF/Unifesp. “A questão principal que está colocada ali é a relação entre as ditaduras, a internacionalização da perseguição e da repressão política”, avalia.

A estrutura da empresa também seria utilizada pelo regime. Pesquisadores identificaram a participação direta em pelo menos uma operação do Exército: “Operação Pajussara”, que buscou, em 1971, capturar Carlos Lamarca, um dos maiores nomes da resistência contra a ditadura. A Petrobras colaborou, informa o relatório do próprio Exército, com pelo menos um motorista e um veículo.

Vigilância e Controle
 

Petrobras compartilhava frequentemente informações sobre trabalhadores e ex-funcionários com agentes da ditadura. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública

Os documentos também revelam monitoramentos realizados por órgãos internos criados pela Petrobras, a exemplo da DIVIN (Divisão de Vigilância e Informação). Uma lista de controle da frequência de entrada e saída de pessoas numa das dependências do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em São Paulo, e mostra a visita de dois membros da DIVIN em 7 de maio de 1975.

Lista de frequência em sede do DOPS mostra a visita de dois integrantes do serviço de vigilância da Petrobras. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública

Outra evidência de cooperação com a ditadura está no pedido de buscas datado de 30 de outubro de 1969. O assunto em questão: “investigação política-social”. E, com isso, solicita ao DOPS informações sobre alguns funcionários. A resposta foi enviada em 14 de novembro do mesmo ano e tinha observações relacionadas a filiações partidárias e participações em sindicatos.

Petrobras pediu investigação “política-social” dos funcionários. A resposta conteve informações sobre filiações partidárias e sindicais. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública.

Um dos nomes é descrito pelo DOPS como funcionário do Terminal do Porto de São Sebastião — município paulista com atuação da petrolífera — onde é considerado “elemento perigoso ao regime democrático”. O adjetivo “democrático” classifica, nesse caso, o período marcado por violações de direitos humanos, censura, torturas, assassinatos e prisões de opositores políticos no Brasil.

A narrativa controversa também consta no parecer da Comissão Geral de Investigações da Petrobras relativo a empregados da Bahia. Nele, um trabalhador demitido após 9 anos de casa é identificado como alguém que não negou “ter colaborado com movimentos antidemocráticos”. Logo abaixo, é recomendada a “exclusão” de um funcionário que atuava na empresa por, entre outras alegações, ser “comunista autuante”.

Funcionários classificados como “comunistas” e “subversivos” eram demitidos da empresa. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública.

Perseguição à sexualidade

Além dos ideais políticos, os serviços de vigilância da Petrobras também teriam monitorado a orientação sexual de seus trabalhadores. Isso ocorria no contexto das “listas sujas” — caracterizadas pelo compartilhamento de informações entre redes de segurança de companhias em realocações no mercado de trabalho. O levantamento da Unifesp identificou ao menos 10 situações em que os trabalhadores eram perseguidos por questão da sexualidade.

Um documento assinado por um dos chefes da DIVIN, Prospero Punaro Baratta Neto, por exemplo, cita um trabalhador: “(…) tem uma apresentação pessoal anormal, com todas as características de quem pratica a pederastia, incompatível com as atividades de trabalho em turno numa plataforma marítima”. “Pederastia” foi um termo homofóbico editado durante a ditadura no Código Penal Militar, que punia “atos sexuais” em lugares sujeitos à administração das Forças Armadas.

Em relatório, chefe de órgão da Petrobras faz observação homofóbica sobre trabalhador da empresa. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública

A norma discriminatória estabelecia pena de detenção de 6 meses a um ano ao militar que praticasse ou permitisse que com ele se praticasse “ato libidinoso, homossexual ou não”. Em 2015, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a inconstitucionalidade das expressões “pederastia” e “homossexual ou não”. A decisão atendeu à ação ingressada pela PGR (Procuradoria-Geral da República), que classificou os termos como oriundos de um período de autoritarismo e intolerância às diferenças.

Um outro relatório, de 22 de agosto de 1973, reforça a ocorrência de ações discriminatórias. Descreve o afastamento de um assistente administrativo, de 38 anos, por ser “conhecido como elemento pederasta passivo” e que no local de trabalho “defendia tese do reconhecimento do ‘3º sexo”, mais um termo homofóbico e pejorativo utilizado nas justificativas à época.

Sindicatos eram investigados

Sindicatos eram monitorados e investigados pelos serviços de vigilância da Petrobras e forças militares. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública

Uma avalanche de intervenções em sindicatos iniciou-se junto com o golpe militar em 1964. Em 7 de abril daquele ano, o Jornal Folha do Norte, anunciou que o Ministério do Trabalho havia decretado intervenção nos Sindicatos dos Trabalhadores da Indústria de Extração de Petróleo dos estados do Pará, Amazonas e Maranhão. A notícia abordava o mito da escalada comunista no Brasil e enfatizava que os sindicalistas teriam trocado correspondências com Moscou e outras capitais, “funcionando ativamente o recebimento de material subversivo”.

No mesmo dia da intervenção nos estados das regiões Norte e Nordeste, o superintendente da refinaria de Presidente Bernardes, José Augusto Angrisani, em Cubatão (SP), publicou uma convocação para o retorno de trabalhadores — possivelmente em greve — ao serviço, no prazo máximo de 24 horas. Caso contrário, alertava o superintendente, os contratos seriam rescindidos. O comunicado destacava: “o interesse e a segurança nacionais não podem estar sujeitos a manifestações isoladas de indisciplina”.
 

Superintende de unidade fez convocação hostil ameaçando demitir funcionários que não retornassem ao trabalho. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública

Postulantes a funções de presidentes sindicais também estavam na mira da repressão. Em 9 de agosto de 1976, um ofício foi encaminhado ao titular da DOPS com a solicitação de informações de “antecedentes político-ideológicos” dos candidatos às eleições que seriam realizadas pelo Sindicato dos Petroleiros, em Cubatão.

Documento mostra a investigação de antecedentes “político-ideológicos” de candidatos a presidente de Sindicato dos Petroleiros. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública.

Os sindicalistas identificados como “subversivos” eram denunciados de forma imediata. Uma auditoria da Justiça Militar encaminhada pelo auditor em exercício, João Nunes das Neves, ao então presidente da Petrobras, em 15 de maio de 1969, evidencia como opositores seriam tratados. O auditor solicita informações de oito pessoas vinculadas à empresa e esclarece que o pedido se faz necessário para que o presidente da estatal denunciasse os funcionários no IPM (Inquérito Policial Militar) instaurado com o objetivo de “apurar atividades subversivas em sindicatos de classe”. Na mesma página, o auditor enfatiza a urgência do pedido por configurar processo de “subversão”.

Auditor encaminha a presidente da Petrobras solicitação de informações sobre funcionários para apurar “atividades subversivas”. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública.

“Tem uma eleição que é um pedido de intervenção direta com um pedido proveniente da superintendência para impugnar uma candidatura. Inicialmente a Delegacia do Trabalho impugna essa candidatura e mais tarde os trabalhadores conseguem na justiça o direito de concorrer. Isso por óbvio antes do AI-5 [Ato Institucional nº 5 emitido em 13 de dezembro de 1968 e que deu início ao período mais violento da ditadura]. Aí essas questões se tornam mais difíceis”, frisou Alex Ivo, pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia e integrante da pesquisa da Unifesp.

Agentes infiltrados

IPMs tomaram conta de unidades da Petrobras entre abril e outubro de 1964. Os recrutados para vigiar os funcionários, segundo os relatos obtidos pela Pública, eram jovens que serviam às Forças Armadas. Militares também eram colocados em funções estratégicas de acesso a dados pessoais dos trabalhadores. “Normalmente os militares tinham atividade no setor de recursos humanos, sempre era na área de recursos humanos porque assim, facilitava ‘pra’ eles passar informações caso a pessoa se envolvesse em atividade política ou sindical”, descreve o relato documentado de um ex-operário.

Em meio aos inquéritos, a troca de informações entre regime e empresa tornou-se ainda mais frequente — um dos exemplos é o ofício de um interventor ao DOPs, em 18 de julho de 1964. São encaminhados nomes e filiações dos membros da diretoria do sindicato que atendia a trabalhadores de Cubatão, Santos e São Sebastião, em São Paulo.

Há também indícios de que os órgãos de classe eram monitorados mesmo antes de a ditadura ser instalada e que a Petrobras contratava infiltrados para fragilizar a atuação sindical. Um dos possíveis espiões é descrito na solicitação feita por meio da DIVIN, em 29 de julho de 1965. O documento requeria dados sobre um empregado que à época do golpe de 1964 exercia cargo-chefe na empresa. O DOPS, por sua vez, respondeu que o funcionário desempenhava função para a segurança nacional e seu contato com o sindicato obedecia o “prévio plano”. O texto, porém, não detalha o cerne do “plano” articulado.

Relatório aponta que possível infiltrado da Petrobras cooperava com a ditadura e seguia “plano prévio”. Foto: Amanda Miranda/Agência Pública.

A reportagem entrou em contato com a Petrobras via assessoria de imprensa para que comentasse o conteúdo publicado, mas não obteve retorno até a publicação.

Esse acervo da Petrobras com documentos e testemunhos que por décadas ficou escondido faz parte de um relatório ainda inédito enviado ao Ministério Público Federal que pretende servir de base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar. “Um dos objetivos era reunir elementos, indícios e provas para que o MP pudesse abrir ações judiciais, inquéritos ou procedimentos administrativos contra essas empresas”, diz Edson Teles, coordenador do projeto.


compass black

Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública  [Aqui!].

O caso Riocentro, Cambahyba e a luta pelo direito à verdade

rio centro 2.jpg

*Por Luciane Soares da Silva

Ao referir-se a morte do pai de Felipe Santa Cruz atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o presidente Jair Bolsonaro, desceu mais um degrau no caminho de infâmia. Despertou o repúdio em alguns de seus apoiadores públicos, intensificou o repúdio em outros tantos e não conseguiu outra classificação que não a de um tipo social cruel, covarde e mentiroso.

Este texto é escrito na cidade de Campos dos Goytacazes, onde está localizada a Usina de Cambahyba[1]. Hoje em escombros, a Usina  tem sido apontada como local em que corpos eram incinerados durante o regime militar, especialmente entre 1974 e 1975. Antes deste período, muitos opositores do regime tinham seus corpos enterrados em valas comuns ou atirados de lugares como o Alto da Boa Vista na capital. Suspeita-se que a opção por Cambahyba[2] tenha relação com um maior cuidado do Exército em relação à provas sobre o paradeiro dos desaparecidos.

rio centro 1

O ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, arrependeu-se das inúmeras mortes que praticou durante a Ditadura e arrependido, resolveu contar no livro Memórias de uma guerra suja (2012) detalhes dos anos de chumbo. Além disto, foram muitos os depoimentos dados sobre desaparecidos, torturas, mortes e as formas de atuação do Exército contra aqueles classificados como subversivos. Entre os casos pouco conhecidos das novas gerações, nascidas no período da redemocratização, um é especialmente pedagógico para que se compreenda até que ponto os militares poderiam ir para evitar a redemocratização no Brasil.

Em 30 de abril de 1981, no Riocentro, vários artistas participavam de uma comemoração pelo dia do Trabalhador. Aproximadamente 20 mil pessoas estavam presentes no evento e não ouviram a explosão. Em meio ao show com grandes nomes da música brasileira, uma bomba explodira no estacionamento. Outra,foi atirada em direção a miniestação elétrica e deveria  produzir queda de luz, causando pânico entre os presentes. Estranhamente, naquela noite a escala foi mudada, os portões estavam trancados. A terceira bomba, explodiria sob o palco. Atingiria artistas como Chico Buarque, Beth Carvalho, Fagner, Clara Nunes entre outros. Foi Gonzaguinha[3] que com voz trêmula e muito pausada, deu a notícia ao público presente sobre o que estava ocorrendo. Disse ele “pessoas contra a democracia jogaram bombas lá fora para nos amedrontar”. Até aquele momento pouco se sabia. A explosão da primeira bomba, de forma acidental, matou um sargento do exército e feriu gravemente um capitão. As demais não causaram dano mas se atingissem o objetivo, teriam matado um número grande de pessoas.

Desde então o caso Riocentro tem sido um dos eventos mais importantes para compreensão de nossa história recente. Podemos assumir como resultado das investigações, que o objetivo da ação era frear o processo de abertura do país. Responsabilizando a esquerda pelo atentado (placas com a sigla VPR[4] foram pichadas para incriminar a esquerda). O que poderia gerar um sentimento que justificasse a perpetuação do regime no poder. É possível relacionar os atentados com o uso de bombas praticadas pelo Exército Brasileiro e a instauração do Ato Institucional  número 5 (AI-5). E esta constatação contraria a tese de que foi a ação armada da esquerda que levou os militares ao endurecimento do regime. Alguns utilizam o conceito  de terrorismo de Estado[5] para compreender este período. Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA, sabia desde 1974 como ocorriam no Brasil as ligações entre o Planalto e os porões da tortura. E sob o governo de Geisel, as execuções seguiram com critérios específicos, mas sob o comando do então ministro do Sistema Nacional de Informação, João Figueiredo.

Um mês depois do atentado no Riocentro, a CIA já contava com documentos que reforçavam a tese da participação de militares no atentado. As versões só vão sendo esclarecidas à medida que alguém quebra o silêncio. E certamente o ex-delegado Cláudio Guerra ocupa um lugar central no esclarecimento de fatos como a morte da estilista Zuzu Angel, os corpos incinerados em Cambahyba e a morte de Fernando Santa Cruz nas mãos do Estado Brasileiro. Além dos detalhes sobre as condições em que os corpos chegavam a Usina, Guerra transitava em todos os espaços de tortura. Espaços como o DOI-CODI, no qual seria assassinado o jornalista Wladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. Ambos terão suas mortes classificadas como “suicídio”, com laudos de um mesmo médico. A famosa foto do suicídio foi uma das peças que colaborou para mostrar a crueldade do regime. A confissão do fotógrafo Silvaldo Vieira não deixa dúvidas: a cena estava montada e ele, praticamente da porta, teve de fazer a foto.  O que deixa claro que os alvos do DOI-CODI e do regime não estavam apenas entre os militantes considerados “perigosos” por participarem de ações armadas.

Retomando, o atentado do Riocentro, teria matado centenas de pessoas, além de artistas importantes de nossa música. Nossa história recente mostra que o desconhecimento destes fatos possibilitou a proliferação de manifestações pela volta da Ditadura. Instaurado o regime da pós verdade, não há freios para desconstrução diária feita pelo governo Bolsonaro. Ele alterna a negação da história (propositadamente) com uma pauta moral capaz de produzir confusão o suficiente para transformar o cenário político nacional em um emaranhado de mal entendidos. Enquanto isto, a Reforma da Previdência é votada.

Não há veículo de imprensa que desconheça a sanha odiosa do presidente. Hoje, ao tentar colocar sob os ombros da esquerda a morte de Fernando Santa Cruz, ele reeditou as atuações de grupos de extrema-direita. Ao usarem bombas e atentados para amedrontar a população, acreditavam ser possível deter a democracia e perpetuarem-se no poder.

O que faremos para deter a sanha de destruição e morte de um presidente que tem como marca de sua gestão a crueldade, a hipocrisia, e o desrespeito total aos direitos humanos?

Minha solidariedade a todos os familiares que não puderam velar seus mortos e que vivem o inferno de ter na presidência, um homem que de forma covarde, zomba da verdade diariamente.

[1] https://www.brasildefato.com.br/2019/03/15/no-rj-mpf-investiga-destruicao-de-usina-que-serviu-para-ocultar-corpos-na-ditadura/

[2] https://www.facebook.com/watch/?v=1043539819044612

[3] https://www.youtube.com/watch?time_continue=55&v=7aFjmZUYIUI

[4] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/riocentro-atentado-do

[5] https://apublica.org/2018/10/atentados-de-direita-fomentaram-ai-5/

________________________________________________

* Luciane Soares da Silva é docente do Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce) da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).

Incra censura divulgação de livro sobre ditadura escrito por servidora aposentada

Obra de Áurea Oliveira Silva analisa os aparelhos repressivos e ideológicos do Estado coercitivo instalado no pós-golpe de 1964 que calaram o povo brasileiro, bem como a resistência em Santa Catarina

livro sobre ditadura censurado no incra

Antigo Mobral. Áurea foi professora de alfabetização de adultos em uma turma muito parecida com a da foto

Por Cida de Oliveira para a Rede Brasil Atual

São Paulo – O aniversário do 31 de março de 1964 não passou em branco no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. E para trazer de volta o clima pós-golpe, o general João Carlos Jesus Corrêa restaurou a censura. Mandou seu gabinete retirar uma notícia divulgada na rede de comunicação interna do Incra, a Incranet.

As coincidências não param por aí. A informação censurada era sobre o lançamento do livro O estado autoritário e a pedagogia do silêncio – 1964-1979 (Editora Insular)escrito por uma servidora do Incra aposentada, a professora Áurea Oliveira Silva, 76 anos, mestre em educação e militante política.

O livro analisa justamente como o Estado coercitivo instalado no pós-golpe de 1964, por meio de seus aparelhos repressivos e ideológicos, educou os indivíduos ao silêncio. E também a construção dos mais importantes movimentos de resistência em Santa Catarina, bem como as formas de micro-resistências dos indivíduos para sobreviver e se rebelar.  

Para tanto leu documentos do período e fez entrevistas para entender como a repressão física e psicológica do Estado, em colaboração da sociedade civil, provocou o silêncio, a alienação e o exílio interno e externo.

Lançado na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em Florianópolis, na noite de segunda-feira (1º), dia em que o golpe foi efetivado, há 55 anos, a obra parte de sua pesquisa Aprender a calar e aprender a resistir: a pedagogia do silêncio em Santa Catarina, para obtenção do mestrado em Educação defendido em 1993, pelo Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Clique aqui para fazer o download da dissertação.

“Durante 20 anos tentei publicar a dissertação, mas não consegui. E com a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018 voltei a pensar no assunto. Tudo deu certo quando encontrei um editor, que se interessou”, disse Áurea à RBA.

Na sua avaliação, a atitude da presidência mostra que a situação no país está ficando cada vez mais parecida com a ditadura que foi sua algoz e ao mesmo tempo objeto de seus estudos. 

Nascida em Uruçuca, no sul da Bahia, Áurea foi para Salvador, onde ingressou no movimento estudantil por meio de atuação no grêmio do ginásio Duque de Caxias. Aos 19 anos mudou-se para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde atuou em ações das Comunidades Eclesiais de Base em defesa dos moradores da favela Santa Marta, na época vulneráveis ao interesse imobiliário.

Medo

Perseguida, fugiu para Ilhéus (BA), voltando mais tarde para São Paulo. Operária e militante em fábricas, foi presa pelo Dops e Operação Bandeirante. Quando saiu das prisões, onde foi torturada, ingressou na Ação Popular (AP), vivendo na semiclandestinidade, até que em 1973 foi para o Chile. Com o golpe de Augusto Pinochet contra o governo de Salvador Allende naquele ano, seguiu para o Canadá, onde obteve cidadania, e depois para Moçambique. Em 1980, retornou ao Brasil. Estudou na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e na Unicamp, onde graduou-se em Pedagogia, e o mestrado em Educação pela UFSC.

“A partir do lançamento do livro na Alesc, que pela primeira vez reuniu mais de 200 pessoas, me sinto descoberta. Mas eu sabia que estava cutucando a onça com a vara curta. Não tenho medo por mim, porque mexer comigo passa a ficar complicado. Mas que mexam com familiares. Um argentino conhecido, que tem filho morando em Paris, contou que já há muita gente sendo ameaçada no Brasil por telefone. E que muitos na França já se mobilizam para receber pessoas vítimas de ameaças”, disse.

Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (CNASI) divulgou nota sobre o episódio, na qual mostra prints das publicações antes de serem retiradas. Para a entidade, a “intenção do texto era divulgar o evento e o trabalho da autora, mas a temática parece ter incomodado a cúpula militar. O texto de divulgação trazia o testemunho da autora, que foi presa, exilada e retornou ao Incra após a anistia, em 1986. Embora trouxesse elementos oficiais da memória da instituição, como a reintegração da autora ao quadro do Incra, a divulgação do conteúdo não foi avaliada como de interesse aos servidores do Incra. A atitude parece convergir com a estratégia da atual gestão do Executivo federal, que busca esconder fatos históricos do passado, cobrindo-os com um manto de fake news, divulgadas por meio das redes sociais.


Este artigo foi originalmente publicado pela Rede Brasil Atual [Aqui!]

Os patos estão se manifestando sem a camisa da CBF. Mas apesar disso continuam sendo patos

Resultado de imagem para manifestoches

Tenho assistido via redes sociais dezenas de manifestações pelo Brasil afora onde, aproveitando a greve dos caminhoneiros, saudosistas do regime militar de 1964 estão voltando a pedir a intervenção dos militares para que se inicie um novo regime de exceção.

Um detalhe é que nessas manifestações não mais é possível ver a predominância da camisa da CBF como elemento dominante no vestuário. Houve manifestação onde se tolerou até pessoas trajando camisas de cor vermelho, algo que seria impensável nas manifestações que deram sustentação ao golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff.

Esse detalhe não me parece fortuito, pois já está claro que a camisa da CBF já foi claramente identificada como um vestuário de “patos”. Mas os patos que não se enganem, isso não vai nem mudar a natureza deles ou, tampouco, quebrar a associação estabelecida entre eles e a camisa da CBF. Afinal, patos são patos, independente da cor da camisa que estejam usando. Simples assim!

 

Militares do golpe de 1964, anti-democráticos, mas nacionalistas? O que é isso, camarada Manuela?

Os ex-presidentes Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo durante passagem de cargo em Brasília

A deputada estadual e candidata presidencial (ao menos por enquanto) Manuela D´Ávila deu uma entrevista à rede BBC onde desfiou algumas pérolas sobre a Amazônia e o regime militar de 1964 [1].

Ao ler o conteúdo da entrevista no capítulo referente ao regime militar de 1964,  Manuela D’Ávila soltou a seguinte pérola: “Os militares fizeram governos antidemocráticos, que perseguiram meu partido, mas tinham algumas visões mais nacionalistas que o governo atual.

A base para a alegação de Manuela D’Ávila seria de que o “ciclo (militar,  grifo meu) que trouxe a indústria para o país, por exemplo. Olhar de forma maniqueísta a história do Brasil não vai ajudar o país a sair da crise.”

Essa postura condescendente com os presidentes/ditadores parece resultar da falta de leituras por parte de Manuela D’Ávila de alguns autores que explicaram bem a política industrial do regime militar de 1964, a começar por Ruy Mauro Marini [2] e Celso Furtado [3]. É que se ela os tivesse lido, certamente saberia que não houve nada de nacionalista na ação dos militares que apearam via um golpe militar o presidente João Goulart.

Essa condescendência com os militares é especialmente surpreendente porque é uma reprodução um tanto canhestra do “rouba, mas faz” de Paulo Maluf. É que essa invocação de que os militares que exerceram o poder com lista de quem devia morrer nas mãos eram mais nacionalistas do que o governo “de facto” de Michel Temer, invocando ainda a necessidade de não se olhar a história brasileira de forma maniqueísta é uma verdadeira tragédia.

É que essa invocação traz embutida a aceitação (equivocada acima de tudo) de que em nome da industrialização é possível de alguma forma exonear o que ocorreu no Brasil entre 1964 e 1985. E, pior, para que se implantasse um modelo de industrialização que apenas poupou os países ricos de continuarem tendo dentro de suas fronteiras as indústrias mais poluentes e degradoras dos ecossistemas naturais e da saúde humana.

O interessante é que essas declarações de Manuela D´Ávila acontecem no mesmo período em que o ex-comunista Raul Jungmann declarou que a confirmação, via documentação da CIA, de que os generais/presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo seguravam em suas mãos os destinos de seus opositores não “afetava” o prestígio das forças armadas [4].  Só faltou Jungmann condenar o maniqueísmo de quem associasse essa confirmação a uma falta de nacionalismo por parte dos generais/presidentes que decidiram manchar suas mãos com o sangue de opositores políticos.

Mas no essencial, penso que estamos muito mal parados com esse tipo de visão sobre o papel cumprido na história recente do Brasil pelos militares durante os chamados “anos de chumbo”.  


[1] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44048851

[2] https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo236merged_document_246.pdf

[3] http://www.centrocelsofurtado.org.br/arquivos/image/201111011233060.CD_edicao9_cmpleto.pdf

[4] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,jungmann-defende-prestigio-das-forcas-armadas-e-general-fala-em-interesses-politicos,70002305043

 

A Folha de São Paulo dá pintas de que tem saudades da ditadura

Não bastasse o edital em que basicamente clamava pela repressão aos protestos contra Michel Temer (Aqui!), a Folha de São Paulo publicou hoje uma matéria (ver reprodução parcial abaixo) onde é ressuscitado o lema “Brasil ame-o ou deixe-o” que os presidentes ditadores utilizaram durante os anos de chumbo para legitimar a perseguição aos opositores do seu regime de exceção.

saudades

Alguém mais ingênuo poderia achar que os editores da Folha de São Paulo decidiram apenas fazer um “gracejo” com o velho bordão da propaganda oficial do regime militar de 1964.  Se foi isso, a coisa é de um mau gosto terrível. 

O pior é que nem Michel Temer é o Brasil e, tampouco, os que não aceitam a sua permanência no cargo para o qual não foi eleito querem deixar o Brasil.  Assim, ao usar este bordão de forma capiciosa, o pessoal da Folha de São Paulo está apenas e obviamente jogando com uma mensagem subliminar que traz conotações terríveis para quem viveu sob o regime de exceção.

Ao julgar pelo andar da carruagem e da sucessão de tiradas de mau gosto, os donos da Folha de São Paulo estão mesmo é irritados com o tamanho da reação que está acontecendo ao golpe de estado “light” do qual eles foram instrumentos importantes para vender a narrativa de que Dilma Rousseff precisava ser apeada do poder a despeito de ter sido sufragada por mais de 54 milhões de eleitores.

Mas não é a primeira vez, nem deverá ser a última, que os donos da Folha de São Paulo são levados a apoiar regimes que não possuem a chancela democrática da maioria do povo brasileiro. É que quem apoia uma ditadura como a de 1964 não se torna genuinamente democrático. Simples assim!