O caso Riocentro, Cambahyba e a luta pelo direito à verdade

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*Por Luciane Soares da Silva

Ao referir-se a morte do pai de Felipe Santa Cruz atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o presidente Jair Bolsonaro, desceu mais um degrau no caminho de infâmia. Despertou o repúdio em alguns de seus apoiadores públicos, intensificou o repúdio em outros tantos e não conseguiu outra classificação que não a de um tipo social cruel, covarde e mentiroso.

Este texto é escrito na cidade de Campos dos Goytacazes, onde está localizada a Usina de Cambahyba[1]. Hoje em escombros, a Usina  tem sido apontada como local em que corpos eram incinerados durante o regime militar, especialmente entre 1974 e 1975. Antes deste período, muitos opositores do regime tinham seus corpos enterrados em valas comuns ou atirados de lugares como o Alto da Boa Vista na capital. Suspeita-se que a opção por Cambahyba[2] tenha relação com um maior cuidado do Exército em relação à provas sobre o paradeiro dos desaparecidos.

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O ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, arrependeu-se das inúmeras mortes que praticou durante a Ditadura e arrependido, resolveu contar no livro Memórias de uma guerra suja (2012) detalhes dos anos de chumbo. Além disto, foram muitos os depoimentos dados sobre desaparecidos, torturas, mortes e as formas de atuação do Exército contra aqueles classificados como subversivos. Entre os casos pouco conhecidos das novas gerações, nascidas no período da redemocratização, um é especialmente pedagógico para que se compreenda até que ponto os militares poderiam ir para evitar a redemocratização no Brasil.

Em 30 de abril de 1981, no Riocentro, vários artistas participavam de uma comemoração pelo dia do Trabalhador. Aproximadamente 20 mil pessoas estavam presentes no evento e não ouviram a explosão. Em meio ao show com grandes nomes da música brasileira, uma bomba explodira no estacionamento. Outra,foi atirada em direção a miniestação elétrica e deveria  produzir queda de luz, causando pânico entre os presentes. Estranhamente, naquela noite a escala foi mudada, os portões estavam trancados. A terceira bomba, explodiria sob o palco. Atingiria artistas como Chico Buarque, Beth Carvalho, Fagner, Clara Nunes entre outros. Foi Gonzaguinha[3] que com voz trêmula e muito pausada, deu a notícia ao público presente sobre o que estava ocorrendo. Disse ele “pessoas contra a democracia jogaram bombas lá fora para nos amedrontar”. Até aquele momento pouco se sabia. A explosão da primeira bomba, de forma acidental, matou um sargento do exército e feriu gravemente um capitão. As demais não causaram dano mas se atingissem o objetivo, teriam matado um número grande de pessoas.

Desde então o caso Riocentro tem sido um dos eventos mais importantes para compreensão de nossa história recente. Podemos assumir como resultado das investigações, que o objetivo da ação era frear o processo de abertura do país. Responsabilizando a esquerda pelo atentado (placas com a sigla VPR[4] foram pichadas para incriminar a esquerda). O que poderia gerar um sentimento que justificasse a perpetuação do regime no poder. É possível relacionar os atentados com o uso de bombas praticadas pelo Exército Brasileiro e a instauração do Ato Institucional  número 5 (AI-5). E esta constatação contraria a tese de que foi a ação armada da esquerda que levou os militares ao endurecimento do regime. Alguns utilizam o conceito  de terrorismo de Estado[5] para compreender este período. Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA, sabia desde 1974 como ocorriam no Brasil as ligações entre o Planalto e os porões da tortura. E sob o governo de Geisel, as execuções seguiram com critérios específicos, mas sob o comando do então ministro do Sistema Nacional de Informação, João Figueiredo.

Um mês depois do atentado no Riocentro, a CIA já contava com documentos que reforçavam a tese da participação de militares no atentado. As versões só vão sendo esclarecidas à medida que alguém quebra o silêncio. E certamente o ex-delegado Cláudio Guerra ocupa um lugar central no esclarecimento de fatos como a morte da estilista Zuzu Angel, os corpos incinerados em Cambahyba e a morte de Fernando Santa Cruz nas mãos do Estado Brasileiro. Além dos detalhes sobre as condições em que os corpos chegavam a Usina, Guerra transitava em todos os espaços de tortura. Espaços como o DOI-CODI, no qual seria assassinado o jornalista Wladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. Ambos terão suas mortes classificadas como “suicídio”, com laudos de um mesmo médico. A famosa foto do suicídio foi uma das peças que colaborou para mostrar a crueldade do regime. A confissão do fotógrafo Silvaldo Vieira não deixa dúvidas: a cena estava montada e ele, praticamente da porta, teve de fazer a foto.  O que deixa claro que os alvos do DOI-CODI e do regime não estavam apenas entre os militantes considerados “perigosos” por participarem de ações armadas.

Retomando, o atentado do Riocentro, teria matado centenas de pessoas, além de artistas importantes de nossa música. Nossa história recente mostra que o desconhecimento destes fatos possibilitou a proliferação de manifestações pela volta da Ditadura. Instaurado o regime da pós verdade, não há freios para desconstrução diária feita pelo governo Bolsonaro. Ele alterna a negação da história (propositadamente) com uma pauta moral capaz de produzir confusão o suficiente para transformar o cenário político nacional em um emaranhado de mal entendidos. Enquanto isto, a Reforma da Previdência é votada.

Não há veículo de imprensa que desconheça a sanha odiosa do presidente. Hoje, ao tentar colocar sob os ombros da esquerda a morte de Fernando Santa Cruz, ele reeditou as atuações de grupos de extrema-direita. Ao usarem bombas e atentados para amedrontar a população, acreditavam ser possível deter a democracia e perpetuarem-se no poder.

O que faremos para deter a sanha de destruição e morte de um presidente que tem como marca de sua gestão a crueldade, a hipocrisia, e o desrespeito total aos direitos humanos?

Minha solidariedade a todos os familiares que não puderam velar seus mortos e que vivem o inferno de ter na presidência, um homem que de forma covarde, zomba da verdade diariamente.

[1] https://www.brasildefato.com.br/2019/03/15/no-rj-mpf-investiga-destruicao-de-usina-que-serviu-para-ocultar-corpos-na-ditadura/

[2] https://www.facebook.com/watch/?v=1043539819044612

[3] https://www.youtube.com/watch?time_continue=55&v=7aFjmZUYIUI

[4] http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/riocentro-atentado-do

[5] https://apublica.org/2018/10/atentados-de-direita-fomentaram-ai-5/

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* Luciane Soares da Silva é docente do Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce) da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).

3 comentários sobre “O caso Riocentro, Cambahyba e a luta pelo direito à verdade

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