Rio, não! ‘Inferno de Janeiro’: calor escaldante destaca a flagrante desigualdade social do Brasil

Pareciam 58,5ºC no Rio na terça-feira – e as temperaturas elevadas, na verdade perigosas, estão atingindo os mais pobres com mais força

A man cools off in the Arara Park favela in Rio de Janeiro.

Um homem se refresca na favela Parque Arara, no Rio de Janeiro. Fotografia: Silvia Izquierdo/AP

Por Constance Malleret, no Rio de Janeiro, para o “The Guardian”

Ainda falta um mês para o início do verão no hemisfério sul, mas o Brasil já experimentou a oitava onda de calor do ano até agora, à medida que as temperaturas sobem para níveis perigosamente elevados.

Grandes áreas do país foram colocadas sob alerta vermelho esta semana pelo Inmet, o instituto meteorológico nacional, que alertou para os riscos para a saúde “e até para a vida”, uma vez que as temperaturas permaneceram pelo menos cinco graus Celsius acima da média durante mais de cinco dias.

Os perigos ficaram ainda mais evidentes com a morte de um fã em um show de Taylor Swift na noite de sábado no Rio de Janeiro, no qual milhares de outros espectadores tiveram que ser tratados por desidratação.

Ana Clara Benevides Machado, 23 anos, desmaiou no Estádio Olímpico Nilton Santos e morreu pouco depois, supostamente de parada cardíaca, após relatos de condições sufocantes no local, onde a temperatura externa era muito superior aos 39,1ºC oficiais.

A cantora juntou-se a fãs e políticos para expressar seu choque com a morte. Swift escreveu nas redes sociais que ficou “arrasada” com a notícia e “oprimida pela dor”.

No início do concerto, os adeptos teriam gritado repetidamente em direção ao palco por “água, água, água”, depois de terem sido alegadamente impedidos de levar consigo mantimentos para o estádio.

O ministro da Justiça do Brasil, Flávio Dino, postou no X que seriam implementadas regras de emergência exigindo que os locais de lazer permitissem o acesso dos torcedores à água. Esperava-se que outros políticos da região seguissem o exemplo.

Após os meses de julho, agosto , setembro e outubro mais quentes já registrados no Brasil , espera-se que as temperaturas desta semana “reescrevam a história do clima” no país, disse a empresa meteorológica MetSul . Os especialistas atribuem, em parte, o calor excessivo a um forte El Niño, sendo que a crise climática torna mais provável a intensidade e a frequência de tais eventos.

Os termômetros do Inmet registraram repetidamente temperaturas acima de 40ºC no Centro-Oeste e Sudeste, com pico de 43,3ºC em Corumbá, na fronteira com a Bolívia, na quarta-feira. Com temperaturas atingindo 37,7ºC e 42,6ºC, respectivamente, São Paulo e Rio de Janeiro bateram recordes para o ano. No Rio, carinhosamente apelidado de “Inferno de Janeiro” pelos moradores locais, as temperaturas parecem ter atingido impressionantes 59,7ºC no sábado. 

Um termômetro de rua em São Paulo. Fotografia: Miguel Schincariol/AFP/Getty Images

Os trabalhadores administrativos que normalmente trabalham em casa voltavam para os escritórios com ar-condicionado para escapar do calor implacável e das contas de luz astronômicas, mas essa não era uma opção para pessoas como Flávio Figueiredo, um mototaxista da favela.

O calor “torna o trabalho mais estressante”, disse o homem de 42 anos, abrigando-se à sombra de uma árvore na entrada do Parque Arará, favela localizada na Avenida Brasil – uma das vias mais movimentadas e poluídas do Rio – e voltando para uma refinaria de petróleo.

“Se a temperatura for, digamos, 30ºC, quando você para na pista parece 40, 50”, acrescentou.

Como em outros lugares, as flagrantes desigualdades sociais no Brasil são agravadas por eventos climáticos extremos.

“A realidade de uma onda de calor durante a semana não são as imagens de praias lotadas. … A realidade de uma onda de calor são ônibus lotados com ar condicionado quebrado, escolas públicas sem ar condicionado ou ventilador funcionando. Essa é a realidade da injustiça climática”, disse Marina Marçal, especialista em política climática que tem aconselhado o governo brasileiro sobre como abordar esta desigualdade nas suas agendas climáticas e urbanas.

Calor escaldante esta semana no Rio.
Calor escaldante esta semana no Rio. Fotografia: Pilar Olivares/Reuters

“As áreas mais pobres, como as favelas, são as mais quentes”, disse Andrews Lucena, geógrafo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro que estuda o calor urbano extremo. “As favelas são focos de calor porque apresentam as piores condições materiais de construção, ausência de espaços verdes e, muitas vezes, const

Muitas vezes dependentes de ligações clandestinas à rede, os moradores das favelas também são mais propensos a sofrer cortes frequentes de energia e água.

“As autoridades públicas não olham [para nós], não há nenhum esforço para melhorar as coisas”, disse Luis Cassiano Silva, morador de Arará, atribuindo isso ao racismo estrutural. Assim como 56% dos brasileiros – e 67% dos moradores de favelas – Silva é negro.

O calor opressivo da favela sempre incomodou o homem de 54 anos, que antes morava em áreas mais arborizadas e tem tendência a suar excessivamente. Há 12 anos, ele resolveu resolver o problema sozinho e criou um telhado verde em sua casa, trabalhando com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro para projetar um protótipo que funcionasse em construções mais precárias.

Hoje, o florescente jardim na cobertura mantém o terraço visivelmente mais fresco. “É lindo”, disse o ativista ambiental, antes de acrescentar “mas, falando sério, está muito quente… e está cada vez pior”. 


Luis Cassiano no telhado verde de sua casa no Parque Arara.

Luis Cassiano Silva no telhado verde de sua casa no Parque Arará. Fotografia: Silvia Izquierdo/AP

A onda de calor deveria atingir o pico no fim de semana, segundo a meteorologista do Inmet Dayse Moraes, mas um verão particularmente quente pode estar por vir.

“Se ficar muito mais quente, não sei como vamos aguentar”, disse Marileidi Francisco, 42 anos, lojista em Arará.

Silva tentou replicar seu telhado de resfriamento, mas embora seu projeto Favela Teto Verde tenha ajudado a esverdear a praça onde Figueiredo se protegia do sol, os telhados com jardins não decolaram realmente no Parque Arará, que continua sendo uma mistura vermelha e cinza de bolhas formado por tijolos e ferro corrugado.

Para se refrescarem, os moradores simplesmente recorrem a “um banho ao ar livre ou uma cerveja no bar”, disse Silva, enxugando a testa pingando, enquanto na esquina os bandidos que controlam a área buscavam alívio em uma piscina que montaram na rua.


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Este texto escrito originalmente em inglês foi publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].

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