
Por João Anschau
Quando o “principal” assunto que domina parte das conversas virtuais se dá em torno do salvamento ou não de um cavalo ilhado em cima de um telhado, é sinal que continuamos dando errado enquanto sociedade. Nem na dor aprendemos.
Caramelo não é responsável por nada que seus olhos assustados enxergam. Não foi consultado. Tiraram seu chão e seu habitat e agora discutem se devem ou não garantir sua permanência por aqui. Esse comportamento tem nome, sobrenome e vários filhos parasitas.
E não é hora de achar culpados, lembram os mais apressados. Para não magoar ninguém, eu vou usar outra palavra. Representantes. O que acontece no Rio Grande do Sul tem representação com CNPJ e muitos vendedores que agora apelam para o pix alheio. Nada de mexer no bolso dos donos do negócio. Filho feio não tem pai. .
E a natureza nos oferta mais um momento – não confundir com o discurso asqueroso e escroto de coachings que convenceram muitos, durante a pandemia de COVID-19, a desafiar a lógica com a surrada “são nas dificuldades que surgem as oportunidades” -, para refletir, debater e cobrar mudanças. Elementos e eventos sobram para que paremos de brincar de Highlander e tratemos pelo nome o que acontece em nosso entorno. Se os muristas encontram “dificuldades” para pensar, eu, humildemente, sugiro ‘Os miseráveis’, de Victor Hugo, para início da prosa. .
E como zelador do memorial da destruição, eis que o governador Eduardo Leite nos apresenta o plano Marshall bagual cheiroso. Resumindo, a proposta, além de incoerências que pipocam de direita a direita, traz um amontoado do mesmo, feito pelos mesmos de sempre, cuja sensibilidade humana opera como de costume abaixo de menos 50 graus Celsius. São péssimos escritores, porém, têm as costas quentes e contam com o apoio de seus financiadores e a sempre azeitada máquina do capital a lhe assoprar e sugerir Estado mínimo, para os outros.
A reconstrução deve – ou deveria – passar obrigatoriamente pelo discutir modelos produtivos. Desenvolvimento econômico com água tomando conta das casas não é o mesmo que desenvolvimento econômico numa cama quentinha e nove refeições por dia. Ninguém come PIB enquanto a riqueza estiver concentrada. Na roleta russa do plantar que tudo dá a banca nunca perde. Têm-se estiagem ou excesso de chuvas, ela ganha nas duas pontas. Governador Eduardo Leite, em seus cálculos liberais, bancos e indústria vão contribuir com quantos zeros depois do primeiro ponto? Não creio que depois do senhor usar aquele colete laranja sempre limpo e bem passado que, outra vez, eu e o Caramelo seremos convocados a dar mais um passinho à frente no busão lotado.
Quem vai produzir comida de verdade, saudável e sem agrotóxicos, é uma pergunta recorrente que faço para os meus mais chegados há muito. Vale para o governador e para o/a prefeito/a. É um assunto que envolve a nossa e a saúde do planeta, e não brotou na catástrofe mais recente. Mais do que nunca se trata de um tema de casa obrigatório para a/os gestora/es públicos. Pros que desaprenderam por falta de uso e para os que desconhecem, é hora de praticar literalmente a definição de prioridade. Temos um case de insucesso de como não agir. Deu muito ruim, senhores e senhoras. Portanto, liberem os consultores de receitas prontas para achacarem os rentistas da Faria Lima e se concentrem na base da pirâmide. .
É cristalino que os generosos incentivos públicos não podem ser direcionados apenas e tão somente às chamadas cadeias agroalimentares. O bolo delfiniano cresceu muito e tá na hora de cortá-lo e dividi-lo com sabedoria entre os terceirizados. A natureza é generosa e, sábia, já deixou claro que ela, mesmo esgualepada, fica e se recria. Já nós… Mais com menos dá negativo para a maioria.
Meu companheiro de jornada, Caramelo, temos uma distopia em curso e sem prazo para finalizar. Alterações no roteiro, meu amigo, dependerão em parte de nós humanos. Os coadjuvantes terão que se mobilizar e demonstrar insatisfação com os rumos da História. Mas esse levante não pode ficar na responsa de um ou dois. Eu sei, eu sei. Muitos dirão que minha sugestão é utópica. Concordo. Mas a outra opção é aprender a dormir com os olhos abertos e enriquecer ainda mais a indústria farmacêutica. Escolham.
Grande Caramelo, por falta de tempo, não percebemos que aos poucos nos tornamos ‘o Rio 40 graus purgatório da beleza e do caos’. Que daqui a pouco surgirá um “Moisés” que conduzirá famílias inteiras expulsas pelo êxodo para algum lugar seguro. Ficarão para trás histórias e memórias e voltaremos ao século XIX com cobertura em tempo real. Esse novo normal já nasce doente. Caramelo, eu poderia sugerir o Pampa sulriograndense como um local seguro para a sua vivência.
Mas hoje, apesar de bravas e bravos pelejarem para manter a casa em ordem e com sua arquitetura o mais próximo do natural, eu temo que você corra o risco de ser expulso pelo “progresso econômico” que está transformando o Bioma em uma grande lavoura. E mais Caramelo. Lá, como cá, “investimentos” são comemorados e estampam as manchetes dos jornais como se finalmente Karl Marx fosse atendido e entendido e a riqueza dividida entre todos. Não há contraponto vivo e tampouco a vida entra na pauta dos patrocinadores da extinção da biodiversidade. Finalmente nos aproximamos da civilização, gritam alguns. E outros, do mesmo grupo, comemoram a saída dos “bárbaros” preservacionistas.
Caramelo, o plano Marshall original surgiu após uma guerra. O que o Rio Grande do Sul enfrenta atualmente não deixa de ser uma batalha. Ambas, resultado da estupidez humana. A nossa luta é por (sobre)vivência. Nas duas frentes, sabe-se quem são os inimigos da razão, mas por estas bandas, os algozes são tratados com pompa e circunstância, idolatrados e tidos como indispensáveis para a nossa continuidade. E o senso comum, adubado sem descanso, aceita e reproduz o discurso Chicó, “não sei, só sei que foi assim”.
Força Caramelo!
*João Anschau é jornalista e Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Também é criador e impulsionador do podcast “Salve, Terra!” que está disponível no Spotify.