O Homem, esse bicho da terra tão pequeno

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Enchente do Rio Taquari na cidade de Lajeado (RS). Foto: marcelocaumors/Instagram

Francisco Mateus Conceição*

O antigo Continente de São Pedro, depois chamado de Rio Grande do Sul, é um espaço geográfico com enorme quantidade de águas, através de sangas, rios e lagoas. E também lençóis freáticos. Chegou a ser chamado, por navegadores, velejadores ou viajantes, como nos lembra Tau Golin, de Rio Grande das Alagoas. Região de repetidas inundações e enchentes. Em importante texto da literatura sul-riograndense, versão local da Lenda da Boitatá, narrada por Simões Lopes Neto, há uma inundação sem precedentes, assim descrita:

… foi uma manga d’água que levou um tempão a cair, e durou… e durou…

Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num: os passos cresceram e todos aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. (aqui)

Os registros históricos também informam sobre enchentes de grandes proporções. Parece, porém, que os mandatários locais dos últimos tempos haviam esquecido ou nunca souberam disso. O último evento, de dimensões comparáveis ao deste ano, havia sido em 1941. Querer lembrança disso a líderes tão sedentos de se afeiçoarem ao futuro e à modernidade, seria exigir demais. Muitas vozes tentaram lembrá-los, mas de nada adiantou. Eles se sentiam ungidos pelo moderno empresarial. Por fim, a própria natureza também tentou, mas sua voz foi logo despistada. A falta de memória era completa, digna das páginas de um Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão), ou, para ficar entre nós, de um Erico Verissimo (Incidente em Antares). De tanta desmemória deliberada, acabaram, como diria Eduardo Bueno, por não conhecerem o solo onde pisam.

Em setembro de 2023, chuvas torrenciais provocaram inundações, destruições e dezenas de mortes no interior do estado, especialmente no Vale do Taquari.  No dia 18 desse mesmo mês, o Governador do Estado anunciava lançamento de Edital para conceder o Cais Mauá, em Porto Alegre, à iniciativa privada. Em vídeo, atua entusiasticamente como garoto propaganda do projeto, que, conforme diz, conectaria o Rio Grande com o futuro. O muro da Mauá, essencial para a contenção das águas do Guaíba, seria modificado e transferido de lugar. Ao enumerar as supostas maravilhas desse futuro, antecipado em imagens digitais, o Governador destaca: “sem aquele muro que dividia o antigo porto da cidade” (aqui). O tom é de indisfarçável mal-estar e menosprezo com o tal muro. Logo após o anúncio, porém, como desdobramento das inundações que vinham ocorrendo, o Guaíba elevou-se e passou da cota de três metros. No dia 27 de setembro, o muro da Mauá mostrou que não era um trambolho entre a cidade e o rio, e ajudou a impedir que as águas invadissem a capital. Isso apesar de o sistema de contenção, com 68 km de diques, comportas e bombas de recalques, ter acusado falhas nesse ano, devido à falta de manutenção. O Governador sentiu o baque e gravou novo vídeo, no dia 29 de setembro, explicando que o muro não seria extinto. Deveria ser substituído por outro modelo e transferido de lugar. Feita a explicação, considerou tudo resolvido e o Edital de Concessão foi a leilão em fevereiro/2024, após mais uma inundação em novembro/2023.

E não parou por aí. Ele já havia, em 2020,  conforme informações da imprensa, suprimido ou modificado 480 artigos do Código Estadual do Meio Ambiente, flexibilizando e abrandando-o. Além disso, em 2021, extinguira a Lei dos agrotóxicos do Estado, que proibia o uso de produtos vetados em seus países de origem. Mas, qual um Fausto dos pagos, em seu pacto pela modernidade, entendeu que precisava fazer mais do mesmo. Em que pese as inundações de 2023, a bancada governista na Assembleia Legislativa aprovou, em março de 2024, Projeto de Lei para permitir construção de barragens em Áreas de Preservação Permanente (APPs), projeto este sancionado pelo Executivo em 09/04/2024. Possivelmente ainda estivessem comemorando a vitória, portanto, quando as leis da natureza, as mesmas de sempre, se manifestaram, de maneira mais inclemente e avassaladora. O mundo desabou num tempo feio a partir do final de abril, e os efeitos imediatos da calamidade se estendem até hoje,  sem que tenhamos perspectiva clara, de tempo e modelo, para a reconstrução de tudo. O Rio Grande do Sul que, conforme as palavras do Governador, olhava para o futuro, acabou se deparando com ele em sua face distópica.

Frente a essa calamidade, necessitávamos de iniciativas e ações rápidas e no rumo certo. Remontando aos saberes e à cultura local, há um provérbio segundo o qual “é no estouro da tropa que se vê se o índio é bueno”. Ou seja, diante de um caos generalizado, a pessoa é, inexoravelmente, testada quanto à capacidade e ao valor que dela se espera. Em um clássico de nossa literatura, Antônio Chimango, escrito por Ramiro Barcelos, sob o pseudônimo de Amaro Juvenal (por sinal uma sátira política), há uma longa descrição de alguns dons diante de uma cena dessas. Selecionamos a passagem a seguir:

Nisto é que está o busílis

Que não depende de ensino:   

Saber tomar um destino

E  não se apertar no apuro

Poder guiar-se no escuro

E nunca perder o tino. (aqui)

Depois que passar o estouro, cada um buscará contar sua história. Por isso, esse momento crucial é revelador, do antes e do depois, e é importante observá-lo. Vejamos, no que diz respeito a Porto Alegre, como agiram o Prefeito e o Governador do Estado quando a calamidade explodiu sobre o estado.

O estrago no interior foi como ativar uma bomba-relógio para Porto Alegre. Nos últimos dias de abril, a destruição provocada pelas águas já atingia dimensões catastróficas, derrubando pontes e rodovias, gerando vítimas fatais e grande número de desabrigados. Tudo amplamente divulgado pela imprensa. Tanto que, no dia 30 de abril, quebrando todos os protocolos, o Governador do Estado cobrava, pela Plataforma X (Twitter), ajuda imediata do Governo Federal, em razão das “chuvas intensas já ocorridas e que vão continuar nos próximos dias” (aqui). Grande parte desse problema se localizava na bacia do Guaíba e era questão de tempo para que esse volume excessivo de águas chegasse à capital do Estado. Porém, o Prefeito de Porto Alegre somente ordenou que os portões dos diques de proteção fossem fechados na quinta-feira, dia 02 de maio, após o alerta emitido, no final do dia anterior, pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (aqui). Enquanto as águas desciam e se aproximavam, era para ele estar preocupado, procurando e implementando, juntamente com sua equipe, soluções emergenciais. O sistema de contenção  continuava deteriorado e por isso as águas invadiram a Capital. O prefeito anterior, Nelson Marchezan Júnior, deixara de investir verba captada para essa finalidade específica e, ainda, extinguira o DEP (Departamento de Esgoto Pluvial), órgão responsável por cuidar do referido sistema. Ainda assim, muita coisa podia e devia ser feita pela atual gestão, que era sabedora desses problemas. Especialmente, após as inundações de 2023, em cuja sequência os técnicos apontaram onde havia problemas e como corrigi-los, sem que nada fosse feito e, consequentemente, tais problemas se repetissem. Além disso, por que não se preparar com maior antecedência neste momento? Se era para colocar os sacos de areia na frente dos portões, como se viu, que pelo menos colocassem os três metros de altura (a altura do muro). Ou usassem os bags, que parece terem descoberto somente depois – e até serviram para substituir um portão, desastradamente retirado. Nesse curto espaço de tempo, restava o improviso, a gambiarra, mas mesmo nisso agiu-se no último instante e mal. Não se tomaram as rédeas e o comando da situação. Em tudo a mesma constância: o que não se fez anteriormente também não se fez em 2024.

E quanto ao Governador? Ele foi rápido para cobrar, pelas redes sociais, ação do Governo Federal, mostrando um desejo de protagonismo. Explicou, posteriormente, que não poderia perder tempo frente à catástrofe. Pois bem, por este viés, era recomendável, também, ter quebrado protocolo e perguntado, pela mesma plataforma, ao Prefeito de Porto Alegre, se estavam perfeitamente resolvidos os problemas, evidenciados em 2023, no sistema de contenção. Neste caso, estaria agindo de maneira providencial, frente a um perigo imediato. Mas, convenhamos, ficaria estranho usar as redes sociais, se ambos estão na mesma cidade. Poderia, então, ter telefonado, mandado um bizu pelas rádios ou TVs locais, onde tem acesso amplo. Ou, então, poderia mesmo visitar a Prefeitura. Dialogar com o Prefeito, colocar-se à disposição… O Piratini fica a poucos metros da Prefeitura, e ambos distam pouquíssimos quadras do Cais Mauá, por onde as águas do Guaíba também estouraram.  Além disso, parece lógico que, sendo o Governo do Estado responsável pelo Edital de Concessão do Cais Mauá, pondo e dispondo livremente sobre o futuro do muro de contenção, também deveria assumir responsabilidade quanto à manutenção e segurança do que hoje existe, principalmente diante de uma tragédia anunciada. Ou será que o Governador não teria compreendido que as inundações, sem trégua, se dirigiam ameaçadoramente para Porto Alegre?

O problema ambiental possui tentáculos maiores, no espaço e no tempo, que nossos atuais gestores do Estado e da Capital. Mas eles atuam como líderes de uma ideologia liberal radicalizada, que sucateia e privatiza o bem público, intensifica os problemas sociais e devasta a natureza. Colaboraram para o surgimento da catástrofe. A dor ensina a gemer, mas não a pensar e a fazer autocrítica. A tragédia de 2023 nada ensinou a nossos gestores. E aí cabe a pergunta: o que serão capazes de fazer neste processo de reconstrução? O Prefeito já se moveu rapidamente para contratar a Alvarez & Marsal, multinacional de currículo duvidoso. O Governador, por sua vez, chegou a demonstrar preocupação com o grande número de doações, que, segundo ele, poderia agravar as  dificuldades da economia local. Sempre a mesma linha de pensamento, que vê no desempenho empresarial a única saída. Com essa concepção ideológica, a reconstrução tornará o serviço público ainda mais refém da iniciativa privada, que gosta de repetir o mantra segundo o qual não se deve falar em crise, mas em oportunidade.

A natureza cobrou seu preço e, frente a tanta água, o gaúcho se viu, como diria Drummond, retomando Camões, “homem, bicho da terra tão pequeno”. As águas camonianas são outras, mas alguns versos parecem ter nascido hoje.

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno? (aqui)

É momento de solidariedade e de trabalho de reconstrução, mas também de repensar concepções que trouxeram nosso Estado a este estado. Hora de reforçar nossa identidade cultural, mas também de repensá-la. Certas coisas não podem mais ter lugar. No mundo da cultura, a música é uma das primeiras e mais fortes expressões de uma população. Neste sentido, já vivemos, em nossos festivais nativistas, momentos bem melhores, quando brotaram músicas comprometidas socialmente, como “Canto do Renegado” , “Retirante” ou “Sabe Moço”. E também belíssimas músicas de temática ambiental, como “Rumos Perdidos”, “Súplica do Rio” “Queimada” ou “Cria Enjeitada”. Porém,  como tudo está interconectado, o retrocesso que verificamos no mundo político e econômico também se expressa e é produzido na cultura (que não é mero elemento decorativo). É culturalmente trágico, por isso, que uma música campeã de festival nativista reclame cegamente da “tal reserva legal”. A música se chama, paradoxalmente, “Embretados”, mas o brete em que nos encontramos resulta também desse negacionismo desenfreado.  Do estouro da boiada, hoje restam registros culturais, mas o estouro negacionista, que adora os campos digitais, é furioso e aonde chega leva tudo por diante, seja no Rio Grande do Sul, no Brasil ou no mundo.

Sem ode nostálgica ao passado. Sem ode evasiva ao futuro também. E sem o narcisismo cego da exaltação ao presente. Relembremos, de 1983, a denúncia e a reflexão nas estrofes do historiador e poeta Humberto Gabbi Zanatta, musicadas por João Chagas Leite:

Hoje a ambição fez pousada à minha volta
Plantou desertos em sementes traiçoeiras
Cria enjeitada de um progresso que importamos
Batendo palmas a ganâncias estrangeiras

Só temos pressa, e mais pressa pra ter pressa
Receita louca que inventamos pra morrer
De neuroses, de calmantes, pesticidas
Matando a vida que está doida pra viver

(“Cria Enjeitada”, João Chagas Leite /

 Humberto Gabbi Zanatta, 1983, aqui ou aqui)

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*Francisco Matheus Conceição é servidor público federal, ex-professor universitário e doutor em Literatura

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