Trabalhadores brasileiros escravizados pelos fornecedores de café da Nestlé

Por Carla Hoinkes e Florian Blumer, Pesquisa: Public Eye em colaboração com Repórter Brasil

Uma investigação exclusiva da Public Eye em colaboração com a Repórter Brasil lança luz sobre diversos casos de escravidão moderna perpetrados por fornecedores de café da Nestlé no Brasil. Isso apesar da empresa suíça prometer tolerância zero a essa prática há anos. Dois trabalhadores afetados por esse flagelo relatam como trabalharam em condições desumanas, foram privados de seus salários e temeram por suas vidas.

“Não consigo encontrar palavras para descrever o que passei”, diz Jurandir dos Santos. “Todas as lembranças me vêm à mente só de pensar em café.”

Mesmo assim, o homem de 50 anos decidiu nos contar o que aconteceu com ele depois de ser contratado como trabalhador sazonal para a colheita de café em abril de 2023, junto com seu amigo José Ademilson de Jesus Lima. Um jornalista da Repórter Brasil encontrou os dois em março de 2025, a pedido da Public Eye, para entrevistá-los em suas casas (uma compilação das entrevistas pode ser encontrada aqui ).

A fazenda Mata Verde, no estado do Espírito Santo, está localizada a 1.200 quilômetros de Aracaju, capital do estado de Sergipe.

Jurandir e José moram em Aracaju, capital do estado de Sergipe, localizado no nordeste do Brasil, região assolada pela pobreza. Todos os anos, dezenas de milhares de trabalhadores sazonais viajam desta região para as regiões produtoras de café no sudeste economicamente mais abastado do país. Há uma enorme demanda por esses trabalhadores, pois a colheita é realizada em grande parte à mão. O Brasil responde por 40% da produção global de café .

“O que dizemos vale aqui”

José Lima, de 36 anos, nos contou que trabalhou como trabalhador rural pela primeira vez em 2022: “Eu estava desempregado e tinha me separado da minha esposa, então fui para lá”. Com o dinheiro que ganhou nesses três meses que durou a colheita, ele conseguiu continuar construindo sua casa. O trabalho também o atraiu, então ele não hesitou quando um agente o contatou, oferecendo-lhe um emprego para a safra de café de 2023. Jurandir Dos Santos disse que essa mulher lhes prometeu emprego regular e um bom salário de pelo menos R$ 120 (reais) por dia. Isso equivalia na época (abril de 2023) a cerca de 22 euros, o que é significativamente mais alto do que o salário mínimo no Brasil, que na época era de apenas 12 euros por dia (240 euros por mês). Eles foram acompanhados por conhecidos a quem haviam mencionado essa oferta atraente.

Após uma viagem de ônibus de dois dias e meio, acompanhados pelo recrutador, eles chegaram no final da noite de 18 de abril de 2023 à fazenda Mata Verde, no estado do Espírito Santo, a cerca de 1.200 quilômetros de distância. Essa fazenda, que produz café Robusta em cerca de 50 hectares, é muito remota; além de uma pequena vila, há apenas plantações de café, florestas e morros.

Brasil: megaprodutor de café

No Brasil, cerca de quatro milhões de toneladas de grãos de café são colhidas anualmente. Isso o torna, de longe, o maior produtor mundial dessa commodity agrícola. Enquanto no interior serrano, especialmente em Minas Gerais, são cultivadas variedades de Arábica – consideradas de maior qualidade –, os cafeicultores do Espírito Santo, no litoral, especializaram-se no café Robusta, usado principalmente para café solúvel e misturas de torra mais baratas. Eles produzem cerca de um sexto do Robusta do mundo, conhecido como “Conilon” no Brasil.


No começo, tudo parecia bem. A acomodação dos trabalhadores era “boa”, segundo Jurandir. Eles foram até a vila e encontraram os moradores em um bar. “Passamos os dois primeiros dias bebendo e comemorando”, disse José.

Em muitas ocasiões, um sobrinho do dono da fazenda também estava lá. Certa noite, ele contou como um amigo seu certa vez colocou uma pistola na mesa do bar. Quando um policial se aproximou e pediu que guardasse a arma, ele se recusou.

José perguntou, espantado, quais seriam as consequências disso. “Nenhuma”, respondeu o homem da família do dono da fazenda.

“Tudo aqui nos pertence. Nesta aldeia, o que dizemos vale.”

Uma sensação de inquietação tomou conta de José. Pela primeira vez, ele se perguntou se algo não estava certo ali.

Sem camas, sem chuveiros, sem água potável

Então, no terceiro dia, o recrutador disse que eles precisavam se mudar. Teriam que carregar seus pertences para o novo local, incluindo colchões, a pé.

Depois de um longo primeiro dia de trabalho, partiram carregados e tiveram que fazer a caminhada de 50 minutos duas vezes até chegarem à nova acomodação, tarde da noite. “Eu já não gostava da fachada da casa”, disse José. Suas primeiras impressões se confirmaram quando olhou para dentro:

“O piso de madeira estava podre e havia manchas de água na parede.”

Eles tiveram que dormir em colchões finos diretamente no chão. Ele perguntou, incrédulo, à recrutadora se aquela era realmente a nova casa deles. “Só temporariamente”, ela os tranquilizou. A dona da fazenda estava preparando outra casa para eles ficarem. Ela também prometeu que eles receberiam camas. José a questionou constantemente sobre isso nos dias seguintes, mas “nenhuma cama chegou”. Eles também nunca mais colocaram os olhos na outra casa.

As condições de alojamento eram desumanas. Como Jurandir descreve:

“Congelávamos à noite, quando ventava muito. O tanque de água potável, cheio de lodo, estava infestado de besouros e outros insetos.”

Não havia portas que proporcionassem um pouco de privacidade, nem pias ou chuveiros, apenas duas mangueiras com água fria. Também não havia mesas nem cadeiras, o que significava que os trabalhadores eram obrigados a comer sentados no chão ou em seus colchões. Havia cortes de energia constantes e os banheiros frequentemente ficavam inutilizáveis. Havia lixo embaixo da casa, que exalava um forte odor e atraía ratos.

Todos esses detalhes foram registrados em um relatório de inspeção do Ministério do Trabalho do Brasil, que seria compilado posteriormente e disponibilizado ao Public Eye.

A conclusão simples de José foi: “Era impossível viver lá, completamente impossível.”

A comida também era “horrível”, disse Jurandir. Consistia principalmente de linguiça, arroz e feijão. Sua esposa ficou chocada quando ele voltou para casa, continuou o trabalhador: “Eu estava magro e completamente exausto. Tive que amarrar minhas calças, que me serviam antes, na cintura para que não caíssem.”

“Todo mundo ficou doente”, disse José, “inclusive eu: resfriados, erupções cutâneas, infecções fúngicas, dor de estômago — tínhamos dor de estômago o tempo todo. Um colega ficou gravemente doente por uma semana. Não nos deram nenhum medicamento — então nos unimos para comprar alguns para ele.”

Trabalhando duro por salários de fome

Os trabalhadores acordavam às 3h30 da manhã. Preparavam o almoço, após um “café da manhã” composto por uma xícara de café e um pedaço de massa feita de farinha de trigo e água, e pegavam um ônibus para a plantação às 4h30. Terminavam o trabalho entre 4h30 e 5h da tarde e, muitas vezes, tinham que caminhar de volta, o que levava mais de 45 minutos.

O trabalho consistia em retirar manualmente as cerejas de café dos galhos dos arbustos. Eles as coletavam em uma peneira semelhante a uma cesta, presa aos quadris por um cinto, enchiam sacos de 60 quilos com elas, que carregavam até a estrada, onde eram recolhidas por caminhão.

“É um trabalho duro, muito duro”, disse Jurandir.

Ele mencionou que durante o dia o sol os queimava, eles eram picados por insetos e essas ferroadas e mordidas lhes causavam dores de cabeça. Além disso, as plantações estavam localizadas em terrenos montanhosos, às vezes com declives acentuados e escorregadios.

Os trabalhadores eram pagos de acordo com a quantidade de grãos de café colhidos. Eles recebiam R$ 16 (2,90 euros) por cada saca de 60 quilos. Como “não recebiam nenhuma ferramenta para retirar os grãos de café dos galhos com mais facilidade”, conseguiam, em média, encher pouco mais de três sacas por dia, segundo o relatório dos fiscais do Ministério do Trabalho. Assim, em vez dos R$ 120 prometidos, eles não recebiam nem R$ 50 (9 euros) por dia de trabalho de cerca de 12 horas, segundo o relatório. Mensalmente, isso equivale a apenas 75% do salário mínimo.

O proprietário da fazenda, então, segundo suas informações, vende o café para a cooperativa atacadista de robusta Cooabriel por R$ 645 a saca de 60 quilos – 40 vezes o preço pago aos trabalhadores. Essa empresa não só é fornecedora direta da Nestlé, líder mundial no mercado de café suíço, como também participa de seu programa de sustentabilidade, o Nescafé Plan (no Brasil, “Cultivado com Respeito”), que, por sua vez, exige a certificação pela norma 4C.

Sustentabilidade de acordo com os padrões da Nestlé

A Nestlé usa o padrão 4C para designar o café da maior marca de café do mundo, Nescafé, como social e ambientalmente sustentável, como parte do “Plano Nescafé”. De acordo com alguns relatos da mídia, o grupo, que compra mais de 80% do café 4C em todo o mundo, “ investiu ” pesadamente em café 4C no Espírito Santo nos últimos anos e, em colaboração com a Cooabriel – a maior associação de fazendas de Robusta no Brasil, com mais de 7.600 produtores – incluiu uma cooperativa no Plano Nescafé pela primeira vez. Para a Nestlé, isso fez da Cooabriel uma “parceira importante” na aquisição de café sustentável. No total, a Nestlé compra quase um quarto de seu café (222 toneladas em 2022) no Brasil – 100% “ certificado e sustentável “, de acordo com sua própria comunicação.

Presos em dívidas

Mesmo o salário mínimo nacional, equivalente a 12 euros por dia, estaria longe de ser suficiente para garantir um padrão de vida decente. Segundo cálculos do Instituto de Pesquisa Anker, os trabalhadores da cafeicultura no sul do Brasil teriam que ganhar quase o dobro para sobreviver.

No caso da Mata Verde, porém, o proprietário da fazenda alegou vários “descontos inadmissíveis”, além de descumprir ilegalmente o salário mínimo, conforme destacado pelos auditores fiscais do trabalho em seu relatório.

“Tudo era deduzido dos nossos salários: botas, roupas de proteção, luvas de trabalho, a cesta da colheita, até mesmo a garrafa de água potável que trazíamos para os campos.”

As deduções eram tão ilegais quanto o fato de os trabalhadores terem que pagar o custo da viagem de ônibus (R$ 350) até a fazenda em parcelas. Eles também pagavam preços exorbitantes pela alimentação inadequada. Eles sempre eram mantidos no escuro sobre o valor das deduções devidas, como disse José:

“Nunca soubemos quanto devíamos. Só sabíamos que tínhamos dívidas a pagar.”

O dono da fazenda fazia compras constantemente, dizendo que lhe “deviam” tudo isso, mas quando os trabalhadores pediam valores e recibos, só recebiam respostas evasivas. O mesmo acontecia quando pediam um contrato de trabalho.

Após os descontos, Lima ficou com apenas 130 reais (22 francos suíços) dos 220 reais (39 francos suíços) que ganhou na primeira semana de trabalho, diz ele.

“Ninguém sai da fazenda”

José também nos contou que, no trabalho, eles eram supervisionados de perto e assediados repetidamente pelo gerente da fazenda e pelos seguranças, que estavam sempre por perto. Quando o gerente repreendeu um amigo de José nos primeiros dias e levantou o braço, José viu uma pistola em sua cintura. Então, percebeu que todos os seguranças estavam armados.

Aos poucos, ele percebeu que precisava sair dali. Começou a planejar sua fuga e, junto com outros trabalhadores, tentou persuadir um motorista de ônibus a buscá-los. Mas o dono da fazenda descobriu os planos. Então, enviou uma mensagem de WhatsApp para todos, dizendo, como Lima explica:

“Ninguém vai sair da fazenda até que suas dívidas sejam pagas. Se alguém tentar, vou fechar a entrada da vila.”

José sentia que estava sendo vigiado. Sempre que falava ao telefone ou trocava ideias com colegas, acompanhantes se aproximavam dele. Ele começou a ficar com medo:

“Eles poderiam fazer alguma coisa comigo a qualquer momento”, pensou. “A plantação era grande e muitas vezes você estava sozinho colhendo café.”

“Ameaças, fraude, engano, coerção”

Em seu relatório, os auditores fiscais do trabalho afirmaram que havia nada menos que 24 pontos relacionados à fazenda, que atendiam aos critérios de “condições de trabalho análogas à de escravo” segundo a legislação penal brasileira. Segundo o relatório, também foram constatadas “condições de trabalho degradantes”, como falta de água potável e alojamento inadequado, bem como servidão por dívida, ou seja, a restrição da liberdade de locomoção devido a dívidas, agravada neste caso por “ameaças, fraude, engano ou coação”.

A servidão por dívida é uma forma de trabalho forçado proibida pela Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Com o objetivo de responder de forma justa às suas próprias realidades, o Brasil vai além, classificando também “condições de trabalho degradantes” e “jornadas de trabalho exaustivas” como “análogas à escravidão” – um termo jurídico frequentemente parafraseado como “escravidão moderna”.

Maurício Krepsky, que até junho de 2023 estava à frente da Inspetoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), disse à Public Eye que as ameaças explícitas de violência no caso Mata Verde foram extraordinárias. No entanto, condições análogas à escravidão são comuns na cafeicultura brasileira. Segundo a organização de direitos humanos Conectas, nenhum outro setor viu tantos trabalhadores resgatados dessas condições nos últimos 10 anos. Só em 2023, foram 316 casos, e especialistas na área presumem um alto número de casos não registrados .

Há inúmeras razões pelas quais a produção de café ocupa o topo desse ranking vergonhoso, como relata Jorge Ferreira. Como trabalhador rural, ele próprio foi vítima da escravidão moderna e agora é um dos principais ativistas da associação dos trabalhadores da Adere. Segundo Jorge, uma das razões é que o cultivo do café era “essencialmente baseado na escravidão”. Durante o período colonial, o Brasil emergiu como o mais importante país produtor de café.

“Até hoje, inúmeros produtores de café em nosso país não respeitam os direitos humanos e exploram trabalhadores socialmente vulneráveis”,

explica a ativista. A maioria dos proprietários rurais ainda é branca, enquanto a maioria dos trabalhadores – e vítimas da escravidão moderna – são homens de ascendência africana. A Oxfam Brasil estima que até dois terços deles trabalham informalmente durante a safra, o que promove ainda mais condições de trabalho abusivas.

Uma faca debaixo do colchão

Após descobrir que os guardas portavam armas e perceber que estava sendo vigiado de perto, José Lima percebeu que precisava sair dali. Como não queria que o fazendeiro ficasse impune, informou previamente as autoridades trabalhistas locais e a Polícia Federal sobre as condições na fazenda. Apesar do perigo a que se expunha, filmou e fotografou secretamente para documentar os abusos.

Poucos dias depois, a polícia lhe disse que interviria. Mas não soube dizer exatamente quando. Essa notícia só acalmou José por um curto período. Ele se sentia cada vez mais ameaçado: “Acabei de dormir com uma faca debaixo do colchão.”

No dia 1º de maio, 14 dias após sua chegada, ele decidiu fugir. No dia seguinte, após insistência, conseguiu que um homem da aldeia concordasse em levar um grupo de trabalhadores em sua van até a estrada principal mais próxima, por onde passava o ônibus para Aracaju. Para pagar a viagem, todos tiveram que pedir dinheiro emprestado a amigos ou parentes.

Pouco antes da meia-noite, José Lima, Jurandir dos Santos e outros 12 trabalhadores saíram sorrateiramente de suas acomodações. No horário combinado, esperaram a van na entrada da vila e partiram à 1h30 da manhã. “Estava muito apertado na van”, contou-nos José, “pois sentávamos uns em cima dos outros e tínhamos muita coisa conosco. Mas finalmente conseguimos sair do local.”

O que os fugitivos não sabiam era que, poucas horas após a partida, os fiscais chegaram à fazenda acompanhados da Polícia Federal. Maurício Krepsky, então chefe de departamento do Ministério do Trabalho, lembrou que os fiscais locais avaliaram a disposição de recorrer à violência na fazenda como tão alta que chamaram sua equipe de Brasília, a 1.400 km de distância, como reforço. Mas a intervenção transcorreu sem problemas. E assim, logo após a fuga de seus colegas, outros 10 trabalhadores que haviam permanecido na fazenda também estavam livres.

Um crime que compensa

Como de costume nesses casos, as autoridades instauraram um processo administrativo. Como parte do resultado, o proprietário da fazenda se comprometeu a melhorar as condições deploráveis, tomar medidas preventivas e pagar aos trabalhadores uma indenização equivalente a três dias de salário, além de indenização por danos morais. No total, receberam o equivalente a cerca de 900 euros por pessoa, além do custo da viagem de volta. Para sua grande decepção, José Lima e Jurandir dos Santos souberam que não tinham direito a essas indenizações, pois elas eram pagas apenas aos trabalhadores que estavam presentes no local no momento da vistoria.

Eles então contataram um advogado, que entrou com uma ação judicial em seu nome no tribunal trabalhista. Ambos os trabalhadores finalmente chegaram a um acordo e cada um recebeu R$ 7.000 (cerca de 1.275 euros) de indenização – quase 10 vezes menos do que o valor reivindicado.

“Isso foi o suficiente para pagar minhas dívidas”,

disse Jurandir. Ele havia contraído essas dívidas para poder escapar, mas também antes da viagem, para comprar comida e roupas, e para que sua esposa pudesse sobreviver durante sua ausência. Como o advogado deles considerou que as chances de vitória na justiça eram baixas, eles concordaram com o acordo.

Essa é uma situação familiar a muitas dessas vítimas, explica Lívia Miraglia, professora associada de direito do trabalho da Universidade de Minas Gerais e especialista em trabalho escravo e tráfico de pessoas, em entrevista à Public Eye. A indenização paga também ficou dentro da faixa usual. Embora a definição abrangente e as leis sobre escravidão moderna no Brasil sejam muito progressistas, sua interpretação não é: “O judiciário branco e masculino denigre sistematicamente a classe trabalhadora”, diz Lívia Miraglia. É comum que pessoas que perdem suas bagagens em um voo recebam indenizações maiores do que aquelas que se tornam vítimas de trabalho escravo.

Além disso, os perpetradores raramente são processados:

“Nenhum proprietário de fazenda tem medo de ter que ir para a prisão por escravidão moderna”,

afirma a advogada trabalhista. Ela é coautora de um estudo que mostra que, de mais de 2.679 empregadores denunciados por esse delito entre 2008 e 2019, apenas 112 foram condenados – geralmente recebendo penas curtas que não precisavam cumprir. Livia Miraglia conclui com sobriedade:

“A escravidão moderna é um crime que compensa.”

Talvez a punição mais grave para empregadores condenados por escravidão moderna seja ver seu nome constar em um registro de acesso público. Qualquer pessoa cujo nome esteja nessa lista não recebe empréstimos de bancos estatais, o que dificulta as relações comerciais. Mas a inscrição expira após apenas dois anos. O proprietário da fazenda Mata Verde também apareceu na lista na primavera de 2024. Quando questionado sobre isso, no entanto, ele negou veementemente que praticasse escravidão ou que seus funcionários estivessem armados.

Controles ineficazes

Operadores mais acima na cadeia de suprimentos têm ainda menos a temer do que os proprietários de fazendas: cooperativas, comerciantes de café e torrefadoras como a Nestlé. Eles não seriam afetados pelo judiciário, explica Livia Miraglia. Outro problema básico é a falta de transparência nas cadeias de suprimentos. Normalmente, não é possível rastrear de quais fazendas os comerciantes e, em última análise, as empresas que processam e vendem o café obtêm sua matéria-prima. Algumas empresas, como a Nestlé, publicam listas de fornecedores com os nomes de intermediários e cooperativas, mas não das fazendas de café. Como resultado, o envolvimento das empresas de café com a escravidão moderna só pode ser revelado em casos individuais e por meio de investigações abrangentes.

A Nestlé reafirmou sua “tolerância zero” a tais incidentes há nove anos, após a publicação de um caso de escravidão moderna em sua cadeia de suprimentos de café no Brasil. Desde então, a multinacional também aumentou para 100% sua proporção de café certificado, ou seja, supostamente em conformidade com a lei e – em suas palavras – de “origem responsável” no Brasil.

Ao mesmo tempo, nem a Nestlé & Co. nem certificadoras como a 4C atenderam ainda à demanda feita por representantes dos trabalhadores e ONGs de direitos humanos há muitos anos: tornar transparentes suas relações comerciais com as fazendas de café.

As empresas, assim como as certificadoras, geralmente só tomam conhecimento de violações de direitos humanos por meio de controles oficiais. De acordo com a ONG Conectas, no entanto, tais inspeções ocorreram até o momento em apenas uma em cada mil fazendas de café brasileiras. No caso Mata Verde, a Cooabriel, fornecedora da Nestlé, rompeu relações comerciais com o produtor falho em maio de 2023, após a intervenção da polícia. Quando questionada, a certificadora 4C afirmou que “assim que a não conformidade se tornou conhecida” – por meio de reportagens na mídia regional imediatamente após – a fazenda foi “imediatamente removida do Sistema 4C”. Até então, as auditorias realizadas pela 4C não revelaram nenhuma irregularidade.

Isso não é nenhuma surpresa para o representante dos trabalhadores, Jorge Ferreira. Ele acredita que as certificações de sustentabilidade geralmente não protegem contra a escravidão moderna – uma avaliação compartilhada pelo auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky. Ele aprendeu com sua experiência em campo que essas certificações muitas vezes desconsideram completamente a situação real nas plantações:

As auditorias costumam ser realizadas vários meses antes da temporada de colheita. E mesmo nas chamadas inspeções ‘sem aviso prévio’, as empresas são notificadas com um ou dois dias de antecedência.

Além disso, de acordo com o inspetor, problemas importantes como o trabalho não declarado generalizado geralmente são simplesmente ignorados pelos certificadores.

Não é um caso isolado na cadeia de suprimentos da Nestlé

Nossas investigações mostram – mesmo com a falta de transparência nas cadeias de suprimentos – que a Mata Verde não é a única fazenda na cadeia de suprimentos da Nestlé onde abusos graves vieram à tona nos últimos três anos. Em 2022, por exemplo, auditores fiscais do trabalho identificaram graves violações da legislação trabalhista brasileira nas fazendas Três Irmãs e Primavera, no estado da Bahia, ao norte do Espírito Santo, que também eram fornecedoras da Cooabriel, parceira do Plano Nescafé, bem como um incidente de escravidão moderna em Três Irmãs.

Em um terceiro caso, em 4 de julho de 2023, três trabalhadores da fazenda Vista Alegre, em Patrocínio, Minas Gerais, tiveram que ser libertados de condições análogas à escravidão. Os recibos de fatura mostraram que a fazenda havia vendido sua colheita para a NKG Stockler, uma subsidiária da maior comercializadora do mundo, a Neumann Kaffee Gruppe, sediada em Hamburgo e com importantes atividades em Zug, Suíça. A fazenda recebeu pela entrega um bônus pela colheita, que foi certificada pelo selo de sustentabilidade AAA da Nespresso. A NKG Stockler aparentemente nem sabia da inspeção oficial, como pode ser visto na reação da empresa às nossas perguntas. A comercializadora afirma que “pausou” seu relacionamento comercial com a fazenda em questão, que atualmente contesta judicialmente a acusação oficial de escravidão, com base apenas em nossas evidências – e 18 longos meses após o incidente. Quando questionada, a Nestlé confirmou que o fornecedor da Nespresso havia sido “suspenso” do programa AAA “assim que tomamos conhecimento dos problemas” (veja a reação da Nestlé abaixo).

Lucro antes dos direitos humanos

Jorge Ferreira afirma que isso não chega nem perto de levar empresas como a Nestlé a simplesmente romperem seus relacionamentos comerciais com fazendas específicas em resposta à escravidão moderna. Ele acredita que elas têm a responsabilidade direta de prevenir essa prática de forma eficaz. Sua organização, a Adere, tem, portanto, apelado repetidamente à Nestlé e discutido o assunto com os representantes do grupo. A conclusão sensata de Jorge:

A Nestlé finge estar interessada nos direitos dos trabalhadores. Mas seu interesse cessa assim que se trata de implementar melhorias específicas – e pagar por elas.

Em vez disso, a empresa transfere a responsabilidade pelo cumprimento dos direitos trabalhistas e humanos – e todos os custos incorridos para isso – para os produtores de café. (Para saber mais sobre a questão dos preços geralmente excessivamente baixos que a Nestlé paga pelo café, consulte o relatório da Public Eye “ High hopes, low prices ” do México, publicado em março de 2024.)

O caso envolvendo José Lima e Jurandir dos Santos destaca que a falta de prevenção pode ter consequências dramáticas para pessoas como eles. Ambos ainda sentem o impacto até hoje. José voltou para a colheita de café no ano seguinte, em outra fazenda no Espírito Santo. Mas o fez com medo: “Achei que o dono da fazenda Mata Verde poderia me encontrar e mandar alguém me matar a qualquer momento.”

Para Jurandir dos Santos, a primeira vez também foi a última. Ele ficou traumatizado e deixou uma mensagem clara:

Gostaria de dizer apenas uma coisa às pessoas nas grandes corporações multinacionais: observem atentamente o que estão fazendo. Comprar café é fácil. A parte difícil do trabalho é colhê-lo. Somos nós, os trabalhadores, que garantimos que vocês recebam seu café em primeiro lugar. E vocês não dão valor a isso.

Reação da Nestlé

Quando questionada, a Nestlé explica que atualmente compra café de “unidades agrícolas certificadas 4C” de 500 fazendas dentro da cooperativa Cooabriel, o que representa um subconjunto do total de fazendas associadas a esta cooperativa. A empresa afirma que atualmente não compra café das fazendas Mata Verde, Três Irmãs e Primavera mencionadas aqui e que elas não fazem parte do Plano Nescafé. No entanto, a Nestlé não comenta sobre relações comerciais anteriores, incluindo com a fazenda Mata Verde, que forneceu café com certificação 4C para a Cooabriel até sua exclusão do sistema 4C em junho de 2023.

A Nestlé continua: “Também mantemos comunicação direta com a Cooabriel para enfatizar a importância de condições de trabalho seguras e justas em todas as fazendas onde compramos nosso café”. Em relação à fazenda Vista Alegre, a Nestlé afirma: “Assim que tomamos conhecimento dos problemas que você mencionou, tomamos medidas decisivas e suspendemos esta fazenda do nosso Programa de Qualidade Sustentável AAA, aguardando comprovação de que a fazenda cumpre nossos rigorosos padrões”. A fornecedora da Nestlé, NKG Stockler, confirmou que só tomou conhecimento do incidente em março de 2025, por meio da Repórter Brasil e da Public Eye.

Diversas outras questões, como se e como a Nestlé pretende garantir salários dignos aos trabalhadores da colheita, permaneceram sem resposta.

A declaração completa está disponível aqui .

Entrevista em vídeo com José Lima e Jurandir dos Santos

Os dois trabalhadores falam em detalhes sobre as condições na fazenda e sua fuga. Explicam quem acreditam ser o responsável e têm uma mensagem clara para as multinacionais e os consumidores de café.

 


Fonte:  Public Eye

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