O presidente Lula é um daqueles personagens históricos que já alcançaram a transcendência de suas pessoas físicas. A longa trajetória de criança pobre migrante para líder de uma das maiores economias do planeta dá essa condição a ele. Goste-se ou não dele, Lula já é uma daquelas figuras que estão marcadas na história não apenas do Brasil, mas do mundo.
Dito isso, Lula é uma daquelas esfinges que são aparentemente difíceis de serem decifradas. Basta ver a última participação na Assembleia Geral das Nações Unidas onde apareceu a face do líder carismático e antenado com as coisas do mundo, a começar pela luta em prol dos palestinos onde ele foi duro e certeiro. Mas o discurso de Lula também abrangeu áreas delicadas como a guerra contra a fome e a pobreza, bem como sobre a necessidade proteger o ambiente, a começar pela necessidade de se encontrar respostas para os problemas derivados das mudanças climáticas. Lula inclusive propôs a criação de um conselho para monitoramento das ações climáticas globais e conclamou os países a se comprometerem com metas ambiciosas para redução de emissão dos gases que causam o efeito estufa.
Esse é a face de Lula que é consumida globalmente. A de um líder de esquerda pragmático, mas que não tem medo de tocar nos problemas candentes do mundo, nem de criticar, ainda que indiretamente, as pressões autoritárias do presidente Donald Trump contra a democracia, especialmente a brasileira. Digamos que esse é o Lula para o consumo externo, aquele que recebe afagos até de quem ele acabou de criticar, como foi o caso de Trump.
A outra face de Lula, a doméstica
Porém, para o consumo interno, sobre a outra face de Lula. Aquela face que deixa os grandes discursos de lado e parte para os acordos diretos e retos para manter o Brasil na sua condição de economia agromineral, e cada vez mais desindustrializada. E é justamente na Amazônia que essa face doméstica mais causa danos porque impõe uma visão de economia do Século XIX, a da fronteira de recursos.
Quando Lula assumiu seu primeiro mandato, escrevi um texto na revista NovaAmérica onde eu previa um ataque à Amazônia por parte do governo que assumia.. Me baseei para fazer essa previsão em declarações que Lula fez durante a festa de Parintins onde ele atacava as restrições criadas pelo licenciamento ambiental para a expansão das hidrelétricas na Amazônia. Depois disso, vimos a construção de Belo Monte e das hidrelétricas do Rio Madeira. O fato é que com base no discurso Neodesenvolvimentista, o primeiro governo Lula acabou fazendo coisas que nem os governos militares conseguiram, sempre sob o manto do discurso em prol do desenvolvimento.
Agora em seu terceiro mandato, Lula resolveu atacar os técnicos do IBAMA por causa das exigências técnicas para liberação das licenças ambientais para exploração do petróleo na Foz do Amazonas que ele rotulou de “lenga-lenga”. Depois de todas as pressões pouco republicanas, as licenças estão sendo concedidas sem que os problemas identificados pelos técnicos do IBAMA tenham sido resolvidos.
Mas é na pavimentação da BR-319 que essa face pró-devastação de Lula fica ainda mais clara, pois até uma medida provisória (a 1308/25) foi promulgada para estabelecer a chamada Licença Ambiental Especial (LAE). A questão é que a LAE permitirá não apenas a exploração do petróleo na Foz do Amazonas, mas também a pavimentação da BR-319, cujos efeitos sociais e ecológicos deverão ser devastadores sobre o último grande bloco intacto de floresta na Amazônia. Mas a pavimentação da BR-319 também atingirá em cheio comunidades tradicionais, terras indígenas e a população da cidade Manaus, conforme mostrou artigo que foi divulgado neste espaço no dia de hoje.
Duas faces da mesma moeda
A verdade é que não me parece haver contradição alguma entre as duas faces de Lula. O que ele faz no plano internacional é fortalecer a sua imagem para tratativas que dependem diretamente da sua capacidade de fazer valer sua visão de desenvolvimento econômico no plano interno. Eu diria que ele age para se colocar em uma posição de negociador menos precário, pois com a imagem de paladino de uma esquerda que não assusta, ele consegue impor sua agenda agromineral com mais facilidade no plano interno.
E é até por isso que os governantes das economias centrais gostam de Lula, pois ele é um tipo de mascate viajante em quem se pode confiar. Ao contrário do instável Jair Bolsonaro que, acima de tudo, demonstrou ser um incompetente completo no tipo de tratativa em que Lula é mestre.
O problema é que mantidas as condições normais de temperatura e pressão em que Lula opera, o que teremos pela frente é mais devastação ambiental, mais agrotóxicos e mais dependência de produtos industrializados importados. Tudo isso em nome de um modelo de desenvolvimento que se já era ruim no Século XIX, imaginem agora em um mundo que ronda o colapso climático.
