Formalização do apoio à agenda e do auxílio aos países para a transição do amálgama para alternativas mais seguras e sustentáveis é aguardada para a conferência das partes (COP6), que começa no próximo dia 3, em Genebra. Também serão avaliadas metas de eliminação do metal em outros produtos
Os vapores do mercúrio extremamente tóxico usado em obturações metálicas são fonte de contaminação para pacientes, profissionais e o meio ambiente como um todo. Foto: Tine Steiss / Wikimedia Commons
Por Cida de Oliveira*
A tão aguardada agenda para o banimento do mercúrio na odontologia deverá ser estabelecida nesta sexta reunião da Conferência das Partes da Convenção de Minamata sobre Mercúrio, a COP6 de Minamata, que será realizada em Genebra, de 3 a 7 deste mês de novembro. Em evento pré-conferência realizado recentemente, Benoit Verenne, responsável pelo programa de saúde bucal da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirmou que o órgão “vai apoiar a agenda para 2030. E também ações para que os países façam a transição do amálgama para materiais seguros e sustentáveis com a colaboração da indústria, pesquisadores, sociedade civil e governos”.
Varenne reforçou que a insegurança do mercúrio em restaurações já está estabelecida, sendo, portanto, uma questão superada. E assim a prioridade para a organização é eliminar o metal extremamente tóxico. “Já temos materiais substitutos de qualidade, menos invasivos. O amálgama é um material ultrapassado. Se acumula no organismo, desencadeando diversos problemas de saúde e é um grande passivo ambiental”. E reforçou: “A transição para alternativas seguras e sustentáveis é essencial para proteger a saúde humana e o meio ambiente. Uma saúde bucal livre de mercúrio é possível. Basta boa vontade política e compromisso. Agora é hora de responsabilidade coletiva para apoiar os países a acelerar a transição para alternativas sem mercúrio no cuidado da saúde bucal”, reforçou.
Preocupação urgente
O coordenador da Aliança Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio no Brasil, Jeffer Castelo Branco, fez coro ao diretor da OMS, ressaltando que o mercúrio contido nessas restaurações é uma preocupação urgente. “Já existem evidências científicas de que há materiais para substituir o amálgama. Não há mais justificativas para o seu uso quando há alternativas disponíveis; não há motivo para continuar introduzindo nas restaurações odontológicas o metal tóxico, perigoso que ameaça a saúde humana e o meio ambiente. Ou seja, já chegou o momento de acelerar o fim do mercúrio no tratamento dentário das pessoas”, disse.
Castello Branco considera que o prazo apontado pelo diretor da OMS para finalizar a transição para o fim do mercúrio na odontologia vai ao encontro do defendido pela delegação de países africanos, que na conferência anterior propôs a agenda para 2030. “Desta forma, a sociedade civil engajada para o fim do mercúrio no tratamento dentário espera que o lobby do mercúrio, muito forte em Minamata, perca força e uma data para o fim seja, finalmente, estabelecida, protegendo a saúde e o meio ambiente dos amálgamas de mercúrio”, disse ao Blog do Pedlowski. E citou uma frase marcante de Benoit Verenne: “É uma questão de ‘responsabilidade coletiva’. Esperamos não menos que isso, nesse encontro dos países parte da Convenção de Minamata”.
Realizada no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a conferência da Convenção de Minamata, da qual o Brasil é signatário, acompanha o cumprimento das metas para a proteção da saúde humana e do meio ambiente em relação aos prejuízos causados pela ação do mercúrio em todas as atividades. É o caso do uso na fabricação de cloro cloro e soda (células eletrolíticas de mercúrio), que deverá ser zerado neste ano. Desde 2017, quando a convenção entrou em vigor, seu objetivo é controlar o ciclo de vida do metal altamente tóxico, desde a mineração até o descarte final, passando pela eliminação de minas, do uso no garimpo de ouro e diversos produtos e o controle das emissões à atmosfera, às águas e ao solo.
Amálgama banido na União Europeia
Quanto ao uso odontológico, na conferência de 2023 foram estabelecidas medidas para a proteção de crianças, gestantes e lactantes do uso de amálgama. A União Europeia se antecipou e já proibiu totalmente em 1º de janeiro deste ano. Em 2019, o Brasil proibiu a manipulação de mercúrio para liga de amálgama não encapsulados, o que não resolve o problema, segundo pesquisas. Houve também iniciativas legislativas, como aprovação de lei no sentido de proibição no estado de São Paulo, e também no município de Peruíbe, no litoral sul paulista.
Tragédia no Japão
A Convenção de Minamata tem como objetivo evitar uma repetição da tragédia socioambiental causada em Minamata, no Japão, pela indústria química Chisso. Por mais de 30 anos, partir de 1932, a empresa despejou no mar, sem tratamento, toneladas de resíduos contendo mercúrio. Peixes foram contaminados, assim como as pessoas e animais na cadeia alimentar. Foram se tornando mais comuns pessoas com convulsões, deformações, paralisia, coma e morte. Em 1956, houve 40 pessoas diagnosticadas com a intoxicação, das quais 14 morreram. Uma taxa de mortalidade de 35%, considerada alarmante, o que sugere que o número de mortos tenha sido bem maior do que 2.265 reconhecidos em 2021, conforme dados do governo japonês. Ao todo, mais de 10 mil receberam indenização financeira da empresa após disputas na Justiça, em torno de US$ 86 milhões pagos em 2004, ano em que a Chisso foi condenada a descontaminar a baía.
Apesar dos efeitos nocivos conhecidos, o combate tem sido prejudicado pelo forte lobby do mercúrio. Exemplo disso é veto da lei estadual paulista com calendário de eliminação nos consultórios, com alcance maior naqueles do SUS. Em outubro de 2024, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) desprezou apelos de cientistas, especialistas, movimentos e entidades e ouviu apenas argumentos frágeis e negacionistas de autarquias responsáveis por supervisionar a ética profissional, normatizar e fiscalizar o exercício da profissão em todo o Brasil. Deixou de lado o compromisso assinado pelo Brasil em Minamata e mais: a proteção imediata de gestantes, lactantes e menores de 15 anos que recorrem aos serviços públicos de saúde. Na rede privada, praticamente não se faz mais restaurações de mercúrio.
Lobby e racismo estrutural
O lobby que tem entre outros o recorte de classe social, vai permitindo a exposição de usuários e de profissionais do SUS aos efeitos nefastos do mercúrio, que compõe uma das substâncias químicas mais perigosas que existem. E que, uma vez lançada no meio ambiente, não se tem como controlar, com riscos a todos. “Isso porque pode se autotransportar pela atmosfera e se biotransformar em compostos químicos ainda mais perigosos, podendo atingir diversos animais como os de corte, as aves e os peixes, incluindo o próprio ser humano no topo da cadeia alimentar”, explica Jeffer Castelo Branco, que é doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com longa experiência em meio ambiente e avaliação de risco à saúde humana.
“Pela nossa visão, não há sentido em defender a continuidade do amálgama em um país que usa somente 2% de restaurações dentárias com amálgama de mercúrio, como o Brasil, que provavelmente já usa somente nos chamados ‘casos de exceção’. Observamos em nossas pesquisas, em artigos, escritos e em comentários de profissionais, porém, que nessas exceções são pessoas pobres, negras, moradoras de áreas periféricas, com algum tipo de deficiência. Ou seja, aquelas que seriam consideradas ‘pouco colaborativas(!)’ durante o tratamento.”
O especialista avalia também que o uso do obsoleto e perigoso mercúrio no âmbito da saúde pública, que desvaloriza o serviço, ainda se configurar como racismo estrutural. “Somado ao fato de mostrarem ignorar que pessoas com doenças ou deficiências, sobretudo aquelas atingidas por transtornos neurológicos ou neurodegenerativos, deveriam ter um tratamento dentário diferenciado, completamente livre de mercúrio, tóxico para os neurônios e neurodegenerativo.”
E que, em vez desse processo de desvalorização, o atendimento público deve usar materiais seguros e sustentáveis. “O Brasil Sorridente, o maior programa de saúde bucal do mundo, uma conquista grande para nossa população, merece ser livre de mercúrio. Assim, nessa sua proposta de expansão de tratamento dentário, com tecnologias modernas, não pode levar mercúrio do amálgama dentário por todo o país”.
O banimento do metal, no entanto, pode trazer efeitos colaterais. O coordenador da Aliança Mundial pela Odontologia Livre de Mercúrio teme que, com o fim do uso do amálgama na União Europeia, haja pressão da indústria para escoar esse mercúrio tóxico para outros países. Isso devido à velha prática do duplo padrão, que empurra a sucata, o obsoleto, o tóxico para os países menos desenvolvidos, a exemplo do que acontece no mercado de agrotóxicos.
“Em 2022, após duas indústrias decidirem encerrar a fabricação do amálgama de mercúrio, uma das maiores fornecedoras australianas desse produto para o Brasil anunciou um aumento de vendas em moeda local de cerca de 60% para o nosso país”, lembra.
E tudo isso em meio à impossibilidade de controle efetivo dos resíduos de amálgama gerado em consultórios. Ou seja, o quanto está indo para a atmosfera, para a rede de esgotos e terminando em rios e mares. “Por outro lado, não se sabe ao certo se ele está sendo desviado para outros destinos, como o garimpo, por exemplo. Por isso, é imprescindível acabar com todas as fontes de mercúrio, por ele ser tóxico, um poluente ambiental e fonte contínua de produção desse metal perigoso”.
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*Cida de Oliveira é jornalista
