
Por Luciane Soares da Silva*
No ano de 2018, as Universidades brasileiras foram alvo de fiscalizações acompanhadas de truculência e ilegalidade. No Rio, a Universidade Federal Fluminense (assim como a UENF e outras) foi semanalmente visitada por fiscais após “denúncias”. Por trás destes movimentos, vimos a tentativa de cerceamento da liberdade de expressão de posições em desacordo com os rumos da política nacional e estadual. Vivemos a experiência concreta da aplicação de exceção na qual cada autoridade pôde estabelecer a escala de democracia que deveria ser aplicada a cada momento do processo eleitoral.
Em 2020 em meio a uma pandemia global, somos diariamente atacados no nosso ofício como professores e cientistas e vemos nossos recursos serem sangrados diariamente. E agora, uma portaria do Ministério de Ciência Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI) exclui a área de ciências humanas da prioridade de projetos de pesquisa financiados pelo CNPq até 2023.
Não é recente a posição do atual presidente Jair Bolsonaro, amparado em seu ministro da educação Abraham Weintraub , de que é preciso “ focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte como veterinária, engenharia e medicina”.
Há um livro bastante interessante do professor Boaventura de Souza Santos. Neste livro, Boaventura discute alguns paradigmas basilares de fundação da ciência moderna, e refuta com argumentos brilhantes, algumas hierarquizações quanto a separação entre as ciências. Já faz algum tempo que esta discussão tem sido feita por pesquisadores entre os quais estão Thomas Kuhn em “A Estrutura das Revoluções Científicas“, Bruno Latour em “A vida de Laboratório” e o próprio Boaventura, É uma boa leitura para pensar e produzir narrativas sobre conhecimento, ciência e tecnologia. É falsa a separação entre uma ciência “rica” em política (como muito comumente são apresentadas as ciências humanas) e uma ciência mais “pé no chão”. Embora a observação seja um dos requisitos fundamentais das ciências ela é indissociável do observador concreto (político) a considerar até mesmo a escolha do objeto.
O ex-Reitor da UFRJ Roberto Leher discutiu a relação entre ciência e sociedade em entrevista na qual argumentou que falta a Universidade Brasileira pensar a forma como o país está inserido na economia mundial. Se estamos pensando inovação e tecnologia, do que falamos exatamente? A quem deve chegar a inovação tecnológica produzida na Universidade? Quando falamos em transformação social, creio que estamos falando de algo muito mais amplo e estrutural do que a efetivação de parcerias entre Universidade e setor privado.
Quando olhamos o Brasil pós democratização e os indicadores de desigualdade, violência e racismo, devemos nos perguntar, como um país tão rico, permanece tão desigual. Quando olhamos o resultado das formas de urbanização que produziram áreas conflagradas, sem saneamento, devemos nos perguntar como um país com tantos recursos e terras permanece tão inacessível aos seus cidadãos. Quando olhamos as mortes no campo e os indicadores que mostram uma educação ainda precária e incapaz de motivar inovação em regiões como Campos dos Goytacazes, devemos nos perguntar como a política municipal não melhora a vida do homem do campo e de sua família. Quando vemos os jovens ingressando tão cedo em instituições como DEGASI e posteriormente engrossando a massa penitenciária que transcende os limites aceitáveis da dignidade humana, devemos nos perguntar como a Justiça permite tantos abusos aos direitos humanos. Quanto o sistema de saúde pratica violência obstétrica, permite que se naturalize o péssimo atendimento público, aceita o descaso e as pequenas corrupções como forma de fracionar o acesso à saúde, devemos nos perguntar por que programas de prevenção e cuidados básicos não foram implementados em nosso país, em pequenas cidades, investindo em melhor alimentação, tratando questões ligadas a saúde mental da população. Quando o Estado mata pessoas com 80 tiros, confunde furadeiras e sombrinhas com fuzis, atira em crianças de 10 anos e tenta justificar envolvimento no tráfico, devemos nos perguntar por que este mesmo Estado segue aplicando políticas de extermínio contra a população negra e pobre. Quando ele desapropria com celeridade, agricultores para entregar suas terras e águas na mão de empresários inconsequentes, devemos perguntar que matriz de desenvolvimento é esta que não interessa ao bem comum.
Nós fazemos estas perguntas, realizamos estas pesquisas e mostramos os interesses que destroem um país rico em recursos humanos e naturais. Mostramos opções menos poluidoras, mostramos possibilidades para alfabetização de crianças e adultos, expomos com outras áreas de conhecimento, as mazelas do sistema carcerário, educacional, de saúde. Discutimos a relação entre desenvolvimento e ecologia. Pensamos as formas pelas quais o racismo ainda permanece em nosso país como uma questão estrutural. Discutimos o feminicídio e as formas ampliadas da família contemporânea brasileira. Enfrentamos temas como aborto, depressão e suicídio. As ciências humanas não são uma ilha isolada e não há a menor possibilidade de vivermos em um mundo globalizado sem discutir como as decisões políticas afetam as mínimas instâncias de nossas vidas. Da água que bebemos as nossas escolhas religiosas e afetivas.
Sabemos o quanto este governo tem se esforçado diariamente para “apequenar” um país moderno, para vendê-lo mais barato, humilhado, destroçado pela ignorância assombrosa de seus representantes. Mas sabemos que é na defesa do acesso á Universidade Pública, gratuita e socialmente referenciada que encontraremos nosso caminho de volta ao um país melhor, menos desigual.
O certo é que nós cientistas sociais, permaneceremos aqui, pesquisando, lecionando, realizando projetos de extensão. Seguindo aqueles que antes de nós pensaram o país: Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes , Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Lélia Gonzalez, Ruth Cardoso e centenas de outros. Pensar não o país do futuro, mas o Brasil possível do presente. Tudo que já se falou sobre os perigos de um país sem memória se atualiza hoje, quando vemos a tragédia repetir-se nas ações do atual governo. Mas as formas de resistência também se atualizam com base nos saberes que produzimos ao longo destas décadas.
[1] Este texto foi publicado como nota interna enviada pela ADUENF em abril de 2019. Mas parece que seus argumentos seguem válidos .
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*Luciane Soares da Silva é é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce), e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).