O outro lado da maior tragédia ambiental do país

A relação entre a tragédia em Mariana e o abandono das instituições públicas ambientais

Por Fernando Lima

MORTE

 “A última coisa que eles vão te cobrar aqui é qualidade… o estado não te dá treinamento, assim eles não podem exigir qualidade nenhuma no serviço…”, foram umas das primeiras frases que ouvi de um colega, provavelmente na segunda semana de trabalho após ter me tornado servidor público em um órgão ambiental do estado de Minas Gerais, quando na ocasião demonstrei uma preocupação em desenvolver o serviço de forma adequada. Já era minha segunda aprovação em concursos para o cargo de analista ambiental, depois de anos de estudo. Saí de um órgão ambiental municipal em outra região do país, para atuar agora em um órgão estadual: ora estava progredindo!

A primeira impressão que tive ao ouvir a frase acima vinda do meu colega foi de surpresa, porém poucas semanas depois aquilo já me pareceu fazer todo o sentido. Todavia é importante ressaltar antes, a situação por meio da qual a minha entrada nesta instituição foi tornada possível. Há tempos existe uma grande necessidade de aumentar e principalmente qualificar o quadro de pessoal do sistema estadual de meio ambiente, sobretudo de técnicos — tal termo neste sentido quer dizer, profissionais de nível superior com formação específica nas mais diversas áreas que se deve compor a pasta ambiental. Visto que em décadas de existência, apenas um concurso havia sido realizado pela administração pública, que sempre se utilizou desta condição para engrossar o cabide de empregos, introduzindo no serviço público os apadrinhados por meio de critérios bastante restritos, só entra quem é indicado. E também pelo método ineficiente e danoso da terceirização de pessoal. E é claro que em muitas vezes, o profissional que entra em uma determinada instituição, não é o profissional mais adequado para o cargo, em muitos casos o protegido não tem nem a formação específica desejada para atuar na função.

Em consequência da incapacidade do estado em promover o que está consagrado na constituição federal há quase trinta anos, que diz que o ingresso no serviço público deve ser por meio de concurso público, o Ministério Público Estadual pressionou pela realização de mais um tão esperado certame. E assim fui aprovado e nomeado como centenas de outros profissionais em diversos cargos para diversas localidades estaduais. Em meu local de lotação, no interior do estado, entraram em exercício como concursados apenas três servidores, enquanto deixaram o órgão, por pressão do MPE, mais de uma dezena de pessoas que estavam atuando sem o crivo do concurso. Fazendo um cálculo bem simples, cada um dos que ingressaram estaria fazendo o serviço de pelo menos três pessoas. Ou seja, há uma grande preocupação do governo quando o assunto é mão de obra contratada ou terceirizada, bem diferente quando o assunto é servidor efetivo. Infelizmente situação comumente encontrada na maioria dos órgãos públicos espalhados pelo país.

A carência e o abandono do órgão eram evidentes. Faltava tudo: estrutura; equipamentos; insumos; orientações; treinamentos; linhas de atuação definidas; planejamento de trabalho; pessoal técnico.

Ao passo que sobrava: desorganização; burocracia administrativa; desvios de função; dificuldades diversas. Enfim não havia ali condições mínimas necessárias para realizar um serviço decente. Servidores recém-chegados atuando sozinhos em determinados setores e de forma surreal chegando ao ponto de ficarem sós em alguma repartição pelo interior do estado. Mesmo assim, com pouco ou nenhum respaldo, a maioria dos servidores contrariando as expectativas continua trabalhando, atendendo de forma precária o público interessado, analisando importantes processos sem supervisão alguma, conduzindo veículos inapropriados e utilizando instrumentos sucateados para realizar as vistorias de campo, ou seja, continua representando um estado incompetente e irresponsável. Cabe ressaltar que em Minas Gerais, a secretaria de meio ambiente é a segunda em arrecadação dentre todas as pastas do poder executivo, porém os recursos obtidos não são utilizados para a melhoria ambiental.

Para exemplificar apenas alguns dos descasos, sabe-se cientificamente que a conservação e preservação de recursos naturais só têm condições de ocorrer efetivamente em uma Unidade de Conservação, principalmente de proteção integral. Mesmo assim as condições estruturais da maioria das UC’s são deploráveis, visto que quando há gestores atuando, eles comumente não têm como trabalhar de forma eficaz, pois falta até combustível para abastecer os veículos. Muitas vezes uma única pessoa é responsável pelo monitoramento de milhares de hectares de áreas protegidas. Áreas essas que muitas vezes não foram nem desapropriadas pelos estados ou união. Então qual é mesmo o objetivo de se criar essas áreas protegidas? A princípio apenas objetivos simbólicos, pois boa parte desses espaços existe apenas no papel. Da mesma forma, outros setores coordenados pelos órgãos ambientais estão abandonados ou funcionando de forma rudimentar, como por exemplo, a gestão da fauna. São pouquíssimos os centros de triagem para atender uma demanda crescente de fauna oriunda de um dos maiores corredores de tráfico de animais silvestres do Brasil. Muitas vezes espécies com riscos elevados de extinção.

Com relação aos sistemas de regularização e fiscalização ambientais, fundamentais para o ordenamento de quaisquer atividades potencialmente poluidoras, o colapso já é uma realidade. Uma considerável quantidade de autos de infração emitidos pelos agentes ambientais levam muitos anos para serem relatados e finalizados, contribuindo sobremaneira com a impunidade e estimulando a ação do infrator. São tantos os recursos que quando realmente há o pagamento da multa (se houver), tal valor é inferior ao lucro logrado com a prática lesiva. Quando o assunto passa a ser o licenciamento ambiental, a situação consegue piorar ainda mais. Em decorrência de extrema carência de profissionais habilitados para a análise dos processos, os pedidos vão se acumulando com o passar dos anos, e como consequência, os empreendimentos passam a funcionar sem o aval ou com anuência inadequada dos órgãos competentes. O que será que isso pode ocasionar?

É muito importante ressaltar que o sucateamento alcançado pelos órgãos ambientais estaduais, assim também como os federais, com toda certeza está relacionado com o pensamento historicamente enraizado, de que os assuntos ambientais são de importância secundária, e pior, são entraves para o desenvolvimento econômico. E desta forma essas instituições vão sendo totalmente abandonadas pela administração pública e seus servidores têm suas atuações totalmente inviabilizadas. Fundamental salientar que o descaso tem origem multipartidária, não sendo exclusividade de um partido ou outro, ele se origina do pensamento equivocado de que os recursos naturais só têm importância quando valorados economicamente. Talvez isso possa ser traduzido na maior dificuldade para se mudar culturalmente uma ideia (muitas gerações cometendo os mesmos erros), o não entendimento de que a valoração ambiental (ou o serviço ambiental) de um determinado recurso natural é bem mais elevada e duradoura do que sua valoração econômica, que é finita.

É impossível não relacionar o maior desastre ambiental da história do Brasil com o caos total em que se encontram praticamente todos os órgãos públicos ambientais brasileiros. E não é surpresa que tal catástrofe tenha acontecido no estado de Minas Gerais. Claro, primeiramente, porque lá são desenvolvidas atividades de extrema degradação ambiental como a mineração, mas não se pode esquecer do abandono em que se encontra a pasta ambiental no estado. Foram irreparáveis perdas de vidas humanas. O descaso com o meio ambiente agora também tira vidas humanas, característica antes exclusiva do descaso com a saúde, segurança e educação principalmente. Adicionalmente um corpo d’água da magnitude do rio Doce foi esterilizado. Não se sabe o que sobrou de biodiversidade. Provavelmente nunca se saberá ao certo quantas espécies da fauna e flora aquáticas desapareceram. Será que ali existiam espécies desconhecidas pela Ciência ainda? E os impactos no oceano?

É evidente que a responsável pelo desastre no município de Mariana, com consequências terríveis em centenas de municípios mineiros e capixabas, é a mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale e BHP. Porém não se podem simplificar tanto assim os fatos, essa responsabilidade é evidentemente compartilhada com o estado. O processo de liberação de um empreendimento de mineração deve ser analisado e aprovado por instituições diferentes. Pelo Ministério de Minas e Energia por meio do Departamento Nacional de Produção Mineral, responsável pela fiscalização e também pelo órgão ambiental licenciador, que na maioria dos casos é o órgão estadual. De forma alguma uma barragem pode funcionar sem a anuência do órgão ambiental responsável. Não há dúvidas de que o estado é corresponsável direto pelos fatos ocorridos e isso tem sido comentado de forma muito superficial pela maioria dos veículos de comunicação.

Importante lembrar que poucos meses antes da tragédia, o governo de Minas Gerais estava muito preocupado com o atraso na emissão das licenças ambientais no estado. Para solucionar este “entrave”, foi criada uma força tarefa para acelerar a emissão das licenças ambientais atrasadas. Uma das ações adotadas pela administração foi oferecer gratificações para que servidores de outras pastas do poder executivo estadual se transferissem temporariamente para o órgão estadual ambiental, com o intuito de “resolver esse passivo”. Lembrando que esses funcionários convidados a atuar na pasta muitas vezes não possuíam nenhuma vivência na área ambiental, e pior, com concurso vigente do sistema de meio ambiente com centenas de profissionais com formação específica, aprovados e aguardando nomeação.

Em reportagem veiculada no próprio site institucional do governo mineiro, o governador durante um fórum que debatia os desafios atuais da mineração no Brasil comenta: “Os licenciamentos são muito lentos, demorados, que exigem muitas vezes procedimentos quase punitivos do licenciado e, muitas vezes não são feitos de forma adequada…” e ele continua: ”…Eram coisas pequenas, mas coisas muito grandes também. Projetos de bilhões de reais estavam parados por falta de licenciamento ambiental. O fato é que esse problema já está sendo enfrentado.” O problema foi enfrentado? Ele foi resolvido? Foi solucionado? Será que vem coisa pior pela frente? Muitas dúvidas ainda pairam sobre a questão ambiental e com consequências diretas a todo e qualquer ser vivo. Animais e plantas não podem se manifestar, mas pessoas sim, essas podem e devem sempre que necessário.

Não é muito difícil compreender os motivos que levam ao sucateamento dos órgãos públicos ambientais no país. É só imaginar como seria a realidade se as instituições fossem bem estruturadas e equipadas, se o quadro de servidores fosse composto por uma mão de obra especializada, bem treinada e motivada. Se existissem realmente condições satisfatórias para executar o que está descrito nos dispositivos legais. É óbvio que a situação seria outra, os órgãos conseguiriam atuar de forma eficaz e independente. A administração pública inviabiliza o trabalho das instituições, para que estas se enfraqueçam e passem a atuar como representantes dos interesses escusos da classe política no poder em questão e de uma parcela da classe empresarial, sua financiadora. Infelizmente não é exclusividade da área de meio ambiente, essa aberração ocorre na grande maioria das pastas e em todas as esferas.

Durante muito tempo meu objetivo profissional foi atuar como servidor público em um órgão ambiental. Para isso me qualifiquei e me preparei durante um bom tempo. Porém, após ter vivenciado a realidade de alguns órgãos de meio ambiente, percebendo que muito dificilmente a situação mudaria, acabei por solicitar minha exoneração. Solução definitiva pra mim. Acredito que posso contribuir de outra forma com a conservação dos recursos naturais e a efetivação do desenvolvimento sustentável.

Esse é apenas um relato de vivência sem nenhum viés político-partidário, sindical e muito menos corporativo. Trata-se de uma conclusão racional e honesta da minha experiência, baseada no meu ponto de vista. Contudo, não trago aqui nenhuma informação inédita. Tudo que foi dito é muito bem conhecido por grande parte dos servidores públicos da área ambiental ou não. O intuito é apenas conseguir enxergar as coisas a partir de outra ótica, para quem sabe, aproximar-se de uma solução que ainda não veio.

Fernando Lima é biólogo e ex-servidor público

FONTE: https://medium.com/@fernandolrcunha/o-outro-lado-da-maior-trag%C3%A9dia-ambiental-do-pa%C3%ADs-b6f780e4d10a#.kazyf68dh

 

11 comentários sobre “O outro lado da maior tragédia ambiental do país

  1. Na esfera federal não é muito diferente, tendo em vista o colossal desafio de fiscalizar/licenciar rios federais, mar territorial, terras indígenas e da união, além dos mais de 10% do território nacional “protegidos” em unidades de conservação federais. Embora melhor capacitados e com metas claras a cumprir a escassez de recursos e pouca vontade política desmotiva servidores e facilita a vida de infratores. Ainda falta muito para que se cumpra o art. 225 da CF.

    Curtir

    • Isso mesmo Yuri, como eu disse no texto, esses problemas são muito bem conhecidos pela grande maioria dos servidores ambientais de todas esferas. Agora é interessante a sociedade saber as reais condições de trabalho. Compreendo bem o que você disse. Saudações.

      Curtir

  2. Na esfera municipal (Belo Horizonte) as condições da fiscalização urbana e, sobretudo, a ambiental, expressam exatamente o texto acima. Em resumo, os órgãos públicos estão privatizados por partidos políticos. As atividades fins destes órgãos são tratadas como secundárias e inconvenientes. Os governantes por aqui detestam fiscalização, Ministério Público e Meio Ambiente. Todos são considerados um ‘atraso’ ao desenvolvimento econômico pelo alto escalão municipal.

    Curtir

  3. Concordo com vcs e acredito que a única saída é a sociedade acordar, cobrar mais, atuar sozinha ou junto (vigiando) com o Governo (qualquer esfera). Ou seja, valorizando e se apoderando de seu patrimônio ambiental .

    Curtir

  4. Realmente essa situação dos órgãos é a regra e não a exceção. E lendo os comentários a gente percebe que esse problema é do tamanho do Brasil. Concordo que a maior participação da sociedade é um reforço muito importante.

    Curtir

  5. Excelente texto Fernando!
    Reflete exatamente as condições de trabalho encontradas no setor ambiental.
    É uma pena para o funcionalismo público ter perdido um funcionário capacitado e engajado como você. Como sempre, o sistema vai perdendo grandes profissionais por pura politicagem e falta de incentivos…
    Será que um dia esse cenário poderá mudar? A esperança vai se enfraquecendo…

    Curtir

    • Muito obrigado pelas palavras Dayane! Não sei se mereço. Você entende bem o contexto, já que entramos sob as mesmas circunstâncias não é! Eu continuo torcendo muito por vocês nessa luta.

      Curtir

  6. Perfeito!!! Tudo que penso. Encaixa também na minha experiência de concursada por 9 anos no órgão ambiental estadual de Minas Gerais. Dos quais 4 no interior e 5 em BH. No primeiro ano de Estado eu levava meu computador pessoal para mesa da cozinha de um escritório regional. Sozinha, inexperiente em uma UC de 15 mil hectares. Nos 9 anos de experiência as coisas melhoraram um pouco e a gente passou a trabalhar com o mínimo sendo “obrigado” a acreditar que estava muito bom ao se comparar à epoca que era “muito pior”. Complicado.
    Tentei muito fazer a diferença mas o sistema te consome e te desmotiva. Agora sou ex-servidora. Um abraço

    Curtir

  7. Oi Mariana compreendo mesmo sua situação. Ouvindo você consegui visualizar bem sua experiência. Essa é a tática utilizada: deixar a coisa muito ruim, depois melhorar quase nada e parecer que o problema está resolvido. Parabéns pelos nove anos de batalha! Um abraço.

    Curtir

    • Foi muito bom ter trabalhado com você mas Fernando , você fez bem em sair deste Órgão. As mudanças que estão propondo não são boas. Estou a 9 anos no Estado e estou descrente de tudo…

      Curtir

      • Hellen com certeza você é uma profissional que pode falar com muita propriedade sobre o descaso e o abandono. Lembro bem das situações que você mencionou que já passou no estado. Pra mim foi um prazer trabalhar com vocês também.

        Curtir

Deixe um comentário