Sociólogo e professor do IFES analisa causas e efeitos do colapso hídrico em São Mateus

Escassez de água e sofrimento social

Por Leonardo Bis dos Santos*

foto Léo Bis

Os ciclos de seca no Espírito Santo – ES têm se apresentado regularidade impressionante década após década – com exceção dos anos 1970. A partir da segunda metade do século XX temos as secas de 1952-1956, 1963, 1985-86, 1997-1998 e 2007-2008. Já deveria ser esperado então que houvessem, pelo menos uma vez de dez em dez anos, períodos de escassez de recursos hídricos. Assim, impressiona o fato de muito pouco ter sido feito para reduzir os impactos desses ciclos no estado.

Observando o caso do município de São Mateus, no extremo norte do ES, tem-se um cenário bastante peculiar, em que os conflitos entre os interesses político-econômicos em detrimento de interesses socioambientais se acentuam no processo de uso e apropriação da água. O município passa por um de seus piores momentos no sistema de abastecimento de água. Parte em decorrência efetiva da escassez de chuvas e parte em decorrência dos intensos processo de urbanização e adensamento populacional – mas não só por esses dois fatores como veremos…

O relato dos moradores é que a água encanada que está chegando nas residências é imprópria para o uso humano. Os níveis de salinidade estão acima dos aceitáveis pelos consumidores. Olhos ficam irritados durante o banho e o cabelo dos moradores sentem os efeitos do sal. Cozinhar com essa água é impossível, dadas as interferências no sabor dos alimentos. Roupas ficam manchadas ao lavar com a água que chega. E isso tudo são apenas os efeitos mais superficiais, pois ainda é pouco difundido os efeitos dessa água para a saúde humana.

E o pior disso tudo: se não bastasse o sofrimento social e biológico causado pela falta de um bem essencial à sobrevivência, houve ainda um enorme constrangimento econômico advindo da continuação da cobrança das taxas de abastecimento. A população com maior poder econômico recorreu à compra de água mineral. A população pobre, contudo, não possuía a mesma capacidade econômica…

Apesar de pouco noticiado nos veículos de comunicação do Espírito Santo, houve reação popular considerável, incluindo a ocupação da sede da empresa responsável pelo serviço. Rapidamente a manifestação foi contida pela polícia militar – com informações de uso excessivo de força, inclusive. Apesar disso, com exceção dos municípios próximos, a população do restante do estado não teve conhecimento dos acontecimentos.

Os argumentos da empresa responsável pelo abastecimento sobre a situação são curiosos. O primeiro e mais amplamente divulgado é o de culpabilizar a natureza: o ciclo de seca seria mais severo que os anteriores. E o segundo argumento mais observado foi o de falta de recursos para investimento em novas tecnologias. Ora, creio ser desnecessário argumentar que os ciclos de seca são relativamente regulares, como já apresentado, demonstrando efetiva incompetência de planejamento. Em segundo lugar, merece destaque que a empresa responsável pelo serviço – o SAAE (Serviço Autônomo e Água e Esgoto) – é de gestão municipal, ao contrário da maior parte dos demais municípios do Espírito Santo – sob concessão da CESAN (Companhia Espírito Santense de Saneamento). Ao longo dos anos o SAAE tem servido para abrigar aliados políticos, explicitando o controle da água como elemento de poder – a decisão de levar água encanada para determinada comunidade se manifesta como elemento de dominação, principalmente em São Mateus onde há locais ainda sem abastecimento regular nos dias atuais.

Pensar em licitar esse serviço? Parece que não é pauta política no município. Ceder a concessão para a empresa estadual – a CESAN? Nem pensar! Não que essa última alternativa seja realmente a melhor opção, mas o que se revela é o desejo de manter a empresa municipal sob a tutela da prefeitura justamente para manter uma relação perversa – que apesar do serviço ineficiente ainda é tutelada pela conta no final do mês.

Quais os efeitos dessa política? Quantas pessoas estão nesse momento sendo contaminadas em São Mateus? Não se sabe ao certo. O que é bastante plausível é que as populações com maior dependência direta – sem a intermediação do dinheiro – dos recursos naturais é a que mais tem sofrido. Sofrimento esse que ainda é pouco debatido: é como se sua visibilidade social estivesse condicionada diretamente a vítimas fatais. Quando o sofrimento não chega a atingir diretamente a morte não é considerado nas análises.

*Leonardo Bis dos Santos é sociólogo e doutor em história social das relações políticas. Atualmente é professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo.

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