A presidente de facto da Bolívia, Jeanine Añez, levanta um exemplar da Bíblia em sua “posse” após o golpe de estado promovido contra Evo Morales
Vejo com alguma irritação as manifestações de analistas televisivos (incluindo aí alguns intelectuais chancelados) sobre a situação política brasileira, onde invariavelmente as comparações feitas remontam aos passos tomados por Hugo Chavez na Venezuela. A comparação entre a situação venezuelana peca por alguns fatos básicos que comecem pelo caráter nacionalista de Chavez e o viés latinoamericanista de suas políticas. Além disso, diferente do Brasil, Hugo Chavez, foi um crítico contumaz do neoliberalismo, e operou uma série de mudanças no sentido de ampliar a distribuição de renda na Venezuela, um dos países com maior concentração de riquezas do planeta. Além disso, Chavez operou uma modernização das forças armadas venezuelanas, dotando-as de diversos equipamentos militares de ponta, incluindo o sistema de defesa aérea S-300 que é fabricado pela Rússia.
Nesse sentido, não há como comparar o presidente Jair Bolsonaro com Hugo Chavez, pois as receitas de um são diametralmente opostas ao do outro. Mas, mesmo assim, é rotineiro o uso da comparação da situação política criada por Jair Bolsonaro com o que ocorreu com a Venezuela sob o comando de um líder político que operou transformações, ainda que parciais e de forma precária, que visavam ampliar a cobertura social do Estado em relação aos segmentos mais pobres da população.
Além disso há um elemento de farsa, pois os analistas e intelectuais chancelados sempre omitem um fato básico: Chavez era um líder que falava e conectava com as amplas camadas mais pobres da população venezuelana. Com isso, ele venceu todas as eleições a que concorreu, sem que jamais tenha sido provado qualquer tipo de fraude.
O caso boliviano é mais próximo do que os analistas e intelectuais chancelados querem mostrar
Se os analistas da mídia corporativa e os intelectuais chancelados que prefere ouvir fizessem uma análise mais séria, o país a ser comparado seria o Bolívia, especificamente o golpe de estado promovido contra o presidente Evo Morales. Foi na Bolívia que ocorreu uma conjunção de forças que, aparentemente, se procura repetir no Brasil, a começar pela participação de lideranças da extrema-direita, leigos ou ligados a grupos religiosos, membros da forças policiais, bem como líderes do latifúndio agro-exportador. Foi essa combinação de forças que invadiu o presidencial com bíblia na mão, e rapidamente colocou no poder a dublê de apresentadora de TV e senadora Jeanine Añez, que se tornou a presidente “de facto” por um período relativamente curto de tempo.
É preciso que se diga que apesar das forças armadas bolivianas não terem tido participação direta no golpe palaciano que exilou Evo Morales, seus membros se envolveram na dura repressão realizada contra os segmentos da população que se insurgiu contra o golpe perpetrado contra Evo Morales. Aliás, foi a ineficácia da repressão e a forte resistência popular que garantiram as eleições presidenciais vencidas pelo atual presidente da Bolívia, o professor universitário e economista Luis Arce, do mesmo partido de Morales.
Aliás, há que se ressaltar que no caso do golpe contra Morales, a rápida reação dos sindicatos, movimentos sociais e da juventude boliviana foi quem impôs a realização de eleições presidenciais. Caso contrário até hoje Añes estaria presidindo a Bolívia em vez de estar presa.
Um último aspecto que penso merecer atenção é o incômodo que já parece grassar em parte considerável das elites brasileiras em relação ao comportamento do presidente Bolsonaro. É que esse incômodo não se dá pelos arroubos retóricos nem pela ameaça de se colocar em marcha um golpe de estado que a maioria sabe tem pouca chance de prosperar. A questão que parece realmente criar ansiedade é que aqui haja o mesmo tipo de reação popular que ocorreu na Bolívia onde os pobres tomaram o leme da situação política e impuserem a sua vontade. É que se isso acontecer no Brasil, a queda de Jair Bolsonaro seria a menor das consequências políticas. É que razões para uma revolta ir além muito além da remoção de um presidente visivelmente incapaz não faltam. Basta passar no supermercado ou no posto de gasolina para constatar isso.
Assim, esqueçam a Venezuela por algum tempo, e mirem-se na Bolívia, onde guardadas as devidas proporções, parecem haver as reais semelhanças. Mas mais do que nunca é importante lembrar o destino que foi reservado aos golpes em função da ampla resistência popular que ocorreu por lá.