Por Luciane Soares da Silva
Já faz algum tempo que tenho me dedicado a documentários sobre diferentes tipos de golpes. Tenho focado minha atenção nestes casos desde a bolha de 2008 na quebra do Lehman Brothers. Móveis jogados em frente as casas, desespero, centenas de pessoas vivendo em carros, hipotecando o que não tinham.
Recentemente Fraude e Privilégio chamou minha atenção. O uso de uma entrada “lateral” em Harvard para filhos de milionários jogava por terra qualquer ideal de meritocracia estadunidense. Enquanto milhares buscam entrar nestas Universidades famosas, o acesso tornava-se um negócio lucrativo e com a anuência de agentes da própria instituição. Outra série interessante Dirty Money (Na rota do dinheiro sujo) trata de casos como escândalos envolvendo a Wolkswagen nos Estados Unidos até a estranha relação entre HSBC e os cartéis de Juarez e Sinaloa no México. Sem falar na figura do presidente Trump e seus “Trump Towers” espalhados pelo mundo. Em todos estes casos o nível de corrupção corporativa é organizado ao ponto de manter grupos de advogados muito bem pagos trabalhando exatamente para atuar nas brechas do sistema.
Os casos recentes do Tinder, o Fyre Festival e a morte do CEO da Quadriga CX, Gerald Cotten, o bilionário da criptomoeda, merecem especial atenção por algumas inovações. Acredito que a representação de uma geração jovem, descolada, cosmopolita e consumista gera milhões de dólares de engajamento em mídias alternativas. Assim, as modelos que usaram suas redes sociais para declarar presença no Fyre Festival foram fundamentais para que outras milhares de pessoas comprassem os ingressos e financiassem o desastre. O festival deveria ser inesquecível, em um cenário luxuoso nas Bahamas. Tudo nas mãos de um jovem branco, ambicioso, capaz de vender bem suas ideias (e quando este perfil é diferente?) Billy McFarland. Atualmente ele cumpre pena em uma penitenciária federal no estado americano de Ohio. Tudo ali era uma mentira. Não haviam as tendas luxuosas, a gastronomia vibrante nem as aventuras prometidas. Apenas caos, chuva e perda de valores de até US$ 100 mil. Para os trabalhadores da ilha onde ocorreria o festival ficaram salários não pagos.
O escândalo envolvendo Gerald é muito mais complicado. Por envolver o mundo das criptomoedas, torna-se difícil explicar todos os mecanismos que funcionam neste mercado emergente e atraente. É importante informar que o nascimento da mais conhecida entre centenas de formas de criptomoedas é o bitcoin. E além da descentralização que envolve uma moeda virtual, a capacidade de verificação no sistema blockchain serviria para evitar golpes de emissão dupla. Esta cadeia de blocos emite informações codificadas que devem a cada verificação evitar fraudes. Mas como este jovem com ar despretensioso pôde ganhar, gastar, perder e morrer tão rapidamente e de forma misteriosa? Aqui temos o mesmo perfil do empresário do Fyre Festival. Branco, de estilo cosmopolita na geração dos nerds, Gerald ganhou fama com a Quadriga quando o bitcoin ganhou espaço na mídia. Mas até onde este mercado poderia crescer e como resgatar algo cuja existência no mundo virtual, não passava pelas tediosa e tradicionais redes monetárias representadas pelos bancos? O fato é que após uma queda dos ganhos, misteriosamente Gerald morreu na Índia levando consigo as economias de milhares de investidores. Literalmente, ele levou a senha para o caixão. Muitos pedem a exumação do corpo.
Vamos combinar que poucos entendem bem dos novos jargões de economia. Dois filmes são exemplares neste tema: a Grande Aposta de Adam McKay (2016), também diretor do recente Não Olhe para cima e A lavanderia de Steven Soderbergh de 2019. O primeiro filme trata de um investidor que “aposta contra o sistema” ao entender o que seria a quebradeira estadunidense de 2008. O segundo trata do famoso caso dos Panamá Papers e de como as formas de especulação impactam drasticamente a vida de pessoas comuns. Ambos estão mirando a complexidade de siglas, termos jurídicos, garantias mentirosas e crença em ganhos exorbitantes. Ou seja, a radiografia das complexas formas de golpe do século XXI. Ambos estão berrando que o estilo de vida esbanjado pelos americanos chega a um limite no qual os perdedores perdem não apenas dinheiro. Perdem dignidade, emprego, capacidade de renda, liberdade, saúde mental, acesso à educação e nesta roleta, a vida é um ativo calculado pelas grandes corporações.
No entanto, para uma geração narcisista de jovens investidores globais, ávidos por reafirmar sua sagacidade perante um mundo integrado pela tecnologia, Cotten, Mcfarland e Simon Leviev são estrelas desta nova constelação. No caso do golpista do Tinder, mesmo após a exposição do sofrimento causado pelos casos de estelionato, ele monetiza vídeos e sua aparição em festas é artigo desejado em boates da Filadélfia, México e Alemanha. Muito bem pago, mira o mercado do entretenimento. Nada melhor do que uma indústria como Hollywood para um golpista de tão alto nível. Nenhuma moral resiste ao espetáculo. Moral é um problema para classe trabalhadora não é mesmo? Ao menos é o que aprendi lendo os alemães.
Alerto neste texto o que realmente é novo no voo destes pássaros translúcidos. Os recursos gráficos, a simulação de voz, a modelagem facial, todos estes recursos tecnológicos são amplamente utilizados em redes sociais cotidianamente. Nada mais comum que a invenção de um perfil de instagram. Neste desejo de fuga da vida ordinária, marcada pela submissão e desigualdade, uma ideia de sorte grande pode vir pelo golpe do coração ou da criptomoeda. Ou ainda pela possibilidade de que a presença de celebridades torne seu perfil mais bombado junto a sua rede de amigos. E sua capacidade reside na manipulação precisa destes novos cenários. Ambiente tecnológico, deslocamento global e estilo desapegado.
Estranhamente é nesta sociedade do espetáculo que os mais crédulos aceitam a maçã. Sequestrados pela possibilidade de reconhecimento, enriquecimento, fama ou prazer, eles oferecem o pouco que herdaram ou construíram com seu trabalho para tubarões invisibilizados pelo que o sistema jurídico pode oferecer aos milionários. Nunca irem para prisão por muito tempo. É curioso participar de um golpe entrando pela porta da frente. Temos no comando deste mercado global, jovens tolos, ambiciosos narcisistas e capazes de despertar desejo. Não mais a dureza dos Rockefeller ou as histórias fabulosas sobre a família Rothschild.
O capital no século XXI nos apresenta a figura de Eike Batista como um investidor audacioso, filantropo dos esportes e da cultura. Preocupado com meio ambiente, investidor na melhoria da segurança pública. Um homem de faro e bom senso. Bem, devemos ou não mencionar o mapa herdado de seu pai? E suas falências acumuladas? Devemos reconhecer sua grande habilidade de vender sonhos. Talvez o mais rentável ativo do capitalismo atual: sonhos. Eike, aquele que colocou uma coleira em sua mulher na Sapucaí no ano de 1998. O visionário que iria transformar São João da Barra na Veneza tropical. E pasmem, contou um uma celeridade inédita da justiça local para uma vergonhosa desapropriação envolvendo em seu benefício, até o poder público. Em 2021, o intrépido empresário do grupo X ainda anunciava seu retorno ao Porto do Açu, recebendo homenagens na Câmara de Vereadores da cidade[1]. Ele faz parte deste time global que aplica golpes a luz do dia. Com a aquiescência de muitos, para miséria de milhares.
[1] https://www.jornalterceiravia.com.br/2021/04/20/eike-tem-novos-projetos-para-o-acu-e-sera-homenageado-pela-camara-de-sjb/
*Luciane Soares da Silva é é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce), e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).
Permita-me um adendo a filmografia: O Lobo de Wall Street, mas há outros, como Too Big To Fail, com William Hurt em atuação brilhante (mais uma) no papel de Henry Paulson, um dos falcões-czares da economia pré 2008. Só surpreende-se com estes casos quem não entende a própria lógica do capitalismo e sua estrutura voltada para uma quimera permanente: acumulação concentrada exponencial a partir a exploração consentida de grandes contingente de despossuídos, que ao final do processo, realocam esta montanha de bens e recursos expropriados em uma ciranda financeira, que nasceu com o argumento de não deixar “a água parada” (riqueza acumulada).
O problema é que este monstro (mercado de capitais), como no outro ótimo filme que poderia ser uma analogia do mercado (2001, Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick), quando HAL ganha vida e vontade, assume o controle de tudo, e passa a se reproduzir, prescindindo qualquer vínculo com a chamada produção “real”…
Há outras belas analogias metafóricas, como Matrix, The Walking Deads (sim, os pobres são os zumbis)… A vida, infelizmente, imita a vida…
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