A ciência brasileira está sob contínuo ataque

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Por Bernardo Galvão-Castro,  Renato Sérgio Balão Cordeiro e Samuel Goldenberg*

Apesar da resistência dos cientistas brasileiros, a ciência no Brasil tem sido prejudicada por medidas implementadas pelo governo federal nos últimos 3 anos, como cortes crescentes no orçamento, ataques à autonomia das universidades e uma política geral de negação da ciência. Um recente corte de US$ 110 milhões no orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, além da retenção de US$ 490 milhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, não apenas representa um enorme impedimento para a realização de pesquisas em universidades e institutos de pesquisa, mas também prejudica o desenvolvimento científico futuro de um país.

As consequências incluem uma fuga de cérebros de cientistas e desmoralização e descontentamento entre os pesquisadores científicos brasileiros. Além disso, os cientistas correm o risco de sanções indiretas se suas pesquisas contradizerem as posições sustentadas pelo governo Bolsonaro, como afirmar que a floresta amazônica não está queimando ou que a cloroquina ou a hidroxicloroquina podem ser usadas para tratar COVID-19 com segurança e eficácia.

A recente demonstração de desrespeito aos cientistas foi um decreto federal, emitido em 5 de novembro de 2021, revogando o prêmio da Ordem Nacional do Mérito Científico concedido a dois cientistas, Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinicius Guimarães de Lacerda.

Em resposta a essa revogação, 200 ganhadores de prêmios anteriores escreveram uma carta expressando sua objeção, e 23 outros cientistas brasileiros atualmente indicados para este prêmio retiraram seus nomes em solidariedade a seus colegas injustamente desacreditados.

Esse ato também desencadeou uma reação imediata de várias sociedades acadêmicas e científicas brasileiras, incluindo a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No início de 2020, pesquisa de Borba e colegasmostraram que doses mais elevadas de cloroquina não devem ser recomendadas para o tratamento de COVID-19 grave.

Benzaken era o ex-diretor do Departamento Brasileiro de DST / HIV-Aids e Hepatites Virais da Secretaria de Vigilância em Saúde (Ministério da Saúde), que foi demitido em janeiro de 2019.

Os ataques perpetrados pela atual administração federal não se limitam à ciência e aos cientistas e afetam a educação, a saúde pública, o meio ambiente e os programas culturais.,,

Esperamos que o Brasil não continue a se pautar pela negação e evite a degradação da ciência.

Todos os autores são pesquisadores eméritos da Fundação Oswaldo Cruz. Declaramos não haver interesses conflitantes*.

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Este texto foi escrito foi inicialmente em inglês e publicado pela revista “Lancet” [Aqui!].

Sobrevivendo como um jovem pesquisador no Brasil

“O investimento na formação de cientistas é fundamental para gerar ciência de ponta para o desenvolvimento e o bem-estar da sociedade”, escrevem pesquisadores brasileiros* em artigo para a Science

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Nos últimos anos, a ciência brasileira tem sido alvo de repetidos cortes orçamentários (1-5). Em outubro de 2021 mais uma redução foi anunciada: um corte de 87% no financiamento voltado para propostas cientificas (4). Esses cortes ameaçam projetos científicos e tecnológicos que estão em andamento, como também projetos futuros, o que inclui o financiamento de bolsas de estudo para jovens pesquisadores que estão no início da carreira científica. Apesar do precário orçamento voltado para a pesquisa quando comparado a países desenvolvidos, em 2020, o Brasil ocupou o 11o lugar entre as nações que produziram conhecimento científico voltados para enfrentar a pandemia de COVID-19 (6). A contribuição significativa do Brasil é impulsionada principalmente por pesquisadores em início de carreira (5), e sem um investimento apropriado, esses jovens cientistas não terão outra opção senão abandonar a carreira científica ou deixar o país (5).

No Brasil, a maior parte dos programas de pós-graduação exigem dedicação exclusiva – a bolsa de estudos não pode ser acumulada com outras fontes de renda. Jovens pesquisadores em programas de mestrado e doutorado ganham, respectivamente, uma bolsa de estudos de R$ 1.500 e R$2.200 mensais (7), e esses valores não são ajustados desde 2013 (7,8). Enquanto isso, a alta dos preços de produtos e serviços diminuiu o poder de compra das bolsas em mais de 60% (9). A maioria dos estudantes depende exclusivamente dessa renda mensal para manter sua alimentação, saúde, moradia, vestimenta e transporte. Em muitos casos, ainda dão suporte no sustento da família.

O investimento na formação de cientistas é fundamental para gerar ciência de ponta para o desenvolvimento e o bem-estar da sociedade (10). Portanto, como jovens pesquisadores brasileiros, nós exigimos suporte financeiro adequado dos tomadores de decisão do nosso país. Se o Brasil não reavaliar imediatamente seu orçamento para ciência e tecnologia, o país corre o risco de perder ou alienar toda uma geração de cientistas brasileiros.

Autores

  • Celso H. L. Silva Junior, pesquisador do Tropical Ecosystems and Environmental Sciences Laboratory, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Universidade Estadual do Maranhão e do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group
  • Yhasmin M. Moura, pesquisadora do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group, do Institute of Geography and Geoecology do Karlsruhe Institute of Technology (Alemanha) e do Centre for Landscape and Climate Research da University of Leicester (Reino Unido)
  • Ana C. M. Pessôa, pesquisadora do Tropical Ecosystems and Environmental Sciences Laboratory e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
  • Diego P.Trevisan, pesquisador do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group, do Department of Geography da University of Manchester (Reino Unido) e do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Carlos
  • Flávia S. Mendes, pesquisadora do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group
  • João B. C. Reis, pesquisador do Tropical Ecosystems and Environmental Sciences Laboratory e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais
  • Michelle C. A. Picoli, pesquisadora do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group, Earth and Life Institute e do Georges Lemaître Centre for Earth and Climate Research da Université Catholique de Louvain (Bélgica)
  • Natalia C. Wiederkehr, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group
  • Nathália S. Carvalho, pesquisadora do Tropical Ecosystems and Environmental Sciences Laboratory
  • Ricardo Dalagnol, pesquisador do Tropical Ecosystems and Environmental Sciences Laboratory, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Department of Geography da University of Manchester (Reino Unido)
  • Tahisa N. Kuck, pesquisador do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group e do Instituto de Estudos Avançados de São José dos Campos
  • Thais M. Rosan, pesquisadora do College of Life and Environmental Sciences da University of Exeter (Reino Unido)
  • Thiago S. F. Silva, pesquisador do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group e do Biological and Environmental Sciences da University of Stirling (Reino Unido)
  • Veraldo Liesenberg, pesquisador do Departamento de Gestão Ambiental Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
  • Polyanna C. Bispo, pesquisadora do Remote Sensing Applied to Tropical Environments Group e do Department of Geography da University of Manchester (Reino Unido)

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Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pela revista “Science” [Aqui!].

Cientistas brasileiros em estado de choque após cortes orçamentários feitos por Jair Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro aprovou um projeto de lei que canaliza dinheiro da ciência para outras áreas do governo, frustrando propostas de pesquisa e frustrando esperanças.

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O presidente brasileiro Jair Bolsonaro, mostrado aqui em uma cerimônia nacional, assinou recentemente um projeto de lei enviando dinheiro destinado à ciência para outros departamentos do governo. Crédito: Evaristo Sa / AFP / Getty

Por Meghie Rodrigues para a Nature

A comunidade científica brasileira está chocada com mais um golpe no financiamento da pesquisa. Em 15 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro assinou um projeto de lei enviando 600 milhões de reais (US $ 106,3 milhões) destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação do país a vários outros setores do governo. A promessa do dinheiro no início do ano fez com que a principal agência de financiamento da ciência do Brasil iniciasse o seu primeiro ‘Edital Universal’ para pedidos de bolsas de pesquisa desde 2018. Agora, as 8.000 propostas de pesquisa enviadas enfrentam um futuro incerto.

Anos de cortes de fundos têm sido uma pílula difícil de engolir para os pesquisadores no Brasil. As principais agências e fundos de ciência do país receberam apenas 4,4 bilhões de reais no ano passado, cerca de um terço do que receberam em 2015, quando o financiamento chegou a 14 bilhões de reais. Corrigido pela inflação, este é o menor investimento em pesquisa desde 2004.

Os pesquisadores se sentem desmoralizados com a perda de fundos no último minuto prometida este ano. “A situação toda é deprimente”, diz Patricia Endo, cientista da computação da Universidade de Pernambuco, em Caruaru, que faz parte de uma equipe que apresentou à Chamada Universal uma proposta de aplicação de inteligência artificial no estudo da saúde materna. “Se não fosse pela minha família, eu já teria deixado o país.”

Um medidor de suporte

O dinheiro prometido para pesquisa viria de um fundo especial para inovação industrial e pesquisa, denominado Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Os impostos cobrados de setores industriais, como biotecnologia e energia, apoiam principalmente o fundo. A cada ano, uma parte dos recursos do FNDCT é contabilizada no orçamento de ciências, diz Paulo Almeida, diretor-executivo da organização sem fins lucrativos Science Question Institute de São Paulo. “Mas os critérios de alocação política o mantêm praticamente congelado, distribuído apenas com a aprovação do Congresso de projetos de lei específicos para liberar os fundos”, diz ele.

Neste ano, cerca de 690 milhões de reais teriam sido adicionados ao financiamento da ciência, dos quais 655 milhões teriam vindo do FNDCT para apoiar os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia e programas como o Edital Universal.

No início de outubro, no entanto, o Ministério da Economia pediu uma redistribuição do dinheiro prometido. Em vez de ir para ciência e tecnologia, o ministério propôs que fosse distribuído entre departamentos como infraestrutura, agricultura, saúde e educação e retirado de um superávit financeiro do governo em 2020. O Ministério da Ciência e Tecnologia receberá apenas pouco mais de 7 milhões de reais, e a Comissão Nacional de Energia Nuclear, mais de 82 milhões de reais, para custear a produção de radiofármacos. Esses medicamentos são usados ​​no tratamento de pessoas com câncer e sua produção no Brasil foi paralisada no mês passado por falta de financiamento.

Para o ex-ministro da Ciência Sergio Rezende, o valor que o governo libera do FNDCT a cada ano é um termômetro medindo seu apoio à ciência. “A ciência não tem valor para o governo atual”, diz ele.

Afundando

O maior soco no estômago para os pesquisadores é a incerteza que cerca  o Edital Universal, que financia pesquisas em áreas que vão da ciência às humanidades. Originalmente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), maior agência de fomento à ciência do Brasil, planejava usar 200 milhões de reais do dinheiro prometido para conceder bolsas a pesquisadores por meio da chamada. O CNPq não publicava um Edital Universal desde 2018 devido à falta de fundos.

Milhares de propostas de pesquisa envolvendo mais de 30.000 cientistas chegaram quando a chamada deste ano foi aberta. Agora, os cientistas aguardam os resultados – que serão divulgados em novembro – sem saber se há possibilidade de financiamento.

“Passei um tempo tentando deixar a notícia afundar”, diz Luisa Viegas, bióloga da Universidade Federal de Alagoas, em Maceió, que propôs um projeto de três anos para estudar como as mudanças climáticas ameaçam a existência de anfíbios e répteis em Brasil.

“Mobilizamos muito esforço e energia para montar o projeto”, diz ela, lembrando que o projeto envolveria 30 pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos. “Agora, estamos pensando em enviar para financiadores internacionais, mas não será tão fácil porque é realmente específico para o Brasil.”

Questionado pela Nature por que priorizou outras áreas em detrimento da ciência para receber os recursos, o ministério da Economia do Brasil respondeu por e-mail que não era o único responsável pela mudança. “A mudança foi decidida pelo governo, com o apoio da Diretoria de Execução Orçamentária.”

Para o físico Ildeu Moreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o redirecionamento dos recursos é a mais recente manobra anticientífica do governo Bolsonaro. “É um desmantelamento deliberado da ciência”, diz ele.

Mas alguns não perderam as esperanças. Evaldo Vilela, presidente do CNPq, afirma que está em andamento um novo projeto de lei que tentará recuperar o financiamento perdido. Recebeu apoio de políticos de vários partidos e, se for aprovado rapidamente, diz ele, “ainda podemos ter o Edital Universal este ano”.

doi: https://doi.org/10.1038/d41586-021-02886-9

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Este texto foi inicialmente escrito em inglês e publicado pela Nature [Aqui!].

Defender a Capes, mas sem idealizar o que ela tem sido

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Por Luís Felipe Miguel

Baixou um conselheiro Acácio em mim e eu formulei a seguinte frase: o problema do retrocesso é que ele impede o avanço.

Vale para muitas coisas, mas eu estava pensando no manifesto em defesa da Capes, lançando anteontem por representantes da maior parte das áreas de conhecimento da própria agência.

A Capes e todo o sistema brasileiro de pós-graduação, do qual ela é um pilar, estão sendo ameaçados pelo obscurantismo militante do atual governo. Entendo a necessidade de defendê-los e me solidarizo com o manifesto.

No entanto, essa necessidade, imperiosa, tem nos levado a silenciar sobre os graves problemas da agência. É natural: é difícil defender criticando. Abre flancos. Fragiliza nossa posição.

No caso do manifesto, alcança-se um tom triunfalista que, a mim, incomodou. Não contente de dizer que “o sucesso da Capes se deve a um modelo capilarizado de operação que sempre valorizou a contribuição de toda a comunidade científica do país”, conclui: “Este histórico é brilhantemente capturado no lema informal, porém amplamente adotado, que afirma que ‘a Capes somos nós’!”

Gente, estou por fora mesmo. Faz quase 30 anos que caí nessa vida e nunca tinha ouvido esse lema “amplamente adotado”.

O fato é que, longe de valorizar a contribuição de toda a comunidade científica, a Capes aparece como um poder disciplinador externo, que é necessário agradar a todo custo.

O “conceito Capes” define a vida e a morte das pós-graduações. Nosso esforço não é voltado para produzir mais conhecimento, de maior qualidade ou com maior impacto social, mas para “aumentar a nota na Capes”.

Esse é um efeito colateral de todo processo de ranqueamento, mas que é agravado em casos como o da Capes, em que há uma sensibilidade muito baixa às especificidades das diversas situações.

Vou repetir, quase que palavra por palavra, o que escrevi aqui faz uns anos. Por sua falta de sensibilidade às diferenças, o sistema Capes é enviesado na direção, por um lado, das ciências naturais e, por outro, do Sudeste.

Por exemplo, as sucessivas reduções do tempo do mestrado, fixado enfim em quatro semestres, enfrentou sempre a oposição quase unânime das humanidades. Nelas, o tempo reduzido leva a um rebaixamento grave do nível de treinamento que o mestrado deveria proporcionar. Mas hoje todos nós aceitamos o prazo diminuído como se fosse um dos mandamentos sagrados e empunhamos o chicote para obrigar nossos estudantes a cumpri-lo.

Afinal, prazos de defesa maiores rebaixam “a nota na Capes”. Uma dissertação meia boca em 24 meses é tudo o que pedimos.

Outro exemplo: os custos de deslocamento dos programas mais afastados dos grandes centros (no tempo em que as pessoas podiam sair de casa) não entram na conta de financiamento da pós-graduação.

Mais um exemplo: o fato de que um programa seja o único espaço de pesquisa e de pós-graduação em sua disciplina em toda uma região tem peso quase nulo na avaliação. Para manter a nota da Capes, seus pesquisadores devem virar as costas para onde estão e buscar obsessivamente publicar nas revistas “bem ranqueadas”, quase todas do Centro-Sul ou estrangeiras.

O pesquisador é visto como uma máquina de produzir papers. Um artigo obscuro publicado numa revista bem classificada, que será lido, segundo a lenda, por menos de três pessoas em média, conta no currículo. O diálogo com a sociedade civil e com movimentos sociais não vale nada. A ideia de que o conhecimento que produzimos deve servir à sociedade que nos financia é, quando muito, um slogan desprovido de sentido.

Há toda uma indústria de publicação voltada a “pontuar no Lattes/pontuar na Capes”. Editoras mandam spam para professores anunciando que publicando com elas você “pontua no Qualis-Capes”. Quer dizer que a editora cumpre os critérios para credenciar seus livros na avaliação, ainda que todo mundo saiba que basta pagar a tarifa correspondente para publicar qualquer coisa. O mesmo para revistas acadêmicas, todas invariavelmente denominadas “International Journal” disso ou daquilo, que prometem “avaliar por pares” e publicar seu paper em menos de uma semana – também cobrando uma taxa módica.

Para não me estender demais, cito ainda o fetiche da “internacionalização” a todo custo, que afasta ainda mais a pós-graduação do mundo que a cerca. Muitas vezes, ela premia a inserção subordinada em redes de pesquisa dos países centrais, cabendo a nós pouco mais do que a coleta de dados.

Ao longo dos anos, muitas batalhas foram travadas dentro da Capes para mudar essa situação. Com inúmeras derrotas e poucas, mas relevantes, vitórias.

O governo quer destruir a Capes como parte do processo de destruição da universidade e da pesquisa no Brasil. O manifesto dos representantes de área lista um conjunto expressivo de medidas, tomadas sem qualquer tipo de consulta, que revelam a disposição para fazer terra arrasada do sistema nacional de pós-graduação.

É uma expressão da cognofobia agressiva do bolsonarismo.

Precisamos lutar para impedir que isso ocorra. Precisamos preservar a Capes. Mas para continuar batalhando para transformá-la, não para idealizar o que ela tem sido.

*Luís Felipe Miguel é Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019).

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Este artigo foi originalmente publicado no perfil de Luís Felipe Miguel no Facebook [Aqui!].

Ciência brasileira na fogueira: “despetização” chega à concessão de bolsas de pós-graduação no exterior

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Gravura reconstruindo a morte por fogo do frade dominicano italiano Giordano Bruno, que foi uma mente brilhante, capaz de desafiar os dogmas da igreja do seu tempo, sendo um exemplo da “despetização” promovida pela Inquisição na Itália.

Enquanto uma reportagem assinada pela jornalista Talita Fernandes e publicada pelo jornal “Folha de São Paulo” mostrava que a “despetização” promovida pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni [1], causou uma completa desarticulação de todo o corpo técnico daquela pasta, atrasando processos importantes para o próprio governo, uma nota na coluna do jornalista Lauro Jardim denunciava que este processo de caça ideológica chegou ao sistema nacional de ciência e tecnologia (ver imagem abaixo).

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A primeira coisa que precisa ser dita é que nos últimos anos o  Brasil, graças ao amadurecimento de seu próprio sistema nacional de pós-graduação, passou a tornar rara a conessão de bolsas de pós-graduação no exterior.  Tal redução teve como consequência o aumento exponencial da dificuldade de se obter este tipo de investimento estatal no que deveriam ser nossas melhores esperanças de futuros líderes da pesquisa nacional.

Além disso, é preciso que se diga que o próprio de concessão de bolsas passa por crivos altamente rígidos nas agências de fomento, sendo as principais o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Nestas agências o processo de concessão passa por uma sequência de análises técnicas e de mérito científico, tornando menos provável que o apadrinhamento político ocorra (ainda que não seja impossível).

Assim, o que está por detrás do anúncio feito por Lauro Jardim em sua coluna é mais um dos muitos movimentos que estão sendo feitos para abafar a produção de conhecimento científico autônomo no  Brasil.  E é preciso que esse movimento que está sendo feito faz sentido para aqueles que querem impor uma forma de capitalismo ainda mais dependente e excludente em nosso país. É que produção científica que mereça essa denominação não serve aos interesses dos esbirros que, por algum desastre do destino político de uma dada nação, acabam por se assenhorar das estruturas de poder em uma determinada conjuntura histórica. A ciência deve servir sempre aos interesses estratégicos do desenvolvimento nacional e não a esses eventuais senhores da máquina de Estado.

Um elemento colateral, mas que deve ser ressaltado, é sobre quem seriam os “premiados” com bolsas no exterior depois da caça aos intelectuais petistas. Como alguém que obteve uma bolsas de doutorado do CNPq no início da década de 1990 e pode obter com ela um título de doutor numa boa universidade estadunidense, sou testemunha de que apadrinhamento ideológico é a última coisa que conta para quem recebe nossos bolsistas. O que conta é  capacidade de postulante ao título de responder aos rígidos padrões de cobrança acadêmica que são aplicados nas melhores universidades do mundo.  Das duas uma: ou os candidatos que passarem pelo exame ideológico são exemplares ofuscados da capacidade intelectual da direita brasileira ou os que forem aquinhoados não serão enviados para universidades consideradas de excelência.

Inobstante aos critérios de pureza ideológica (de direita) que venham a ser aplicados para “despetizar” o sistema de concessão de bolsas de pós-graduação no exterior, é essencial que as sociedades científicas (a começar pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)) comecem um vigoroso processo para repelir qualquer tentativa de diminuir a autonomia das agência de fomento de selecionar os melhores candidatos, independente de sua orientação ideológica e objeto de estudo. Caberá ainda aos pesquisadores já estabelecidos organizar a resistência pela base dentro de suas instituições de ensino e pesquisa. Sem isto, estaremos fadados a um profundo retrocesso nos parcos progressos que foram alcançados no sentido do acesso à pós-graduação no Brasil.

Há que se lembrar  aindaque enquanto se promove uma tentativa de “McCarthyzação” [2] da ciência brasileira, os chineses (que há poucas décadas estavam atrás do Brasil em termos de sistema nacional de pós-graduação) depois de se tornaram os líderes mundiais de produção de artigos cientícos, acabam de lograr o feito de pousar de forma intacta uma sonda no lado escuro da Lua.

Por fim, se confirmada mais essa estripulia de início de governo, o que certamente teremos é a migração de nossos melhores e mais promissores quadros acadêmicos para outros países onde a capacidade de produção de conhecimento não se mede pelo metro ideológico.  Aliás, quem visitar as bibliotecas das melhores universidades estadunidenses poderá constatar que Karl Marx e Paulo Freire estão entre os autores mais acessados pelos estudantes de lá. É que, ao contrário do que está acontecendo aqui, esses dois autores são considerados por quem está no poder como essenciais à construção de novos paradigmas no conhecimento.

Professora da PUC/RS reflete sobre os elementos estruturais para explicar sua demissão após anos de dedicação ao avanço da ciência

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Se existe um espaço social onde as dramáticas mudanças que vão ocorrer no mundo do trabalho no Brasil por força das contra-reformas impostas pelo governo “de facto”  de Michel Temer é, contraditoriamente, aquele formado pelas universidades. Ainda que não seja possível dizer que ninguém está discutindo como essas mudanças vão afetar o esforço que é realizado cotidianamente nas melhores universidades brasileiras para inseri-las nos principais rankings internacionais, a verdade é que a maioria dos professores universitários continua acreditando que o problema é apenas dos descamisados.

A carta pública emitida pela professora doutora Isabel Cristina de Moura Carvalho, e que segue logo abaixo, é um exemplo objetivo de que a precarização do mundo do trabalho vai atingir a todos, inclusive aqueles dotados de ainda raros títulos de doutor. E mais ainda, vai atingir inclusive aqueles que galgaram os mais altos postos da ciência brasileira, como é o caso da professora Isabel Carvalho

Mas usando de uma tragédia pessoal, como intelectual que já comprovou ser ao longo de sua trajetória na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), a carta/testemunho da professora Isabel Carvalho vai além dela mesma e do sentimento de injustiça que transparece no que ela escreve. O fato é que ela nos oferece uma reflexão mais abrangente do que está se fazendo com o Brasil quando são cassados direitos trabalhistas de todos os trabalhadores, independente do grau de formação e tempo de dedicação às empresas onde trabalham.  

Além disso,  como bem nota, a professora Isabel Carvalho, no caso do sistema universitário brasileiro, o que está sendo desmantelado não é pouco. Seja se negando verbas que são despejadas para comprar deputados, ou demitindo docentes sob desculpas estapafúrdias, o que está sendo executado é o mínimo de projeto de Nação que este país tão desigual já logrou estabelecer.

“Reflexões sobre os sentidos ético-políticos de uma demissão

Por Isabel Cristina de Moura Carvalho, Pesquisadora CNPq,  https://www.researchgate.net/profile/Isabel_Carvalho17,  isacrismoura@gmail.com

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Este ano finalizei 04 anos de coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS, nota 06, onde administrei recursos do Programa de Excelência, da CAPES, o PROEX. Em 12/07, dei o último clic no botão enviar na Plataforma Sucupira, encerrando a prestação de contas do quadriênio. No mesmo dia fechei as notas das duas disciplinas que ministrei este semestre na graduação e de uma na Pós-Graduação. Respirei aliviada.

Em 13/07, recebi a notícia de minha demissão: “Você não vai continuar na PUCRS porque não há carga horária na graduação para você”. Isto me causou profunda tristeza. Sinto que o que está sendo rompido, neste destrato, sob a alegação de uma contabilidade administrativa de horas aulas na graduação, é o compromisso institucional com o projeto de excelência acadêmica no qual muitos professores, como eu, apostamos. A universidade não pertence exclusivamente aos seus administradores. Ela é feita de cada um de nós ­– professores, pesquisadores, técnicos administrativos e estudantes – que empenhamos nossas vidas num projeto comum. É deste lugar que me pergunto: que universidade é esta onde trabalhei a última década?

Tenho a consciência tranquila de ter dado o meu melhor e contribuído efetivamente para a excelência acadêmica da PUCRS. No último quadriênio, o Programa que coordenei apresentou indicadores de produção e internacionalização para manter ou aumentar sua nota na atual avaliação da CAPES. A função de coordenadora do Programa não me impediu de estar em sala de aula na graduação e Pós-Graduação. Sou líder do Grupo de Pesquisa Interinstitucional no CNPq (SobreNaturezas) e participo de outros dois Grupos, voltados para o tema da Formação e Regulação da Ética na Pesquisa. Sou membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão de Gestão Ambiental (CGA). Participo ativamente das atividades do Instituto do Meio Ambiente. Estava em processo de credenciamento num segundo Programa (Ciências Sociais) na Escola de Humanidades.

Quanto à produção científica e à formação de pesquisadores, nos 09 anos que estive na PUCRS, publiquei 26 artigos em periódicos qualificados, 41 capítulos de livros e organizei 09 coletâneas. Orientei 09 mestrandos, 10 doutorandos, 04 pós-doutorandos PNPD/CAPES, 08 bolsistas de IC. Atualmente tenho 06 orientações em curso. A minha produção foi avaliada e a bolsa de Produtividade do CNPq reclassificada de nível 02 para nível 01. Meus projetos de pesquisa foram contemplados em 01 Edital Ciências Humanas e 02 Editais Universais. O último deles, Universal/CNPq 403008/2016-6 01/2016 – Faixa C – até R$ 120.000,00, foi implementado esta semana.

Para além da universidade, tenho mantido atuação nacional e internacional. Faço parte da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) onde atualmente assessoro a Diretoria no tema da ética na pesquisa. Coordenei recentemente um convênio internacional com a Universidade de Paris V, com a realização de um seminário em Paris que envolveu vários colegas e alunos da PUCRS e resultou na organização de um livro, publicado na França (Hermes Editora, 2017). Este ano fui aceita como professora convidada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e tive meu projeto de Estágio Sênior para esta inserção internacional aprovado pelo CNPq. O pedido de afastamento da PUCRS, para realização desta atividade, foi respondido com a demissão.

Este acontecimento pessoal, no momento histórico em que vivemos, anuncia para nós, pesquisadores, o desinvestimento na ciência e o esvaziamento da vida intelectual. A dor não é apenas pessoal mas também ético-política. O que está sendo descartado sumariamente é um projeto científico e acadêmico, no qual tantos de nós acreditamos e investimos nossas vidas, dando o melhor de nós.

Porto Alegre, 14 de julho de 2017″

PEC condena país a “atraso intelectual de 20 anos”, diz cientista da USP

Por Gabriel Francisco Ribeiro,  do UOL, em São Paulo

Divulgação/Arquivo Pessoal

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Renomado cientista brasileiro, Paulo Artaxo vê futuro negro para a área com a PEC 241

A aprovação em primeiro turno na Câmara da PEC 241 (Proposta de Emenda à Constituição), que visa limitar gastos públicos em áreas como saúde e educação, gera preocupação também em renomados cientistas brasileiros. Para a classe, o projeto afetará a produção intelectual nacional.

Um dos críticos é Paulo Artaxo, físico da Universidade de São Paulo (USP) e membro do painel climático da ONU que foi um dos três brasileiros presentes em lista da Reuters de 2015 dos cientistas mais influentes do mundo. Artaxo, que tem como campo de estudo a Amazônia e mudanças climáticas na região, diz que enxerga um futuro “bastante negro” para a ciência no Brasil em caso de aprovação da emenda.

Quando você não investe nas universidades em 20 anos está condenando o país a um atraso intelectual muito grande em relação ao resto do mundo. Todo brasileiro deve ficar muito preocupado com esta questão”

Paulo Artaxo, físico da USP e um dos cientistas mais influentes do mundo

A preocupação de Artaxo vai além. O pesquisador nacional lembra que a diminuição dos recursos é só um dos aspectos que envolve a PEC. O pior, para ele, é a filosofia do governo Temer para a área.

“É toda uma filosofia do atual governo de não valorizar a educação desde os níveis mais fundamentais, de não valorizar o desenvolvimento científico e tecnológico. Isto é uma questão estratégica e fundamental para o país que o atual governo não só não quer apoiar nos próximos anos como também está alterando a Constituição para um atraso nos próximos 20 anos. É muito sério para as gerações futuras”, opina Artaxo.

Para o cientista, o Brasil conseguiu uma posição de liderança no cenário mundial em várias áreas da ciência graças aos investimentos feitos na última década, apesar de ter sofrido corte de verba nos últimos anos com a crise. Mas, para Artaxo, nada se compara com o que a PEC pode provocar – o físico está na Suécia em um novo projeto e diz que a emenda é criticada até por lá.

FONTE: http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2016/10/12/pec-condena-pais-a-atraso-intelectual-de-20-anos-diz-cientista-da-usp.htm