Ciência brasileira na fogueira: “despetização” chega à concessão de bolsas de pós-graduação no exterior

giordano bruno

Gravura reconstruindo a morte por fogo do frade dominicano italiano Giordano Bruno, que foi uma mente brilhante, capaz de desafiar os dogmas da igreja do seu tempo, sendo um exemplo da “despetização” promovida pela Inquisição na Itália.

Enquanto uma reportagem assinada pela jornalista Talita Fernandes e publicada pelo jornal “Folha de São Paulo” mostrava que a “despetização” promovida pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni [1], causou uma completa desarticulação de todo o corpo técnico daquela pasta, atrasando processos importantes para o próprio governo, uma nota na coluna do jornalista Lauro Jardim denunciava que este processo de caça ideológica chegou ao sistema nacional de ciência e tecnologia (ver imagem abaixo).

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A primeira coisa que precisa ser dita é que nos últimos anos o  Brasil, graças ao amadurecimento de seu próprio sistema nacional de pós-graduação, passou a tornar rara a conessão de bolsas de pós-graduação no exterior.  Tal redução teve como consequência o aumento exponencial da dificuldade de se obter este tipo de investimento estatal no que deveriam ser nossas melhores esperanças de futuros líderes da pesquisa nacional.

Além disso, é preciso que se diga que o próprio de concessão de bolsas passa por crivos altamente rígidos nas agências de fomento, sendo as principais o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Nestas agências o processo de concessão passa por uma sequência de análises técnicas e de mérito científico, tornando menos provável que o apadrinhamento político ocorra (ainda que não seja impossível).

Assim, o que está por detrás do anúncio feito por Lauro Jardim em sua coluna é mais um dos muitos movimentos que estão sendo feitos para abafar a produção de conhecimento científico autônomo no  Brasil.  E é preciso que esse movimento que está sendo feito faz sentido para aqueles que querem impor uma forma de capitalismo ainda mais dependente e excludente em nosso país. É que produção científica que mereça essa denominação não serve aos interesses dos esbirros que, por algum desastre do destino político de uma dada nação, acabam por se assenhorar das estruturas de poder em uma determinada conjuntura histórica. A ciência deve servir sempre aos interesses estratégicos do desenvolvimento nacional e não a esses eventuais senhores da máquina de Estado.

Um elemento colateral, mas que deve ser ressaltado, é sobre quem seriam os “premiados” com bolsas no exterior depois da caça aos intelectuais petistas. Como alguém que obteve uma bolsas de doutorado do CNPq no início da década de 1990 e pode obter com ela um título de doutor numa boa universidade estadunidense, sou testemunha de que apadrinhamento ideológico é a última coisa que conta para quem recebe nossos bolsistas. O que conta é  capacidade de postulante ao título de responder aos rígidos padrões de cobrança acadêmica que são aplicados nas melhores universidades do mundo.  Das duas uma: ou os candidatos que passarem pelo exame ideológico são exemplares ofuscados da capacidade intelectual da direita brasileira ou os que forem aquinhoados não serão enviados para universidades consideradas de excelência.

Inobstante aos critérios de pureza ideológica (de direita) que venham a ser aplicados para “despetizar” o sistema de concessão de bolsas de pós-graduação no exterior, é essencial que as sociedades científicas (a começar pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)) comecem um vigoroso processo para repelir qualquer tentativa de diminuir a autonomia das agência de fomento de selecionar os melhores candidatos, independente de sua orientação ideológica e objeto de estudo. Caberá ainda aos pesquisadores já estabelecidos organizar a resistência pela base dentro de suas instituições de ensino e pesquisa. Sem isto, estaremos fadados a um profundo retrocesso nos parcos progressos que foram alcançados no sentido do acesso à pós-graduação no Brasil.

Há que se lembrar  aindaque enquanto se promove uma tentativa de “McCarthyzação” [2] da ciência brasileira, os chineses (que há poucas décadas estavam atrás do Brasil em termos de sistema nacional de pós-graduação) depois de se tornaram os líderes mundiais de produção de artigos cientícos, acabam de lograr o feito de pousar de forma intacta uma sonda no lado escuro da Lua.

Por fim, se confirmada mais essa estripulia de início de governo, o que certamente teremos é a migração de nossos melhores e mais promissores quadros acadêmicos para outros países onde a capacidade de produção de conhecimento não se mede pelo metro ideológico.  Aliás, quem visitar as bibliotecas das melhores universidades estadunidenses poderá constatar que Karl Marx e Paulo Freire estão entre os autores mais acessados pelos estudantes de lá. É que, ao contrário do que está acontecendo aqui, esses dois autores são considerados por quem está no poder como essenciais à construção de novos paradigmas no conhecimento.

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