Por Luís Felipe Miguel
Baixou um conselheiro Acácio em mim e eu formulei a seguinte frase: o problema do retrocesso é que ele impede o avanço.
Vale para muitas coisas, mas eu estava pensando no manifesto em defesa da Capes, lançando anteontem por representantes da maior parte das áreas de conhecimento da própria agência.
A Capes e todo o sistema brasileiro de pós-graduação, do qual ela é um pilar, estão sendo ameaçados pelo obscurantismo militante do atual governo. Entendo a necessidade de defendê-los e me solidarizo com o manifesto.
No entanto, essa necessidade, imperiosa, tem nos levado a silenciar sobre os graves problemas da agência. É natural: é difícil defender criticando. Abre flancos. Fragiliza nossa posição.
No caso do manifesto, alcança-se um tom triunfalista que, a mim, incomodou. Não contente de dizer que “o sucesso da Capes se deve a um modelo capilarizado de operação que sempre valorizou a contribuição de toda a comunidade científica do país”, conclui: “Este histórico é brilhantemente capturado no lema informal, porém amplamente adotado, que afirma que ‘a Capes somos nós’!”
Gente, estou por fora mesmo. Faz quase 30 anos que caí nessa vida e nunca tinha ouvido esse lema “amplamente adotado”.
O fato é que, longe de valorizar a contribuição de toda a comunidade científica, a Capes aparece como um poder disciplinador externo, que é necessário agradar a todo custo.
O “conceito Capes” define a vida e a morte das pós-graduações. Nosso esforço não é voltado para produzir mais conhecimento, de maior qualidade ou com maior impacto social, mas para “aumentar a nota na Capes”.
Esse é um efeito colateral de todo processo de ranqueamento, mas que é agravado em casos como o da Capes, em que há uma sensibilidade muito baixa às especificidades das diversas situações.
Vou repetir, quase que palavra por palavra, o que escrevi aqui faz uns anos. Por sua falta de sensibilidade às diferenças, o sistema Capes é enviesado na direção, por um lado, das ciências naturais e, por outro, do Sudeste.
Por exemplo, as sucessivas reduções do tempo do mestrado, fixado enfim em quatro semestres, enfrentou sempre a oposição quase unânime das humanidades. Nelas, o tempo reduzido leva a um rebaixamento grave do nível de treinamento que o mestrado deveria proporcionar. Mas hoje todos nós aceitamos o prazo diminuído como se fosse um dos mandamentos sagrados e empunhamos o chicote para obrigar nossos estudantes a cumpri-lo.
Afinal, prazos de defesa maiores rebaixam “a nota na Capes”. Uma dissertação meia boca em 24 meses é tudo o que pedimos.
Outro exemplo: os custos de deslocamento dos programas mais afastados dos grandes centros (no tempo em que as pessoas podiam sair de casa) não entram na conta de financiamento da pós-graduação.
Mais um exemplo: o fato de que um programa seja o único espaço de pesquisa e de pós-graduação em sua disciplina em toda uma região tem peso quase nulo na avaliação. Para manter a nota da Capes, seus pesquisadores devem virar as costas para onde estão e buscar obsessivamente publicar nas revistas “bem ranqueadas”, quase todas do Centro-Sul ou estrangeiras.
O pesquisador é visto como uma máquina de produzir papers. Um artigo obscuro publicado numa revista bem classificada, que será lido, segundo a lenda, por menos de três pessoas em média, conta no currículo. O diálogo com a sociedade civil e com movimentos sociais não vale nada. A ideia de que o conhecimento que produzimos deve servir à sociedade que nos financia é, quando muito, um slogan desprovido de sentido.
Há toda uma indústria de publicação voltada a “pontuar no Lattes/pontuar na Capes”. Editoras mandam spam para professores anunciando que publicando com elas você “pontua no Qualis-Capes”. Quer dizer que a editora cumpre os critérios para credenciar seus livros na avaliação, ainda que todo mundo saiba que basta pagar a tarifa correspondente para publicar qualquer coisa. O mesmo para revistas acadêmicas, todas invariavelmente denominadas “International Journal” disso ou daquilo, que prometem “avaliar por pares” e publicar seu paper em menos de uma semana – também cobrando uma taxa módica.
Para não me estender demais, cito ainda o fetiche da “internacionalização” a todo custo, que afasta ainda mais a pós-graduação do mundo que a cerca. Muitas vezes, ela premia a inserção subordinada em redes de pesquisa dos países centrais, cabendo a nós pouco mais do que a coleta de dados.
Ao longo dos anos, muitas batalhas foram travadas dentro da Capes para mudar essa situação. Com inúmeras derrotas e poucas, mas relevantes, vitórias.
O governo quer destruir a Capes como parte do processo de destruição da universidade e da pesquisa no Brasil. O manifesto dos representantes de área lista um conjunto expressivo de medidas, tomadas sem qualquer tipo de consulta, que revelam a disposição para fazer terra arrasada do sistema nacional de pós-graduação.
É uma expressão da cognofobia agressiva do bolsonarismo.
Precisamos lutar para impedir que isso ocorra. Precisamos preservar a Capes. Mas para continuar batalhando para transformá-la, não para idealizar o que ela tem sido.
*Luís Felipe Miguel é Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019).
Este artigo foi originalmente publicado no perfil de Luís Felipe Miguel no Facebook [Aqui!].