Por Gustavo Conde* [1]
A Folha faz uma matéria extensa hoje sobre o uso dos agrotóxicos, no limite da canalhice. A matéria é aparentemente digna, o texto é gramaticalmente aceitável, as informações são no limite do razoável, as coletas de dados são médias, as afirmações dos especialistas parecem constituídas de relevância técnica e algum contexto histórico, enfim, o trabalho dos jornalistas Reinaldo José Lopes e Gabriel Alves poderia merecer até um ‘parabéns’ do editor-chefe.
O problema, parceiro, é o viés. Essa coisinha chamada ‘viés’ é a grande desgraça do ‘Braziliam Journalism’. A manchete é “Veja mitos e verdades no debate dos agrotóxicos” e o ‘olho’ da matéria é: “Discussão do projeto que facilita a liberação dos produtos na agricultura acirrou os ânimos de ambientalistas e ruralistas”.
O protocolo das redações pode inocentar os missivistas: quem assina a matéria não é quem faz o ‘olho’ e a manchete, por isso os repórteres não podem ser responsabilizados pelo escopo explicitamente enviesado da matéria. Por que enviesado? Porque protege o governo Temer e sua tentativa canalha de enfiar agrotóxicos goela abaixo da população brasileira.
Através de um pressuposto malicioso (o de que o agrotóxico é um mal necessário) e de ‘zonas de silêncio’ estrategicamente selecionadas (as de que o mundo do cultivo é exclusividade dos grandes produtores), a matéria instala uma falsa discussão ‘objetiva’ e técnica, na linha obsoleta da dicção que busca ‘neutralidade’.
Nota técnica da linguística: nada na língua é neutro. Essa falácia ainda impera na maioria das redações falimentares brasileiras. Eles leram a teoria da comunicação de Jakobson (publicada em 1962) e ficaram nisso. Ignoraram a imensidão que se produziu depois desta obra (e que a superou) na área dos estudos da linguagem. Óbvio que, para o jornalismo brasileiro e no que diz respeito às teorias da linguagem, o tempo parou nos anos 60. É o jornalismo retrô.
A matéria tem algumas qualidades. Mas os abutres editoriais, dominados pelos interesses da publicidade e das próprias fobias e vícios a assassinaram e a tornaram um argumento para a bancada ruralista desfilar sua sede de vingança e sadismo econômico em futuro próximo.
Não será de se admirar se um deputado ruralista empunhar a reportagem quando a matéria da Lei dos Agrotóxicos for finalmente votada no Congresso, tão adiada que foi, justamente, por não contar com a habitual maioria chantagista alimentada pelos repasses suculentos de Temer e Cia. O Congresso anda indócil em tempos de eleição e o preço individual por deputado aumentou.
A maior canalhice, no entanto, é dar um ar de ‘normalidade’ técnica ao debate e simplesmente ignorar os interesses econômicos e corporativistas que estão em jogo na discussão que ora se desenrola no Congresso. A matéria também não traz dados do impacto do uso dos agrotóxicos em populações ao longo da história. Dados como incidência de doenças em percentuais, taxas de mortalidade, impacto nutricional e ‘vida útil’ do trabalhador rural são olimpicamente ignorados.
O ‘Distúrbio de Colapso das Colônias’, estudo sério e consagrado, pesquisado por universidades americanas e pelas próprias agências de pesquisa brasileiras – que nada mais é que o desaparecimento das abelhas no hemisfério norte – é tratado como mito. Se jornalismo é isso, por favor me digam o que ele não é.
A matéria propõe 17 perguntas. Elas falam por si. Promovem a falsa objetividade técnica do tema e ainda conseguem a proeza se perderem no final, invadindo o campo arrasado e podre da politização barata:
Agrotóxico faz mal? É possível não usá-lo? Veja o que é verdade e mentira no debate
- Agrotóxico é a mesma coisa que defensivo agrícola e pesticida?
2. Quais são os tipos de agrotóxicos? O que eles fazem?
- As moléculas dos agrotóxicos são biodegradáveis?
- Pesticidas estão matando as abelhas e outros insetos polinizadores?
- O que acontece com as pragas após o uso constante das substâncias?
- Há mesmo vantagem dos agrotóxicos mais modernos em relação aos antigos?
- O uso combinado com transgênicos diminui a quantidade de defensivos na lavoura e a resistência das pragas?
- Supondo que o Brasil ou o mundo parasse de usar agrotóxicos, o que aconteceria ao ambiente?
- Quais são os modelos de cultivo que menos precisam de agrotóxicos?
- Qual seria o impacto econômico da proibição dos agrotóxicos?
- É possível ter o mesmo efeito de proteção contra pragas com menos aplicações dos produtos?
- Quais são as culturas que mais usam agrotóxicos no país?
- Quais os efeitos crônicos para a saúde?
- Alimentos orgânicos são mais seguros?
- Quais os efeitos agudos dos agrotóxicos no corpo?
- Agrotóxicos podem causar a morte?
Primeiro, o conjunto de perguntas trata o leitor como um verdadeiro idiota. Essa é a linha editorial dos grandes jornais, para quem não sabe: ‘o leitor é idiota, tem que simplificar e facilitar ao máximo para ele’.
Para todas essas perguntas, as respostas são protocolares e ficam em cima do muro. Eles procuraram os pesquisadores certos (os de linhagem tucana), aqueles que têm compromisso apenas com a própria carreira.
É uma matéria para ‘limpar a barra’ do uso dos agrotóxicos. Não se pode olhar para ela (para o texto, para o tom, para o regime de sentidos), apenas com um olhar primitivo de leitor destituído de senso crítico.
A linguagem, caros amigos leitores, é muito mais complexa do que imagina a vã filosofia. Ela reverbera, ela estala, ela erode, ela chama, ela seduz, ela causa repulsa, ela, enfim, é mais que o sisteminha de comunicação obsoleto do linguista russo Roman Jakobson, com todo respeito a sua obra e aos limites epistemológicos de seu tempo histórico.
O mais canalha, no entanto, desta matéria claramente lotada de interesses econômicos e deliberadamente providenciada por um veículo que pretende aumentar seu faturamento junto a grandes produtores rurais e anunciantes indiretamente beneficiados por esse ‘presente editorial’, é o apagamento do ‘pequeno produtor rural’.
O ‘pequeno produtor rural’ nem aparece na matéria, quanto mais sua lógica e sua importância econômica e social. Mais grave: o ‘pequeno produtor rural’ é, justamente, a solução para questão do uso excessivo de agrotóxicos mundo afora. Qualquer pesquisador que não seja tucano (preguiçoso) sabe disso.
As plantações em menor escala possibilitam a personalização do cultivo e dispensam as doses cavalares de agrotóxicos. Mais do que isso, o pequeno agricultor resolve uma outra série de graves problemas sociais, como o êxodo rural e a restauração da cultura do homem do campo, que pode, assim, de posse de uma pequena área de cultivo, construir um entorno social mais produtivo solidário e, mais importante: muito mais eficiente economicamente, num processo que já nasce distribuindo renda.
O pequeno produtor é um anteparo para a concentração de renda no campo. Combate o trabalho escravo, o abuso, a fraude. Capilariza a receita destinada ao consumo de produtos mais saudáveis e beneficiados no escopo de um processo mais humanizado.
A matéria da Folha de S. Paulo ignora completamente essa dimensão do argumento que está implícito de maneira consagrada na discussão sobre o uso dos agrotóxicos, no Brasil (em um Brasil que parece não existir mais) e no mundo.
Lamento dizer, contudo, que tratar o leitor – e o próprio repórter que acaba por fazer uma matéria que nem mesmo sabe o que ‘é’ nem o que ‘significa’ – como idiota é uma prática cada vez mais perigosa para a grande imprensa. Esse tempo já se foi. Depois da internet, fica um pouco mais difícil oferecer uma ração jornalística de tão baixa qualidade.
O jornalismo brasileiro ‘clássico’, se não quiser ser devorado pelas mídias digitais, precisa fazer uma autocrítica e um recall técnico. Eles até tentam – que eu sei – contratando uma consultoria aqui, outra ali. Mas a palavra ‘inócuo’ e até insuficiente para definir este protocolo de reciclagem profissional.
Não se pode ter medo de se elevar o nível do que quer que seja. Da política, da agricultura, da educação ou do jornalismo. Enquanto os jornais tradicionais insistirem em nivelar sua atuação por baixo, a agonia do segmento vai continuar, com demissões, sucateamento, mordaça e editorialismos canalhas.
* Gustavo Conde é mestre em lingüística pela Universidade Estadual de Campinas. Trabalha com teorias do humor e com a história da representação do riso. As áreas do conhecimento que caracterizam sua pesquisa são: análise do discurso, psicanálise e semiótica.
[1] Este texto foi originalmente publicado Aqui!
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