Mais de 11 milhões de pessoas assistiram ao papa Francisco entregar uma bênção em uma Praça de São Pedro durante a celebração da Missa da Páscoa de 2020 por causa da pandemia da COVID-19.
Enquanto o espectro mortal da COVID-19 avança por todos os lados no Brasil, e nosso país já ocupa o sexto lugar no número de mortos em nível mundial, as placas tectônicas da relação entre religião e ciência começam a se mover de forma mais clara. Um exemplo disso é o manifesto intitulado “Pela Pacificação da Nação em Meio à Pandemia” que acaba de ser lançado pela chamada “Coalizão do Evangelho“, onde são tecidas considerações sobre o que seriam desencontros e confusões que decorreriam de um suposto endeusamento da ciência (ver imagem abaixo).
Uma coisa que precisa ser dita inicialmente sobre essa assertiva é que se há uma esfera do conhecimento humano onde não há espaço para endeusamento, esse é o da ciência, em que pesem alguns pesquisadores se acharem “deuses”. É que o método científico em suas múltiplas formulações parte do pressuposto da “falibilidade”, o que, convenhamos, não é conducivo ao endeusamento, pois para os deuses (ou no caso do grupo em questão, de Deus) não há sequer a possibilidade de que sejam falíveis.
Outro aspecto levantado no mesmo parágrafo é de que existe dentro da comunidade científica conflitos acerca dos dados e interpretações sobre como tratar a pandemia. Aqui há uma inverdade objetiva, pois não dentro da comunidade científica qualquer diferença significativa sobre a natureza do novo coronavírus ou, tampouco, sobre a sua letalidade. O que de fato existe são lacunas que estão sendo preenchidas dentro do furor da batalha sobre como o coronavírus se difunde e de como evolui dentro de seus hospedeiros humanos, o que leva a variações de concepções sobre quais medicamentos podem amenizar a evolução da COVID-19, de modo a salvar vidas. Além disso, há uma corrida frenética, por exemplo, para a produção de uma vacina que possa preparar os organismos infectados para impedir que o coronavírus produza os efeitos que já estão em processo de identificação em meio a esta pandemia.
Desta forma, os líderes religiosos que assinam o manifesto “Pela Pacificação da Nação em Meio à Pandemia” estão incorrendo em um pecado que, reconheço, pode ser compreensível: criticam a Ciência e seus limites epistemológicos, mas se esquecem de criticar os que têm efetivamente inviabilizado a aplicação do conhecimento científico já existente sobre o novo coronavírus para impedir o avanço da pandemia. É que afora a crítica a um inexistente endeusamento da ciência, a única crítica é feita para a mídia que está cobrindo a pandemia, por não possuir a “credibilidade que outrora desfrutava”.
Por outro lado, a única menção ao sistema política é sobre uma suposta “infindável luta ideológica e de poder” que tornaria difícil para o brasileiro comum viver “vida tranquila e mansa”. A primeira coisa aqui é que a dificuldade para o brasileiro comum viver “vida tranquila e mansa” já estava posta há muito tempo, a começar pela falta de empregos e pelo encurtamento das proteções sociais. Além disso, falar de infindável luta ideológica e de poder sem falar como os governantes estão agindo para combater ou não o avanço da pandemia serve apenas para aprofundar a polarização. Sem colocar o dedo na ferida e com essa vagueza de sentido, fica bem evidente para qual lado essas lideranças estão apontando o dedo. E isso, é preciso que se informe aos signatários do manifesto, dificilmente nos levará à vida tranquila e mansa que eles parecem desejar.
Sugiro para quem desejar conhecer um pouco dos meandros com que os fundadores da Ciência moderna tiveram para percorrer para nos oferecer o caminho das luzes que leiam a obra do filósofo italiano Paolo Rossi intitulada “A ciência e a filosofia dos modernos“. Com essa leitura poderão ver que quando se acusa a ciência de endeusamento, está se apontando para o questionamento da própria existência do pensamento científico, que nos moveu para além da chamada “Idade das Trevas”.
Finalmente, quero lembrar que o Papa Francisco, na missa da segunda-feira de Páscoa, pediu orações para que governos, cientistas e políticos pudessem encontrar soluções justas para a crise de COVID-19, a favor do povo. Essa tarefa, disse ele em sua homilia, dependerá da escolha entre a vida das pessoas e o “Deus dinheiro”. Pensando bem, nesse caso, apesar de não ser católico, fico com o Papa Francisco.