Jair Bolsonaro, o bode na sala

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Por Luiz Felipe Miguel*

Ao fazer com que boa parte da esquerda brasileira aceite ficar a reboque da direita “civilizada”, abrindo mão de toda a sua agenda em nome nem sequer da democracia representativa, mas simplesmente de um regime menos iliberal, Bolsonaro cumpre seu último serviço aos golpistas de 2016: ser o bode na sala.

A metáfora deve ser entendida em sua plenitude. A presença do bode não é banal. Ele fede, faz barulho, quebra coisas, destrói o estofamento do sofá, ataca as pessoas. Por isso é tão tentadora a sugestão de dar tudo em troca de retirá-lo.

Mas é preciso um pouco de sangue frio, para pensar: é preciso mesmo dar tudo? Não é possível expulsar o bode sem abrir mão de quem somos?

Para a classe dominante sempre é mais fácil. Ela negocia em condições de força – não é à toa que exibe o adjetivo “dominante”. Mostra que pode se acomodar com Bolsonaro, se nós não aceitarmos todas as suas condições.

Mas isso não é tão verdade. Se a acomodação com Bolsonaro fosse tão tranquila, esses acenos à sua derrubada não estariam nem sendo feitos. O Brasil está se tornando um pária no sistema internacional. Está caminhando para o colapso, com a gestão tanto obtusa quanto criminosa da crise sanitária e econômica.

A classe dominante tem mais condições de pretender que pode prosseguir com essa situação indefinidamente, mas é isso: pretender.

Por isso, submeter-se a seu programa não é a única alternativa. É possível afirmar a disposição por ação conjunta contra Bolsonaro sem deixar de reafirmar nossas diferenças profundas e irreconciliáveis.

Elas podem ser resumidas ao seguinte contraste:

O que eles desejam restaurar, com a saída do bode, é o Brasil do pós-golpe. Violência estatal menos escancarada, menos irracionalidade no poder, aceitação ritual dos direitos humanos. Mas a disputa política continua tutelada de maneira a excluir de antemão o campo popular – e, portanto, deixar caminho aberto para o aprofundamento de todas as desigualdades.

Para o nosso lado, o projeto deles não é irrelevante, mas é insuficiente. Para nós, a verdadeira retirada do bode tem que significar, pelo menos, a vigência plena da Constituição de 1988. Abrir mão de assumir esse discurso é abrir mão da disputa política e aceitar, nos documentos e na prática, os limites que eles estão impondo.

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Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da UNB, e autor de Democracia e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e, em conjunto com Flávia Biroli, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014), entre outros. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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