
“Nós perdemos três companheiros. Primeiro foi o seu Adalberto, pelo problema de pressão e falta de socorro. Conseguimos um carro para levá-lo até o hospital e lá o médico disse que se tivéssemos chegado cinco minutos antes ele havia sobrevivido”. Assim começou o relato de Amarildo de Castro, assentado do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Oswaldo de Oliveira (PDS). Ele veio acompanhado de mais cinco companheiros do assentamento. O grupo foi apenas um entre as 25 representações reunidas no auditório da sede do Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro. Ali, na última quarta-feira (26), o MPF promoveu audiência pública para debater as políticas públicas de reforma agrária e segurança alimentar no Rio de Janeiro.
Além dos coletivos sociais, o evento contou com a presença de representantes de entidades públicas – como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Rio de Janeiro (Emater-RJ). Os órgãos representados na mesa condutora do evento (MPF, Incra, Emater e Alerj) acordaram, ao fim da audiência pública, para a realização de uma reunião na primeira semana de maio para organizar a ação do mutirão de documentação dos pequenos produtores.
Compondo a mesa, além do procurador regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Julio José Araujo Junior, que convocou a audiência, estiveram Gustavo Noronha, diretor de gestão estratégica, representando a presidência do Incra; Maria Lúcia de Pontes, superintendente do Incra do Rio de Janeiro; Sergio Siciliano, assessor da Emater-RJ; e Marina dos Santos (Marina do MST), deputada estadual e presidente da Comissão de Segurança Alimentar da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
A audiência foi conduzida pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão, que procedeu à abertura do evento, destacando-o como parte do Procedimento Administrativo 1.30.001.001620/2023-66, em curso na Procuradoria. “O objetivo desse procedimento é monitorar as políticas públicas tanto no âmbito nacional quanto nos efeitos para o estado do Rio de Janeiro, respeitando as atribuições de outras unidades, mas também discutindo de forma macro o impacto e desenvolvimento dessas políticas. Achamos ainda mais importante fazer essa audiência por conta do momento de mudanças pelo qual o Incra passa”, pontuou.
O procurador ainda saudou a presença do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PEPPDH) e de mais de 20 coletivos ligados à questão agrária. Estavam na audiência representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro (Fetag/RJ), Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itaperuna, Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Assentamento Terra Prometida, Cooperativa Agroverde de Produtores Rurais, Ocupação Solano Trindade, Associação de Produtores Rurais e Agricultura Familiar, Assentados e Acampados do Norte Fluminense, Associação de Moradores do Aluguel Social (Amas Petrópolis), Acampamento Nelson Mandela, Assentamento Antonio de Farias – Campos, PA Celso Daniel, Coletivo Terra, Movimento Nacional Luta pela Moradia (MNLM), Núcleo de Educação e Cidadania da UFF, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar Sustentável, Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (Najup) Luiza Mahin da UFRJ e Sindicato dos Trabalhadores da Embrapa Solos.
Gustavo Noronha, diretor de gestão estratégica do Incra nacional, traçou o quadro da atual situação do órgão e dos desafios. Ele destacou a preocupação com o cenário de terra arrasada encontrado na instituição, mas pontuou também a retomada do diálogo com os movimentos sociais: “Poder voltar a receber o MST no Incra foi muito importante, mas ao mesmo tempo ainda há dificuldades. Este ano, temos menos de 1% do maior orçamento que o Incra já teve e menos de 10% do que foi deixado pelo governo do ex-presidente Michel Temer. Hoje, o orçamento é quase todo voltado para manter as portas abertas. Já apresentamos proposta de suplementação orçamentária de recursos ao Ministério da Fazenda e acredito que vamos conseguir”.
O representante do Incra ainda mencionou a proposta de fazer uma plenária com assentados, acampados e quilombolas para organizar ideias a serem apresentadas no Plano Plurianual (PPA), que esse ano contará com participação da sociedade, com etapas regionais em todos os estados. No Rio de Janeiro a plenária ocorrerá no dia 10 de julho. Noronha ainda destacou alternativas que estão sendo gestadas para trabalhar na promoção da reforma agrária, mesmo com as dificuldades orçamentárias iniciais.
“Uma das nossas principais estratégias que começamos nacionalmente, a pedido do ministro Paulo Teixeira, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar do Brasil, é a arrecadação das terras de grandes devedores da União. Outro caminho, que ainda está em conversas preliminares, mas já tivemos reunião com a Secretaria de Inspeção do Trabalho, é o de buscar arrecadação de terras de lugares onde foi encontrado trabalho análogo à escravidão. Nesse caso, pela falta de regulamentação, seria necessário começar pelas terras onde há condenação. Outra parceria que já temos é com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. O objetivo é arrecadar terras que estavam sendo utilizadas para plantio de psicotrópicos e também para lavagem de dinheiro do narcotráfico. Por fim, a gente tem uma estratégia de arrecadação pela busca de terras públicas, em parceria com a Secretaria do Patrimônio da União. Falta levantamento, porque aqui no Rio ainda há muitas terras não mapeadas”, afirmou.
Noronha ainda mencionou a regularização de territórios quilombolas: “Já temos por volta de 39 áreas que podemos encaminhar para decreto. Entre estas, três são do Rio de Janeiro: os quilombos de São Benedito, Alto da Serra do Mar e Sacopã. O maior entrave, no momento, é que, para decretar o território, é necessário aguardar o orçamento para a indenização. Em relação ao Alto da Serra, já existe decisão judicial determinando a emissão do decreto e, nesse caso, a regularização deve sair até o meio do ano”.
Em seguida, Maria Lúcia de Pontes, superintendente do Incra no Rio de Janeiro, destacou os desafios e expectativas do começo de sua gestão: “Ontem (terça, 25) fez uma semana que tomei posse no Incra Rio de Janeiro. Agradeço muito a essa audiência pública, porque estou exatamente num momento de escuta. Estamos com um quadro bastante debilitado, pouco pessoal, estrutura pequena, então precisamos ouvir para planejar e fazer o trabalho funcionar. É triste ver um quadro sucateado num órgão que tem a função tão importante de fazer a reforma agrária, uma dívida histórica com os trabalhadores rurais. Não é apenas uma questão do Incra, mas estamos discutindo no Brasil a questão do orçamento e dos juros. Todas são discussões que vão atingir, ao fim, o trabalhador acampado aguardando o assentamento ser criado. Por isso, temos uma tarefa árdua mas não impossível”.
A importância da escuta também foi destacada por Sergio Siciliano, assessor da presidência da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Rio de Janeiro: “A Emater está em todo o estado, atuando diretamente com o produtor rural. E para nós a assistência técnica e extensão rural independem de onde veio a terra, mas de quem está disponível a ser apoiado. Estamos num processo de planejamento estratégico no estado, atuando nas câmaras técnicas e desenhando ações para os próximos oito anos conforme o desenvolvimento sustentável, segurança alimentar e produção de alimentos. Em nossa vinda aqui temos algumas questões a colocar e muito a ouvir”.
Para Marina do MST, deputada estadual e presidente da Comissão de Segurança Alimentar da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), a grande concentração urbana no município acaba por mascarar os problemas enfrentados pelos pequenos produtores rurais.
“Olhando para a realidade do estado é preciso destacar que todos os problemas relacionados à questão agrária tem uma grande invisibilidade aqui. Somos praticamente 96% da população considerada urbana, e isso faz com que as políticas públicas também invisibilizem os temas da reforma agrária. Mas aqui também há desmatamento, utilização de veneno e trabalho análogo à escravidão. É uma vergonha no século XXI, num estado tão rico em produção como o Rio, ter Campos dos Goytacazes como o 5º município no ranking nacional em trabalho análogo à escravidão”, pontuou.
Precariedade nos assentamentos
Após a manifestação dos integrantes da mesa, a audiência prosseguiu com a participação do público presente. A primeira fala foi de Andrea Matos, representante do Sindicato dos Trabalhadores da Embrapa Solos. Ela destacou que a audiência ocorre no mesmo dia em que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa ) completa 50 anos.
“Solicito ao MPF que faça a verificação da política difamatória que os movimentos sem-terra vêm sofrendo nas últimas semanas, visto a tramitação da Lei das Fake News no Congresso Nacional. Solicito também que se verifique a portaria 193 de 1992 que nos artigos 11º e 12º obriga a participação de toda a sociedade civil no Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária. O sistema reúne a Embrapa, todas as Organizações Estaduais de Pesquisa Agropecuária (Oepas), as universidades, mas precisa integrar também o povo que produz o que nós comemos diariamente”, pediu.
Coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (Najup) Luiza Mahin, Mariana Trotta compartilhou algumas dificuldades enfrentadas pelos coletivos: “A ocupação Solano Trindade está há muitos anos em um imóvel do Incra e recentemente, em processo judicial, numa ação civil pública movida pelo MPF, foi informado de que houve, em 2015, revogação do termo de doação. Outro tema que chocou nesse último período de ataque à estrutura do Incra foi o relativo ao crédito habitacional desviado de vários assentados, como é o caso do PDS Oswaldo de Oliveira. Então, a gente precisa falar dessa lógica de emancipação dos assentamentos, com a titulação, mas sem infraestrutura e crédito. Esse caso do desvio gerou uma situação de precariedade das casas e um incêndio no território”.
Em seguida, o professor Waldeck Carneiro, representante do Núcleo de Educação e Cidadania da UFF e deputado estadual na legislatura anterior, destacou a importância do investimento: “É muito importante dar visibilidade a esse tema e recuperar o investimento na pesquisa agropecuária. Seria importante dialogar com BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica para garantir linhas de crédito ao pequeno produtor, além da recuperação da Emater, para garantir o assessoramento técnico para a pequena produção rural no Rio de Janeiro”, afirmou.
PDS Oswaldo de Oliveira
A fala seguinte foi de Fernanda Vieira, professora na UFRJ, que enfatizou a presença do MPF na condução do debate: “Ter o MPF na defesa da reforma agrária é um marco extremamente importante”. Fernanda dedicou o restante do tempo concedido a ela para as falas dos integrantes do PDS Oswaldo de Oliveira. O assentamento fica no município de Macaé e, para ela, “o PDS é uma das áreas mais complexas que temos no Rio de Janeiro”.
A primeira do grupo a falar foi Marcela dos Santos: “A gente, do PDS, quer saber a posição do Incra sobre como vai ficar a questão dos recursos e créditos para casas que foram desviados e até hoje não tivemos resposta. Têm famílias em barracos de lona e madeirite que já estão caindo. Esse dinheiro veio, mas foi desviado para a empresa. Também queremos saber do crédito fomento mulher que ainda não chegou até nós”.
Em seguida, a palavra foi dada a Mauro, dirigente regional do MST na região dos Lagos: “É muito importante para o povo sem-terra ter uma audiência igual a esta para expor os problemas. Nós somos, no estado, o primeiro PDS, projeto de desenvolvimento sustentável, criado há nove anos, mas a gente continua vivendo em estado de calamidade; continuamos sendo ‘os acampados’. A falta de crédito e investimento dentro do assentamento causa conflito. Aparecem os oportunistas, criam milícias e começam a lotear o assentamento. Pedimos que olhem com mais carinho para o PDS. Temos a questão ambiental, discutida no país inteiro, e nós viemos com um projeto de desenvolvimento sustentável, mas não temos apoio dos órgãos competentes”.
Na sequência, a participante Elza também expôs a sua indignação: “O que houve no PDS foi covardia. Tenho certeza que as pessoas que fizeram isso têm onde morar. Fica muito difícil que os da população rural façam com que os outros 90% da área urbana tenham uma alimentação saudável, se não temos apoio nenhum no trabalho. É isso que a gente busca no poder público, nas autoridades, nos governos. Pedimos que olhem mais para essa classe social tão sofrida. É difícil para muitas pessoas falar, pois a maioria delas sequer tem o direito à educação. A gente fala de moradia, fala de vários direitos, mas estamos aqui mesmo para reivindicar todos os direitos que temos”.
Edna, que está no território desde a ocupação, em setembro de 2010, também trouxe o seu relato: “A gente está sofrendo muito porque estamos sem energia elétrica e as estradas são muito precárias. Já perdemos vários companheiros por conta de estradas e pontes. Eu mesma já passei mal lá dentro, chamei ambulância e ela não pôde entrar para me socorrer. Outra coisa foi a enganação do crédito de moradia. O servidor fez a gente assinar um papel, fomos lesados e estamos morando em barracos”.
Ela ainda apontou a diferença de tratamento do governo entre os grandes e pequenos produtores: “O poder público em Macaé costuma ser a favor das pessoas donas de grandes latifúndios e não reconhece o trabalho do agricultor. Quando chega o período de chuva, temos dificuldade para escoar a mercadoria e ir para as feiras. Fazemos feira e produzimos produtos sem veneno para nossa família e para o público e acabamos enfrentando todas essas adversidades”.
O relato de Amarildo de Castro demonstra todo o descaso mencionado, às vezes, traz perdas irreparáveis: “Nós perdemos três companheiros. Primeiro foi o sr. Adalberto, com problema de pressão e pela falta de socorro. Conseguimos um carro para levá-lo até o hospital e lá o médico disse que se tivéssemos chegado cinco minutos antes ele teria sobrevivido. O segundo foi o Roberto. Ele passou mal levando carro de aipim. Passou mal, foi tirado lá de dentro da carroça de burros, na ponte. Não tinha condições do carro entrar lá. No início do ano foi o nosso companheiro conhecido como Beto. Também não tinha como o carro entrar porque choveu muito e para tirar o corpo levou 12 horas. É triste a gente ver a situação. Somos julgados como desertores, invasores, destruidores, mas as pessoas que conhecem a nossa luta, sabem que nós ocupamos para sobreviver, plantar, criar. Os pequenos produtores rurais levam a mercadoria para grandes Ceasas do Rio e São Paulo e muitas vezes somos enxergados como baderneiros”.
A primeira rodada de participação do público presente foi encerrada com a fala de Luana Carvalho, coordenadora do MST-RJ: “Semana passada pegamos a nossa pauta e vimos como ela está amarelada. Há muitos e muitos anos as nossas reivindicações são as mesmas. No PDS Oswaldo de Oliveira foi criado o assentamento em 2014 e no Irmã Dorothy em 2015. Estas áreas estão quase completando dez anos e ainda não houve nenhuma política pública. Essas famílias vivem em situação de acampamento, em barraco de lona, não têm estradas, crédito e documentação. Os nossos assentados hoje não conseguem acessar as políticas porque não têm CCU ou DAF, documentos básicos. É imprescindível fazer um mutirão de documentação para resolver esse passivo de tantos anos. Por último, deixo a proposta de criar um espaço colegiado participativo para que a sociedade civil e os entes públicos possam sentar e acompanhar a implementação das ações”.
Pronunciamentos da mesa
Em seguida, o procurador Julio Araujo conduziu a discussão de volta aos participantes da mesa, para novas considerações à luz dos depoimentos ouvidos.
Para Gustavo Noronha, a atuação do Incra no último período foi organizada por uma ideia distorcida de titulação, em que qualquer medida administrativa era tratada como “título”, sem considerar que este é consequência de um processo mais amplo. “O título da terra não pode ser uma desculpa para se livrar de outras responsabilidades. A titulação é a conclusão do projeto de um conjunto de políticas públicas. O que vai organizar a ação do Incra daqui para a frente é a reforma agrária. A política orientadora é assentar famílias”.
O representante do Incra nacional também se comprometeu a verificar o andamento da questão dos créditos-habitação desviados. Ele solicitou que o inquérito possa ser compartilhado para apuração interna, até para viabilizar a restituição do crédito das pessoas lesadas. “É algo viável que precisa apenas da instrução do processo”.
Maria Lúcia de Pontes identificou divergência na questão da ocupação Solano Trindade: “No processo administrativo ao qual tive acesso, a doação não foi cancelada. Na verdade, existiam questionamentos dos cartórios em relação à área. Então, é uma divergência que vamos precisar olhar. Em relação aos créditos existem vários encaminhamentos. Um deles é o judicial, outro é a questão interna do Incra em ver o contrato feito com essa empresa, inclusive para o cancelar. O problema com essa empresa não é só no Rio de Janeiro. Já tivemos conhecimento de que também estavam cometendo esse crime em outros estados, até mesmo antes de ocorrer aqui”.
Claudia Videira, chefe da Divisão de Desenvolvimento e Consolidação do Incra no RJ, trouxe mais detalhes sobre a concessão dos créditos: “Em relação ao PDS Oswaldo de Oliveira, foram concedidos 12 créditos de apoio inicial. Os créditos de Fomento e Fomento Mulher não haviam sido liberados porque ainda estávamos sem técnicos para os projetos. Estamos lutando para que esses créditos venham ainda este ano ou ano que vem. Outra ideia (…) é que façamos muitos acordos de cooperação com as prefeituras para que elas possam elaborar, porque estão na ponta. Com isso, a gente aumenta a capilaridade do Incra”.
A importância da Emater foi enfatizada por Almir Dias, presidente da Agricultura Familiar de Cachoeiras de Macacu: “Cachoeiras é o segundo maior município em assentamentos da reforma agrária. Sempre digo a todos da Emater: ‘a hora que acabar a Emater, acaba também a agricultura familiar no estado do Rio’, para você ver a importância dela para nós. Houve governos no passado que fizeram de tudo para acabar com esse órgão”.
Depoimentos
Após as falas dos integrantes da mesa, foi aberta mais uma rodada de participação do público presente ao debate. A agricultura familiar de Cachoeiras de Macacu estava representada por Rosilene Brites, que destacou outras reivindicações: “A gente pede mais uma vez aos superintendentes do Incra a concessão dos títulos porque existem assentados desde 1945 que não os possuem. Também gostaria de falar em relação à nota eletrônica. Às vezes não há nem energia no interior, por isso, alguns agricultores não têm Internet e isso dificulta”.
Leonardo Lopes, representando a Associação dos Engenheiros Agrônomos, destacou o uso inadequado de verbas: “Como funcionário de carreira do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj), posso falar da importância dos assentamentos rurais, principalmente na região metropolitana. Não apenas na produção de alimentos, mas no serviço ambiental. Mas infelizmente o Iterj, nos últimos anos, tem focado mais nas áreas urbanas, em obras eleitoreiras, e sobram menos recursos para as áreas rurais”.
Terra Prometida
O assentamento Terra Prometida, na Baixada Fluminense, fica entre os municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Os assentados apontaram as dificuldades enfrentadas.
O participante Cosme Henrique destacou que um trator foi destinado à prefeitura pelo Incra para atender o assentamento Terra Prometida, e o governo local se comprometeu a fornecer o operador, diesel e manutenção da máquina. No entanto, o maquinário só foi uma vez ao assentamento e nunca mais voltou. “São impunidades que se refletem na comunidade. Estamos assentados desde 2006 e não temos estrada, energia elétrica ou casa. Mas a gente produz orgânicos e no ano da pandemia distribuímos 200 mil quilos de alimentos nas favelas para conter a insegurança alimentar”.
Beatriz Carvalho se apresenta como “filha da luta pela reforma agrária”, pois com três anos de idade estava na ocupação da fazenda Campo Alegre, na Baixada Fluminense, local onde a mãe ainda reside. “Se a gente olhar em cada território de reforma agrária de uma ponta do Rio a outra vão se repetir questões como a demora, a lentidão em aplicar a reforma. Porque a reforma agrária não é só partilhar a terra, são as condições estruturantes. Nova Iguaçu e Duque de Caxias não possuem agricultura familiar e nem reforma agrária no processo de metas e planos. Só pensam no turismo ecológico, que não é de base comunitária e não agrega esses moradores. Estou num assentamento desde 2006 e não sei se daqui a um tempo a minha filha vai querer viver no território como está”, relata.
Juliana Gomes Moreira questionou os resultados de uma ação civil pública que tramitou há alguns anos: “Houve uma ação movida pela comunidade, e tocada aguerridamente pelo dr Júlio (procurador Regional dos Direitos do Cidadão), que esteve conosco no assentamento e no bairro vizinho. Há quase dois anos fomos informados de que a ação foi desmembrada em orientações para o Iterj e Incra que geraram multas destinadas a um fundo. Mas até hoje não sabemos o que aconteceu com essa ação”.
Outros relatos
O Conselho de Segurança Alimentar (Consea) em Volta Redonda estava representado pelo presidente William de Carvalho: “Estamos no limite. Temos a agricultura familiar, temos terra obsoleta e a necessidade de minimizar a fome. Temos leis municipais que garantem o uso do espaço público para agricultura familiar, mas há o descumprimento com a anuência da prefeitura”.
A Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), também estava presente, representada por Tatiana: “Falar de agricultura é falar de quilombo, porque é um povo que planta e sabe plantar, mas hoje tem dificuldade de escoar a sua produção. Por isso, pedimos ajuda para continuar a nossa agricultura”, destacou.
Edson Correa, diretor estadual da União Sindical dos Trabalhadores do Mar, do Campo e da Cidade, alertou para as dificuldades às quais são submetidos os assentados: “Os agricultores de Santa Cruz estão abandonados na Colônia dos Japoneses. Em governos anteriores uma área de 10 mil m² foi cedida sem consulta prévia a um empreendimento. Foi construído no canal do Rio São Francisco um dique, que rompeu nas últimas chuvas. O povo da colônia existe há décadas e é o maior produtor de aipim da região, mas hoje está com suas lavouras tomadas pela enchente. No ano passado, houve audiência pública durante a qual o Incra doou para a prefeitura as terras da antiga Fazenda Imperial, mas até hoje os moradores, agricultores e pescadores de Santa Cruz que vivem no entorno ainda não obtiveram o título de propriedade”.
A Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio de Janeiro (CDHAJ-OAB/RJ) esteve representada por Gláucia Nascimento, secretária-geral, que lembrou a trajetória de lutas de quem vive da terra: “Meu pai saiu da Paraíba para fugir da fome depois que viu o seu irmão morrer de fome, veio dormir nas ruas do Rio de Janeiro. Até hoje ele quer voltar para a terra. Eu vejo a dor de vocês, uma dor de voltar para a terra com dignidade, podendo viver dela. É necessária uma política pública extensiva e eficaz contra o trabalho escravo, pela reforma agrária e contra a insegurança alimentar”.
Adriana Pereira é presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itaperuna e prestou solidariedade aos companheiros: “Queremos nos solidarizar com o PDS Oswaldo de Oliveira, que leva esse nome porque ele morreu na luta. Como disse Margarida Alves ‘Eu prefiro morrer na luta a morrer de fome. Mas que não morramos de fome e também não morramos na luta’. Eu resido no pré-assentamento de Nova Esperança do Aré e preciso dizer da gratidão que temos pela parceria com a Emater, que em Itaperuna funciona e somos muito bem recebidos”.
José Ribamar Coelho é presidente do PA Celso Daniel e afirmou que este momento devia se repetir muitas vezes: “A gente estava sentindo muita falta de se reunir e ter um espaço para discutir os nossos interesses. Os assentamentos consolidados sem estrutura e condição de produzir levam a desistência de alguns companheiros. Por conta disso, a gente solicita investimento de créditos para desenvolver essas áreas. Um dos recursos para isso é o Pronap, mas o Banco do Brasil em Macaé, Carapebus e Conceição de Macabu não libera o recurso”.
Teodomiro de Almeida, que representa as Associações dos Pré-Assentamentos, alerta para o planejamento de uma reforma agrária eficiente: “A desaceleração do programa nacional de reforma agrária existe desde 2011. Poucas vistorias foram feitas com uma burocratização tão intensa. Além disso, nós não temos um programa de assistência técnica e estamos enxugando gelo ao falar de aplicação de crédito sem essa assistência. Trago também uma questão urgente: o antigo superintendente autorizou uma linha de transmissão de energia elétrica que está comendo lotes das famílias. A Procuradoria já contestou, mas eles ignoraram”.
Teodomiro mencionou ainda o editorial publicado pelo jornal Folha de S.Paulo no fim de abril. Ele afirmou que o texto levanta muitas afirmações contra os sem-terra que acabam sendo incorporadas pela sociedade e não podem ficar sem resposta.
O diretor social da Amas Petrópolis, Nélio Lopes, falou sobre a carência de moradias populares no município: “Quando falamos em Petrópolis lembramos da obra de Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, porque só quando chove todos lembram de Petrópolis e levam doações, mas temos, ainda hoje, moradores no aluguel social. Eu queria também que vocês anotassem o endereço Rua Floriano Peixoto, 280. Um prédio onde a Alerj doou R$ 3,5 milhões para que fosse construído abrigo ou moradia para as pessoas, mas hoje estão transformando em um local para cesta básica e banco de alimentos”.
Clarice Manhã, representante da Cooperativa Agroverde de Produtores Rurais, concluiu essa etapa da audiência: “Na nossa cooperativa atuam mais de 600 famílias e em nome delas dou as boas-vindas à nova superintendente do Incra. Reforço o pedido já feito aqui, de que essa audiência tenha um desdobramento num grupo de trabalho, especialmente para encurtar distâncias”, pontuou.
Criação de um fórum permanente
Ao fim da audiência, foi deliberada a criação de um fórum permanente para discutir a reforma agrária no estado do Rio de Janeiro, com a participação das instituições presentes e dos movimentos sociais. “Creio que podemos avançar nesse diálogo constante e contribuir para a implementação das políticas públicas, empurrando a agenda da reforma agrária e garantindo a concretização dos direitos fundamentais”, afirmou o procurador.
Outro encaminhamento da audiência foi a realização de um mutirão de documentação nos assentamentos da reforma agrária, com o fim de assegurar o acesso a políticas de créditos para os assentados.
A audiência completa está disponível no Canal MPF no YouTube.