Durante anos, milhões de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro foram incitados com a retórica da guerra civil. Após o assalto às instituições no domingo, a radicalização deve continuar
Ainda não chegou com os dois pés na realidade: muitos participantes do assalto ao distrito governamental se isolam em um mundo paralelo. Foto: André Borges, Keystone
Por Philipp Lichterbeck , Rio de Janeiro, para o Woz
Quem quiser entender a tentativa de golpe ocorrida na capital brasileira, Brasília, no domingo, deve primeiro examinar a mentalidade dos apoiadores de Jair Bolsonaro. Observadores especialmente de esquerda tendem a descartá-los como fascistas, racistas e sexistas da classe média e alta branca. O bolsonarismo penetrou em todas as classes sociais e de forma alguma pode ser atribuído a uma cor de pele ou gênero específico. É verdade que, por exemplo, quase nenhum negro esteve envolvido na invasão do distrito governamental de Brasília, mas o número de “pardos” (como são chamados aqui os descendentes de negros e brancos) foi enorme. Foi igualmente impressionante quantas mulheres participaram entusiasticamente dos motins antidemocráticos.
Outra coisa é crucial: a firme crença dos bolsonaristas de que o Brasil está em perigo por causa da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, sim, que sua vitória eleitoral em outubro só foi possível por fraude, porque o “povo” tinha esse ladrão condenado e gangsters finalmente nunca eleitos. Os bolsonaristas acreditam firmemente que defenderam a pátria, a liberdade, a verdade e, em última análise, a verdadeira democracia.
Prólogo de um mês
Lula, por outro lado, estão convencidos, planeja instaurar uma ditadura comunista, dissolver a família tradicional, restringir a prática da religião cristã e abolir a liberdade de expressão. Além disso, Lula representa para ela – não totalmente errado – a típica disputa pelo poder em Brasília, onde um grande número de partidos e personalidades podem ser providos de cargos e cargos.
Os bolsonaristas, portanto, se veem como lutadores da liberdade que tentam fazer valer a verdadeira vontade do povo, que é reprimida pelas instituições estatais em interação com a “grande mídia”. É uma crença que se confirma a cada dia no mundo paralelo em que muitos bolsonaristas se isolaram. Apenas as informações que circulam ali apóiam suas ideias. Qualquer coisa que contradiga isso é ignorado ou reinterpretado sofisticamente. O bolsonarismo é impensável sem as redes sociais.
O movimento, com sua cosmovisão hermética e retórica quase religiosa da salvação, em última análise, assemelha-se a uma seita. Isso também explica a perseverança com que milhares acamparam em frente a quartéis por todo o Brasil desde a vitória eleitoral de Lula, exigindo um golpe militar. Eles se consideram legítimos para se opor a um governo ilegítimo; os fascistas são os outros para eles.
E não se esqueça: não se trata de uma minoria perdida. 58,2 milhões de brasileiros votaram em Bolsonaro, ou seja, 49,1% dos que votaram. Com 60,3 milhões de votos, Lula da Silva recebeu apenas 1,8 ponto percentual a mais.
Os acampamentos foram o prólogo de um mês para a tomada de Brasília. Após uma marcha de protesto, os bolsonaristas romperam cordões policiais inadequados e invadiram o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto. Quebraram janelas e móveis, destruíram obras de arte, atearam fogo, urinaram e defecaram em móveis e jogaram aparelhos eletrônicos no chão. Obras de arte, armas e câmeras também foram aparentemente roubadas. O prejuízo pode chegar a milhões.
O que chamou a atenção em tudo isso foi que a polícia militar no Brasil, conhecida por sua brutalidade, não interveio e alguns policiais até tiraram selfies com os invasores. Não é segredo que as forças de segurança do Brasil são um reduto do bolsonarismo.
A dura resposta de Lula
Embora inicialmente se tenha dito que a polícia havia sido surpreendida pela agressividade dos manifestantes, logo surgiu a suspeita de que havia cálculo por trás da passividade. O serviço interno de inteligência do Brasil, ABIN, aparentemente alertou os responsáveis em Brasília no início de que milhares de várias partes do país estavam a caminho para invadir a Praça dos Três Poderes. Agora o chefe de polícia da capital, ex-ministro de Bolsonaro, foi demitido e o governador de Brasília foi afastado do cargo.
O assalto às instituições não foi espontâneo. Os apelos à invasão dos centros de poder do país já circulavam nas redes bolsonaristas há dias. Instruções para ação também foram compartilhadas; dizia-se, por exemplo, que a invasão só deveria ser tentada quando uma massa crítica de pessoas se reunisse. A polícia agora está investigando quem estava por trás dessas ligações e quem financiou as viagens de ônibus que trouxeram os manifestantes a Brasília. Cerca de uma centena de empresas e firmas bolsonaristas são suspeitas, muitas das quais já haviam apoiado os acampamentos de protesto em frente ao quartel.
Os tumultos foram interrompidos no domingo depois que o presidente Lula da Silva, que estava em São Paulo, emitiu um decreto dando ao governo federal o comando do aparato de segurança da capital. Ele anunciou com raiva que os “vândalos e fascistas” seriam punidos. Novas unidades policiais chegaram prontamente à Praça dos Três Poderes; expulsaram os invasores e prenderam algumas centenas deles. Na segunda-feira, a polícia desmantelou os acampamentos em frente aos quartéis em todo o país. Em Brasília, cerca de 1.200 bolsonaristas foram detidos em um pavilhão esportivo para verificar a prática de atos criminosos.
Foi o início da dura resposta do Estado brasileiro. O juiz constitucional Alexandre de Moraes, que já é odiado entre os bolsonaristas por sua repressão aos produtores e divulgadores de notícias falsas, ordenou que as listas de hóspedes de hotéis e pousadas em Brasília sejam revisadas e dados de geolocalização e imagens de câmeras de vigilância sejam analisados. A conduta da polícia local também faz parte da investigação. Isso é facilitado pelo fato de os bolsonaristas filmarem sua invasão e postarem gravações de seus crimes em celulares como troféus. Em sensacional discurso na terça-feira, Moraes afirmou que não haveria “apaziguamento” contra os “terroristas”: “Se o apaziguamento tivesse funcionado, não teríamos a Segunda Guerra Mundial”,
Nos grupos de comunicação bolsonaristas, mas também na Jovem Pan (a contraparte brasileira da direitista norte-americana Fox News), fala-se agora do início da ditadura comunista que Lula sempre planejou. Os bolsonaristas presos foram tratados como prisioneiros em campos de concentração e os crimes em Brasília foram cometidos por provocadores plantados pela esquerda.
O grande perdedor
O assalto às instituições brasileiras era previsível. É o resultado da retórica incitante à guerra civil que o ex-presidente Bolsonaro, políticos aliados a ele, pastores evangélicos, influenciadores e empresários vêm promovendo há anos. Alguns denunciantes online ganharam muito dinheiro com suas postagens nas mídias sociais – e, portanto, um interesse em mais radicalização.
Mas eles podem ter ido longe demais. Políticos da esquerda à direita concordaram que os “terroristas” e os “conspiradores golpistas” deveriam ser punidos em toda a extensão da lei. Lula da Silva conseguiu se apresentar como um poderoso chefe de Estado que assume o comando e toma decisões. Já na segunda-feira convocou governadores de todos os partidos, ministros e os juízes constitucionais de Brasília para demonstrar união. A maioria dos observadores concordou: a jovem democracia brasileira, com apenas 35 anos, provou ser defensiva e forte no final.
O grande perdedor é Jair Bolsonaro. Só mais tarde ele reportou da Flórida para se manifestar no Twitter contra os atos de violência em Brasília. Suas ligações não foram atendidas. Como se o bolsonarismo não precisasse mais disso.
Este texto escrito originalmente em alemão foi publicado pelo jornal “Woz” [Aqui!].