Por que 70% dos agrotóxicos largamente usados no Brasil foram banidos na União Europeia?

As autoridades de lá consideram alertas científicos da relação dessas substâncias com o câncer, malformações fetais, danos à reprodução, rins e fígado, autismo, Parkinson, Alzheimer, contaminação da água e muito mais

Tecnologia avançada para aplicar aqui venenos proibidos em outros países. Foto: ANAC

Cida de Oliveira* 

Atentas aos alertas da ciência sobre os riscos que os agrotóxicos representam para a saúde pública e o equilíbrio dos ecossistemas – e, claro, à pressão dos consumidores – autoridades da União Europeia já baniram 223 ingredientes ativos químicos desde 2001. Pesou na decisão a relação desses produtos com a alarmante lista do início desta reportagem, que vai bem além. Ou seja, foram proibidas as substâncias que foram utilizadas até que a efetividade e a segurança foram questionadas por estudos mais modernos e abrangentes. Portanto, deixaram de ser aceitáveis perante os novos conhecimentos científicos.

Já o Brasil, em sentido oposto, segue autorizando esses produtos por aqui. Tanto que esses 223 correspondem a 52% dos 429 ingredientes químicos permitidos no país pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). São matérias primas usadas na formulação de uma infinidade de herbicidas, fungicidas, inseticidas, acaricidas e reguladores do crescimento das plantas, que compõem as milhares de toneladas vendidas todo ano no Brasil, o maior mercado consumidor desses venenos.

Para piorar, desses agentes banidos pelos europeus, 7 estão na lista dos 10 mais vendidos no Brasil em 2023, segundo dados do Ibama divulgados no início do ano. No final da reportagem, você poderá conferir um recorte a partir do parecer publicado nesta terça (28) aqui no Blog do Pedlowski. Trata-se de um documento produzido e divulgado de maneira voluntária pela professora juntamente com Leonardo Melgarejo, coordenador adjunto do Fórum Gaúcho de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos, para respaldar organizações e setores do governo e legislativo na discussão de possibilidades relacionadas ao Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara).

 “São moléculas banidas há muito tempo porque são velhas, mais tóxicas. E aqui se usa já há muitos anos, desde 1985. Isso impede a entrada de outras mais novas, menos tóxicas e melhor testadas”, disse ao Blog a engenheira química Sonia Corina Hess, professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coautora de um parecer técnico detalhando dados sobre esses produtos banidos na União Europeia. “Não é por falta de opção que a gente está usando essas moléculas velhas. E sim porque são despejadas aqui devido ao preço mais baixo desse lixo em relação a moléculas novas. É por isso que entre os mais vendidos estão 7 banidos. A gente vai cumprindo assim esse papel de lixeira mesmo”.

De acordo com ela, que se dedica arduamente ao estudo desse caldeirão de venenos, a situação é bem complexa. Entre suas causas principais está o poder das transnacionais fabricantes, com seu lobby sobre os poderes da República. “A indústria química foca muito no Brasil porque é o maior mercado de agrotóxicos do mundo. Vale muito dinheiro. Há forte pressão até para impedir o banimento. Por isso a gente está com esse cenário tão trágico para o povo brasileiro, que praticamente não tem defesa diante desse poder das indústrias multinacionais”.

Regulação frágil

Esse lobby onipresente, aliás, explica em parte a fragilidade da regulação brasileira quando comparada à do bloco europeu. Lá o conjunto de países observa vários pontos no processo de análise de pedido de registro e de sua validade. “Na União Europeia a reavaliação dos produtos é periódica. Trata-se de um trabalho extenso, que pode levar 6 anos ou até mais; um processo bem bacana, em que um país assume a liderança desses estudos. Depois é feito um parecer que é apresentado para os demais países. Entra então em consulta pública. Se aparece algum ponto que pode sinalizar para o banimento, eles convocam a indústria para justificativas. É bem sério”, disse.

“Já no Brasil a validade é eterna, não tem prazo. Uma vez aprovado, não há regras definindo datas para reavaliação. Por isso a gente tem moléculas que são vendidas no Brasil desde 1985. Para conseguir banir é um processo muito complicado; é no varejo e não no atacado, como na Europa. Como lá cada substância tem uma validade e se naquele prazo não se justificar a manutenção, eles vão banir. Existe uma organização, uma sistemática de reavaliação que não tem no Brasil”, disse. “Isso é que falta aqui. E cada vez que tem reavaliação de agrotóxicos no Brasil é aquele drama, um ‘Deus nos acuda’, com o lobby todo contrário pressionando. E ninguém leva em consideração a saúde pública, o gasto no SUS, a tragédia que é o adoecimento das pessoas. Uma tragédia brasileira diante desse poderio das multinacionais.”

Sonia Hess lembra ainda o processo de enfraquecimento da legislação do setor. “A lei dos agrotóxicos, em vez de mais rigorosa, ficou mais branda, dificultando o banimento. Mas os números da saúde pública estão aí. A incidência de câncer em pessoas mais jovens está aumentando. Autismo, desregulação endócrina. São muitas doenças que provêm de contaminação ambiental e os agrotóxicos têm papel muito decisivo nisso”, disse a especialista, que se vê particularmente preocupada com a qualidade da água de abastecimento. “Cada vez que a gente analisa a água encontra uma série de substâncias perigosas, inclusive agrotóxicos.”

Interesses em conflito

O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, com extenso currículo envolvendo o tema, acrescenta outro fator agravante: o poder do agro no poder, inclusive sobre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), por trás da liberação dos agrotóxicos. “O MAPA afirma que precisamos usar no Brasil venenos desnecessários na União Europeia por conta de nosso clima tropical. Oculta com isso um fato simples: aqueles produtos hoje proibidos na União Europeia já foram utilizados lá; eram necessários para a agricultura até que se comprovaram perigosos demais para a saúde humana e ambiental. Mas como a agricultura européia se mantém, sem eles? Utilizando outras formulações”, apontou.

“O fato é que estas outras formulações são mais caras, enquanto o lixo tóxico, que não pode ser comercializado lá é desviado para cá, a preços baixos. Lixo tem preço baixo”, disse, fazendo coro a Sonia Hess. Na sua análise, trata-se tambem de uma questão de contabilidade, onde os gastos com saúde são desprezados por aqueles só enxergam os resultados da lavoura, a cada safra, desprezando o horizonte de uso de seus próprios territórios. “Estão acabando com a microvida e a fertilidade dos solos, envenenando a água, multiplicando tragédias familiares e justificam isso com base em argumentações falaciosas”, completou.

Após uma década de espera pelos movimentos e organizações da sociedade civil, em junho deste ano o governo federal instituiu, por decreto, o Pronara. A política visa a redução gradual e contínua do uso de agrotóxicos, principalmente os altamente perigosos ao meio ambiente e extremamente tóxicos para a saúde. 

Mensagem de repúdio ao Pacote do Veneno projetado em edifício. Foto @projetemos

atribui ao mesmo MAPA, entre outras coisas, priorizar o registro de agrotóxicos de baixa toxicidade e de bioinsumos. Ou seja, uma incumbência que destoa dos horizontes do poderoso comando da pasta. Para Melgarejo, o nó dessa improvável convergência de interesses só pode ser desatado pela sociedade. E isso quando estiver plenamente consciente da situação.

“As pessoas que residem nas ‘zonas de sacrifício’ não estão cientes de que seus parentes estão sofrendo doenças incuráveis que poderiam ser evitadas, que gestações estão sendo perdidas, que se multiplicam casos de oncologia infantil e distúrbios nos sistemas endócrinos, nervoso e reprodutivo porque a água está sendo envenenada. E se soubessem que isso tudo poderia ser evitado com mudanças nas regras de financiamento, isenção de impostos e autorização de uso, aqui, de venenos que são PROIBIDOS em outros países, não reagiriam?”, pondera, lembrando que “zonas de sacrifício” são áreas nas quais os índices de mortalidade, afecções cancerígenas, gestações perdidas e casos de autismo e infertilidade superam as médias nacionais.

 Nessa perspectiva, Melgarejo defende que a sociedade seja informada sobre a gravidade da situação em que vive. “As pessoas estão sendo enganada a respeito dos agrotóxicos. E o Pacote do Veneno é um instrumento criminoso a serviço de interesses econômicos, cego aos direitos humanos fundamentais, antiético e contrário à civilidade”, disse. “Os números e fatos relatados no parecer demonstram isso. A sociedade precisa ser informada para avaliar aqueles seus representantes que vêm sendo escolhidos para ocupar espaços no poder legislativo. A maioria deles, como demostram as decisões envolvendo o pacote do veneno e as dificuldades para discussão de um modelo de desenvolvimento amistoso à natureza, zombam da saúde de seus eleitores”, diz.

Ele defende também que esta disseminação de informações sobre o tema dê o devido espaço para os avanços das práticas agroecologias, “um sistema de produção mais coerente com as necessidades de soberania alimentar e de enfrentamento ao aquecimento global, está sendo bloqueado pelo estímulo ao uso de lixo tóxico entre nós”. “Precisamos de proteção para as regiões onde a agroecologia se expande, que sejam estabelecidas áreas livres de agrotóxicos e os avanços possam ser multiplicados.

Mas não é só. Como tudo isso depende de políticas públicas, a importância de esclarecimento da sociedade ganha ainda mais relevância. “Até mesmo para o ganho de força na correlação que levou o agro ecocida a dominar o estado”, diz Melgarejo. “Eles estão no legislativo e ocupam postos chave no executivo, em todos os governos. Ocuparam o estado, que precisa se aproximar mais das necessidades da população e se afastar dos mecanismos que nos subordinam a interesses ofensivos à saúde humana e ambiental.”

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Cida Oliveira é jornalista e colaboradora regularmente com o Blog do Pedlowski.

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