Algo que vem passando despercebido na cobertura caolha que a mídia corporativa faz da crise econômica e política que grassa nos diferentes níveis da federação brasileira é o profundo corte de verbas públicas para as universidades e centros de pesquisas nacionais. Se a coisa já foi tenebrosa em 2015, os cortes orçamentários projetados pelo governo federal e por governos estaduais colocam a maioria dos grupos de pesquisas em um estado de comatose profunda. É que sem recursos mínimos, a maioria das pesquisas que requerem um mínimo de insumos para fluírem são efetivamente inviabilizadas.
O mais impressionante é que neste momento a sociedade brasileira está sendo assolada por um grande número de problemas que demandam respostas científicas precisas que impulsionem a adoção de soluções. Vejamos, por exemplo, a recente disseminação do vírus zika e e a febre chikungunya (lê-se chicungunha), cujos efeitos sobre a saúde humana deixam pálidos aqueles causados pela dengue (Aqui!). A ausência de recursos para pesquisar essas doenças certamente causará mortes e deformações e, de quebra, aumentará ainda mais a sobrecarga da rede pública de saúde, a qual já se encontra totalmente sobrecarregada.
Eu poderia ainda mencionar a falta de qualquer resposta institucional do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) à hecatombe socioambiental iniciada pelo rompimento da barragem do Fundão da Mineradora Samarco em Mariana (MG). Em um país minimamente organizado para atender as demandas reais que emergem na sociedade, uma agência como o CNPq já teria convocado pesquisadores a se associarem em redes para pesquisarem os diferentes compartimentos ambientais que foram devastados pelo TsuLama. Mas até agora a única iniciativa de que se tem é da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) que lançou um edital para pesquisadores interessados em investigar o TsuLama da Samarco e as medidas necessárias para sua mitigação no âmbito do Rio Doce (Aqui!). O problema é que premida pelo encurtamento de recursos, a capacidade de financiamento da Fapemig é consideravelmente menor, e não deverá aportar os recursos minimamente necessários para que pesquisas de grande fôlego sejam realizadas, de modo a estabelecer os limiares de ações de mitigação para este incidente ambiental de proporções apocalípticas. Tanto isto é verdade que o edital para a recuperação do Rio Doce é de magros R$ 4 milhões, o que se mostra claramente insuficiente para pesquisar uma tragédia de dimensões ainda incalculáveis.
Mas o que me incomoda mesmo é notar que apesar da magreza do aporte financeiro, continuamos imersos numa cultura institucional que obriga a comunidade científica brasileira a continuar sua rotina de privilegiar a quantidade em detrimento da qualidade. E isto se traduz na pressão para continuarmos a publicar em quantidades que justifiquem ranqueamentos e premiações. E como já abordei de forma repetida aqui neste blog, tal pressão cria um terreno fértil para a legitimação do “trash science” como forma de qualificar a comunidade científica nacional. O fato é que não se ouve no plano da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) qualquer ajuste na forma de se avaliar os programas de pós-graduação, em que pesem as evidências de que estamos profundamente contaminados com a cultura do “trash science” onde quantidade é o que importa.
A somatória desses problemas acaba colocando a comunidade científica brasileira diante de um grande dilema. Como evoluir a ciência e atender as demandas emergentes num ambiente de cobertor curta e critérios que privilegiam a quantidade? Algumas respostas estão surgindo e apontam não apenas para formas alternativas de financiamento (como é o caso do mecanismo do “crowdfunding”), mas também para o estabelecimento de redes de cooperação que ultrapassem os limiares do personalismo imposto pelo “trash science”. Ainda que embrionárias, muitas iniciativas no caso do TsuLama da Samarco apontam para a adoção de uma tomada de posição que privilegia a cooperação científica em detrimento do egotismo que grassa atualmente na maioria da comunidade cientifica brasileira.
Essas redes de cooperação são para mim a principal esperança de que possamos superar a encruzilhada em que se encontra a ciência brasileira neste momento. É que formas genuínas de cooperação em rede poderá se mostrar como a única forma de vencermos ao mesmo tempo a falta de recursos e a pressão para que nos submetamos todos à lógica do “trash science”. E como nenhum país se desenvolveu até hoje sem comunidades científicas efetivamente qualificadas, a superação dessa encruzilhada tem tudo a ver com o destino do Brasil enquanto nação independente.