Então o que vocês querem é voltar a viver onde era o Bento? O que se escutou foi um sonoro e contundente “sim”

Por

Audiência pública debateu o tombamento do Antigo Bento Rodrigues. Na reunião, a única coisa que se via era a revolta dos atingidos e o sistemático descumprimento das leis brasileiras, dos acordos firmados em juízo e de qualquer código.

 

Ex-moradores, ainda proprietários de imóveis que sobraram ou nem sobraram, estão impedidos de chegar à vila e até mesmo de visitar as ruínas das suas antigas casas.

Foto: Gustavo Ferreira
Foto: Gustavo Ferreira

Texto por Tatiana Ribeiro de Souza¹

“Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.Tenho em mim um atraso de nascença.Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.Tenho abundância de ser feliz por isso.Meu quintal é maior do que o mundo.”(Manoel de Barros)

Sob o pretexto de cuidar da segurança das pessoas que visitam o antigo vilarejo de Bento Rodrigues, a Samarco instalou um portão e controla os acessos ao local destruído por sua própria lama, no último dia 5 de novembro. Ex-moradores, ainda proprietários de imóveis que sobraram ou nem sobraram, estão impedidos de chegar à vila e até mesmo de visitar as ruínas das suas antigas casas.

Tal situação foi motivo das mais duras manifestações de revolta durante a audiência pública que, na última semana, debateu o tombamento do Antigo Bento Rodrigues. Talvez a mais incontida das moradoras, Mônica dos Santos, levantou-se ao gritos:

Por que nós não podemos entrar no Bento? Não podemos nem visitar! Na hora que a gente estava correndo da lama, ninguém foi lá.

 

A questão colocada pelos moradores é que eles não podem ingressar, mas as máquinas da Samarco lá estão sem nenhuma fiscalização de quem quer que seja. Prosseguindo seu desabafo, Mônica vaticinou: “Eu vou lá e entro a hora que eu quiser. Não tem homem que vai me impedir. Eu atravesso o rio. Esse é um direito que ninguém me tira”. O grito encorajou outros moradores a fazerem o mesmo na audiência. O que se ouviu foi uma catarse coletiva de choro e muita, muita revolta. Autoridades como o prefeito de Mariana, Duarte Júnior, e o presidente da Câmara de Vereadores da cidade, Tenente Freitas, entre outras, puderam ver e ouvir de perto o sofrimento.

Foto: Bruno Bou
Foto: Bruno Bou

Fato novo veio à luz no meio da reunião que estava lotada, principalmente, por gente simples, acostumada a viver em pequenas vilas que não existem mais. A ex-moradora contou que, no lugar onde ficava a sua casa, a Samarco está construindo o dique 54, sem qualquer autorização da sua família. Para a surpresa dos membros do Ministério Público e das representantes do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional e do Conselho Municipal do Patrimônio Cultura de Mariana, as obras da Samarco para transformar Bento Rodrigues em barragem estão a todo vapor. O promotor de justiça interpelou imediatamente José Luiz Forquim, representante da Samarco, sobre aquelas afirmações. Obteve como resposta a informação de que as obras foram paralisadas.

“Mentira. A gente vai lá no alto do morro e vê tudo que vocês estão fazendo” gritaram da plateia.

Na tentativa de arrefecer os ânimos, a presidente do Conselho Municipal, Ana Cristina Maia, perguntou: “A construção do dique foi exigência do Ministério Público?”

Em resposta, José Luiz disse que tudo que a Samarco está fazendo foi acertado com o Ministério Público. Desta vez foi o representante do MP quem gritou “mentira!”

Na tentativa de explicar o inexplicável, o boi-de-piranha da Samarco disse que estão apenas fazendo sondagem, o que foi sucedido por outra interpelação do Ministério Público: “Vocês estão fazendo sondagens sem autorização? Nós queremos esclarecimentos a esse respeito!” Quando parecia que a ação criminosa da Samarco não poderia ficar mais exposta, as representantes do IPHAN e do Conselho Municipal revelaram que também não foram informadas sobre as tais sondagens. Deixaram claro: as autorizações dos respectivos órgãos são obrigatórias e insubstituíveis.

“A Samarco não pede autorização para ninguém”, gritaram mais uma vez da plateia.

“A fase dos curiosos com a tragédia já passou”, diziam os moradores. “A imprensa não se interessa mais por nós”: era o que se ouvia a todo momento, seja do povo do Bento, de Paracatu de Baixo (ambos distritos de Mariana), seja do povo do município de Barra Longa, à margem do rio Gualaxo do Norte, por onde desceu a lama da desgraça. No início de abril, os pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais – GEPSA, da Universidade Federal de Ouro Preto, visitaram Barra Longa e escutam uma queixa recorrente: “ninguém passa por Barra Longa, porque aqui não é caminho para lugar nenhum. Só vem para Barra Longa quem quer mesmo vir para cá, e depois de alguns meses da nossa tragédia ninguém se interessa mais”

Com o país inteiro hipnotizado pela crise política e pelo impeachment, são poucos os que ainda se interessam pelo destino das famílias que perderam seus parentes e amigos, suas casas, sua vila, seu passado e seu projeto de vida. A última palavra que surgiu com força na mídia veio da propaganda da Samarco, veiculada em horário nobre de televisão: “Fazer o que deve ser feito, esse é o nosso compromisso”

Uma situação surreal se instalou em Mariana, e algumas falas da audiência foram emblemáticas para perceber isso: “A Samarco chegou em cima do Bento, não foi o Bento que chegou embaixo da Samarco”. Isso deixa claro quem é que deve sair de onde está. Pode parecer esdrúxulo que a empresa tenha obtido autorização para se instalar em localidade que colocava em risco a vida de várias pessoas e do meio ambiente, mas não chega a ser surpreendente, porque sabemos como as empresas e o Estado operam numa economia capitalista. Além disso, o desejo histórico da Samarco de comprar a vila inteira de Bento Rodrigues e a insistência agora em se apropriar do cemitério de lama que virou aquele lugar revelam o que significa para a Samarco qualquer coisa que se coloque como obstáculo para os seus negócios: rejeito. O empenho da empresa, depois de tudo que causou com a sua irresponsabilidade criminosa, é para, finalmente, transformar o território do antigo Bento Rodrigues em parte da sua barragem.

Na reunião, depois de três horas, a única coisa que se via era a revolta dos atingidos e o sistemático descumprimento das leis brasileiras, dos acordos firmados em juízo e de qualquer código de ética que uma empresa possa ter. O discurso recorrente dos atingidos é que não gostariam de depender da Samarco para viver e que, mesmo recebendo migalhas, têm sido acusados pelos demais moradores de Mariana de serem preguiçosos e aproveitadores.

Eles só queriam que o dia 5 de novembro de 2015 nunca tivesse acontecido. “O meu pedido é que o Bento não vire barragem. Enquanto eu estiver viva isso não vai acontecer”, voltou a bradar a revoltada Mônica. Diante deste cenário, e precisando dar por encerrada a audiência pública, a presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Mariana, Ana Cristina, decidiu consultar a plateia: “Então o que vocês querem é voltar a viver onde era o Bento?” O que se escutou foi um sonoro e contundente “sim”.

Foto: Gustavo Ferreira
Foto: Gustavo Ferreira

[1] Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais – GEPSA

Um comentário sobre “Então o que vocês querem é voltar a viver onde era o Bento? O que se escutou foi um sonoro e contundente “sim”

  1. E assim cresce os atingidos por barragens, mas não necessariamente o tão necessário MBA. Belo Monte parecia o último estrago de uma presidenta que não preside e prescindi de compromisso com sua própria história e palavras, que literalmente parece que foram levadas pelo vento. Se a burguesia tivesse alguma consideração por seus asseclas de outra classe poderia dar como forma de despedida e agradecimento por serviços prestados a Dilma Rousseff o título nobiliárquico de Dilminha Barrageira.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s