Universidades públicas, analfabetismo político e a Síndrome de Estocolmo

Brecht O Analfabeto Político (1)

Reza uma lenda urbana que  as universidades brasileiras são locais intrinsicamente críticos onde marxistas malévolos doutrinam jovens para que abracem suas causas ultrapassadas. Como professor universitário há quase 20 anos, posso afirmar sem medo de errar que essa noção realmente não passa de lenda.  As universidades brasileiras são e sempre foram conservadoras, mas a onda produtivista imposta pelos órgãos de regulação e fomento como a CAPES e o CNPq causou um forte retrocesso no pouco que havia de ação crítica que ali existia. Por isso, poucos são os pesquisadores que se colocam fora da bolha onde quantidade  de artigos publicados sabe-se lá onde é sempre preferível a uma ação reflexiva e crítica voltada para formar quadros mais capazes de atuar sobre os gigantescos desafios sociais e ambientais que assombram o nosso rico/pobre país.  

O resultado é que estamos assistindo de camarote o desmanche do sistema universitário público brasileiro quase sem nenhuma resistência dentro das universidades.  Vejamos, por exemplo, o caso das três universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uenf, Uerj, Uezo) que foram colocadas num completo estado de penúria por um (des) governo cuja legitimidade está jogada na sarjeta.  Entretanto, mesmo com salários atrasados e sem perspectiva de pagamento por causa da roubalheira que correu solta a partir de 2007 sob o comando do hoje presidiário Sérgio Cabral, não se vê uma reação sólida por parte de quem deveria dar o exemplo de que não se trabalha de graça.  Ao contrário, o que cada vez mais aparece é um ambiente que mistura desespero com resignação.

E, pior, como observador privilegiado do que acontece na Uenf, vejo ainda colegas que mesmo beirando a insolvência financeira insistem na pregação de que não se pode fazer greve porque isto causaria mais evasão estudantil.  Explico essa conjuntura que mistura letargia e marasmo a uma espécie de Síndrome de Estocolmo, onde os que estão sendo também vítimas da política de destruição do (des) governo do Rio de Janeiro se colocam como potenciais cúmplices caso decidam lutar pelos seus direitos.

A questão é explicar como se produziu essa variante da Síndrome de Estocolmo. Em minha opinião ela decorre de um forte analfabetismo político que caracteriza principalmente os docentes que, até recentemente, se colocavam acima dos dramas mundanos que assolam a maioria dos brasileiros pelo singelo fato de possuírem um título de doutor.  Agora que se veem assolados por uma crise que não ajudaram a criar, a maioria não sabe como reagir simplesmente principalmente por causa de seu analfabetismo político.

Como vivenciei outros ambientes acadêmicos fora do Brasil, já vi que em outros países há um reconhecimento objetivo de que os professores universitários são apenas um segmento privilegiado da classe trabalhadora, mas que cada vez mais experimentam os dissabores de serem proletários. Entretanto,  no Brasil ainda há uma recusa para aceitar essa situação que deveria ser óbvia.

A solução para esta Síndrome de Estocolmo, bem como para a ausência da necessária defesa das universidades públicas, naturalmente passa pela superação deste analfabetismo político. Nesse sentido, se adotarem esse caminho as universidades poderão ser um pequeno laboratório de um processo mais amplo pela qual a sociedade brasileira passar.  No caso específico da Uenf,  adotar o caminho do questionamento e da crítica será ainda uma chance histórica dela se reencontrar com os elementos fundacionais que foram pensados por Darcy Ribeiro.

Mas é preciso ter em mente que as características letárgicas que apontei em relação às universidades estão, sem nenhuma surpresa, também presentes no resto da nossa sociedade. Basta ver como os sindicatos não reagiram devidamente ao vergonhoso projeto de terceirização que acabou sendo aprovado com folgas na Câmara dos Deputados.

Agora, uma coisa é certa: se as universidades públicas quiserem ser um exemplo no processo de transformação que precisamos vivenciar no Brasil, e no Rio de Janeiro especificamente, precisam começar a se mexer logo. É que os seus inimigos no sistema político tramam todos os dias como privatizá-las. Se demorarmos a reagir, o futuro que estes inimigos das luzes já está traçado e posso adiantar que não é nada belo.

7 comentários sobre “Universidades públicas, analfabetismo político e a Síndrome de Estocolmo

  1. Belíssima Matéria!!! Há tempos eu esperava ler você sobre o ponto: Exemplo algum em algumas Universidades no “Processo de Transformação” que deveria ser próprio dessas, Públicas, de Qualidade, onde Cientistas Políticos e Historiadores marcam presença! Mas, não são todas: Aqui no Rio, Roberto Lerner, Reitor da UFRJ, não se poupa em Protestos (em todas as mídias e cantos). Tanto quê está sendo Processado pelo Governo PMDB Temer. Ana Dantas, Reitora dá UFRRJ (passando o Cargo no momento) tem sido Figura constante em Brasília (eu vejo e ela mesma me conta). Georgina e Ruy, na Estadual maior do Rio, em momento algum demonstraram alguma “letargia” (e me recuso a incluir o tempo do Reitor na CTI). Na Uezo, Luanda, Vice-Reitora hoje e antes Presidente dá Asduezo, totalmente atuante nos Atos na Alerj (desde Presidente). Falo só dos que eu conheço aqui no Rio (minha​ cidade natal) e que tenho acesso. Não sei hoje o que se passa na UNIRIO e CEFET (IFF Maracanã), tampouco na UFF. Em Unis de outros Estados, politizados, como SP, MG, RS, PN, também não sei. No Rio, Pedlowski, “Síndrome de Estocolmo” eu concordo que está endêmica na UENF! Reitoria apática, com tímidas (e controversas, equivocadas por vezes) medidas locais sem visibilidade fora da cidade. Só espero não ter o desprazer de ouvir novamente a frase: “Com esta Reitoria, nem precisamos mais de ADUENF”. É, que a lendária ADUENF, protagonista de importantes Vitórias (algumas no começo dos anos 2000 eu presenciei). Espero, sinceramente, que a nova Gestão da ADUENF atue e de modo independente como sempre, antes da gestão passada (dividida é “autolisada” em metade de mandato). Bjs de Luz!

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    • Sílvia, não me parece que o problema que eu identifiquei está resumido aos quadros dirigentes. Na verdade, pouco me importo com a questão institucional, pois me concentrei na análise no plano das pessoas que estão, ou deveriam estar, ditando o cotidiano das universidades. Agora, vamos ver como se porta não apenas a nova diretoria da ADUENF, mas também os associados em relação ao que ela apresentar como proposta de agenda de lutas. É que sem engajamento coletivo não adianta culpar os dirigentes, seja institucionais ou sindicais.

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      • Eu entendo perfeitamente sua colocação sem referência aos dirigentes. Não sou de Humanas, mas uma estudiosa esforçada sim. Você já pensou em que proporção esta Reitoria/Mesclada de Sindicato pode influenciar o nosso comportamento “bovino”. Eu “quiropteramente” estou certa que influencia e muito, não a mim e tampouco a você, mas há outros.

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  2. Beleza de artigo. A Universidade, complacente com a Milha Lattes , expressão criativa da professora Márcia Motta da UFF, onde o quantitativismo substituiu a reflexão crítica, no açodamento de produzir textos, se desconfigurou de sua contribuição, enquanto locus de pensamento inovador.
    Por outro lado, se identificar, enquanto classe trabalhadora, levantando sua rica problemática ,refletindo sobre caminhos novos contribuiria com o enfrentamento dá opressão a que está exposta. Mas, vamos caminhando e cantando, enquanto tivermos voz.

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